Era
sábado e estávamos convidados para o almoço de obrigação. Mas
cada um de nós gostava demais de sábado para gastá-lo com quem não
queríamos. Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do
desejo. Eu, eu queria tudo. E nós ali presos, como se nosso trem
tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos.
Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. Quanto a meu
sábado - que fora da janela se balançava em acácias e sombras - eu
preferia, a gastá-lo mal, fechá-lo na mão dura, onde eu o
amarfanhava como a um lenço. À espera do almoço, bebíamos sem
prazer, à saúde do ressentimento: amanhã já seria domingo. Não é
com você que eu quero, dizia nosso olhar sem umidade, e soprávamos
devagar a fumaça do cigarro seco. A avareza de não repartir o
sábado ia pouco a pouco roendo e avançando como ferrugem, até que
qualquer alegria seria um insulto à alegria maior.
Só
a dona da casa não parecia economizar o sábado para usá-lo numa
quinta de noite. Ela, no entanto, cujo coração já conhecera outros
sábados. Como pudera esquecer que se quer mais e mais? Não se
impacientava sequer com o grupo heterogêneo, sonhador e resignado
que na sua casa só esperava como pela hora do primeiro trem partir,
qualquer trem - menos ficar naquela estação vazia, menos ter que
refrear o cavalo que correria de coração batendo para outros,
outros cavalos.
Passamos
afinal à sala para um almoço que não tinha a bênção da fome. E
foi quando surpreendidos deparamos com a mesa. Não podia ser para
nós…
Era
uma mesa para homens de boa-vontade. Quem seria o conviva realmente
esperado e que não viera? Mas éramos nós mesmos. Então aquela
mulher dava o melhor não importava a quem? E lavava contente os pés
do primeiro estrangeiro. Constrangidos, olhávamos.
A
mesa fora coberta por uma solene abundância. Sobre a toalha branca
amontoavam-se espigas de trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras
amarelas, redondos tomates de pele quase estalando, chuchus de um
verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas
alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos
que se fechavam duros sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos
e avermelhados que ardiam nos olhos - tudo emaranhado em barbas e
barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos de
uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo
instante de serem esmagadas. E não lhes importava esmagadas por
quem. Os tomates eram redondos para ninguém: para o ar, para o
redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a
língua de quem primeiro chegasse. Junto do prato de cada
mal-convidado, a mulher que lavava pés de estranhos pusera - mesmo
sem nos eleger, mesmo sem nos amar - um ramo de trigo ou um cacho de
rabanetes ardentes ou uma talhada vermelha de melancia com seus
alegres caroços. Tudo cortado pela acidez espanhola que se
adivinhava nos limões verdes. Nas bilhas estava o leite, como se
tivesse atravessado com as cabras o deserto dos penhascos. Vinho,
quase negro de tão pisado, estremecia em vasilhas de barro. Tudo
diante de nós. Tudo limpo do retorcido desejo humano. Tudo como é,
não como quis é ramos. Só existindo, e todo. Assim como existe um
campo. Assim como as montanhas. Assim como homens e mulheres, e não
nós, os ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe.
Existe.
Em
nome de nada, era hora de comer. Em nome de ninguém, era bom. Sem
nenhum sonho. E nós pouco a pouco a par do dia, pouco a pouco
anonimizados, crescendo, maiores, à altura da vida possível. Então,
como fidalgos camponeses, aceitamos a mesa.
Não
havia holocausto: aquilo tudo queria tanto ser comido quanto nós
queríamos comê-lo. Nada guardando para o dia seguinte, ali mesmo
ofereci o que eu sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que
eu não pagara de antemão com o sofrimento da espera, fome que nasce
quando a boca já está perto da comida. Porque agora estávamos com
fome, fome inteira que abrigava o todo e as migalhas. Quem bebia
vinho, com os olhos tomava conta do leite. Quem lento bebeu o leite,
sentiu o vinho que o outro bebia. Lá fora Deus nas acácias. Que
existiam. Comíamos. Como quem dá água ao cavalo. A carne trinchada
foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Ninguém falou mal
de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém. Era reunião de
colheita, e fez-se trégua. Comíamos. Como uma horda de seres vivos,
cobríamos gradualmente a terra. Ocupados como quem lavra a
existência, e planta, e colhe, e mata, e vive, e morre, e come. Comi
com a honestidade de quem não engana o que come: comi aquela comida
e não o seu nome. Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. A
comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte. Aquilo tudo
me pertencia, aquela era a mesa de meu pai. Comi sem ternura, comi
sem a paixão da piedade. E sem me oferecer à esperança. Comi sem
saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Porque nem sempre
posso ser a guarda de meu irmão, e não posso mais ser a minha
guarda, ah não me quero mais. E não quero formar a vida porque a
existência já existe. Existe como um chão onde nós todos
avançamos.
Clarice
Lispector, in Felicidade clandestina
Nenhum comentário:
Postar um comentário