Amigo
meu, homem viajado e sensível, assegura-me que — se o levassem, de
tapados ouvidos e olhos, a uma das muitas cidades deste mundo dele
conhecidas — ainda assim a identificaria, e imediatamente. Acho bem
possível. Digo mesmo que também me sinto capaz de às vezes não
errar, em o caso. Não que prometa reconhecer todos os lugares onde
já tenha estado; mas, pelo menos quanto a uns oito ou sete, posso
quase garantir. Aliás, já devem ter escrito sobre o assunto. Tudo
está nos livros. Cícero, por exemplo, no De Divinatione,
refere que era “uma força emanada da terra” o que animava a
Pitonisa, e acresce: “Não vemos que são várias as espécies de
terras? Delas há que são mortíferas, como Ampsanctus, no país dos
Hirpinos, e Plutônia, na Ásia, as quais eu mesmo vi. Há terrenos
pestilentos, e há os salubres; alguns engendram homens de espírito
agudo, outros produzem seres estúpidos. Esse é o efeito dos
diferentes climas, mas também da disparidade dos eflúvios
terrestres.”
É
isto: irradiações telúricas — aspirationes terrarum. Sei
que eu e o supradito amigo, para a enunciada façanha, dispensaremos
outras sensações: as dadas do ar, do tempo, do magnetismo
planetário, do espectro solar, ou — ódicas, fisioelétricas
e prânicas — das propagações dos objetos e dos humanos entes:
enfim, do mais que, mana à parte, ajuda a compor esse buquê difuso,
aura, “atmosfera”. Bastam-nos as invisíveis forças que sobem do
chão, que estão sempre vindo de baixo.
E
essas talvez expliquem muita coisa. Em duas ocasiões, voando sobre
os Andes, a uma altura entre 4 e 5 mil metros, não deixei de
interceptar a torva soturna emissão daquelas lombadas cinéreas,
desertas e imponentes. Juro que não se tratava de sugestão visual,
mas de uma energia invariável, penetrante e direta, paralisadora de
qualquer alegria. Por isso, não me espantou ouvir, tempos depois,
este slogan repetidíssimo: “En la cárcel de los
Andes...” E, do que sabia, mais me certifiquei, quando vim a
ler nas Meditações Sul-Americanas de Keyserling: “Nas
alturas das cordilheiras, cujas jazidas minerais exalam ainda hoje
emanações como as que antigamente metamorfosearam faunas e floras,
tive consciência da minha própria mineralidade.”
Demais,
foi Keyserling mesmo quem escreveu, da Cidade Maravilhosa: “O
ambiente do Rio de Janeiro é um puro afrodisíaco...” Creio
verdade. Menos afrodisíaco, contudo, que, digamos, que o da
terráquea Poços de Caldas — seguramente um dos lugares
brasileiros mais abençoados pela risonha filha de Júpiter. E
note-se que, contra quaisquer aparências, todo o chão da América,
de Norte a Sul, funciona, a rigor, como anafrodisíaco, segundo os
entendidos e as observações menos superficiais, atuais e
históricas.
Mas,
por falar em matéria de solo base própria para o amor, consta que
nenhum melhor, e mais notório, que o de Paris, o de toda a
Ile-de-France. — “Ici chez nous, vous le savez, l’amour
c’est endémique...” — declarava-me uma estudante de
medicina, funcionária do Musée de l’Homme. Todo o mundo sabe
disso. Ali o amor dá, mesmo não se plantando. E, que é do chão,
é. Se algum dia, o que Deus não deixa, destruíssem a cidade, até
à qualquer pedra, depressa os amorgostosos de toda a parte viriam
reconstruí-la, por mundial erótica necessidade.
Outras
cidades há com menos grato fundamento. Diz-se, e diz-se muito, que
três delas, na Europa, são essencialmente, terrestremente,
deprimentes, tristes, tristifadonhas: Lião, Liverpool e Magdeburgo.
Liverpool não conheço, mas toda a gente confirma que ela é aquilo
mesmo: chega dá spleen até em seus filhos. Lião — se bem
seja terra de mulheres bonitas e comidas gostosas — é, e os
próprios lioneses não o negam, tristonha realmente, sem cura. Em
Magdeburgo passei uma noite, e noite pesadíssima, mas era
Sexta-Feira da Paixão, e aquela em que a Albânia foi invadida por
Mussolini; seu tom lembrou-me o de Belo Horizonte — a qual, não
obstante o clima ótimo, há de ser sempre propensa à melancolia e
ao tédio, como em geral os lugares férreos, assim como são
simpáticos e alegres os calcários: Corumbá, Paris mesma,
Cordisburgo.
Niterói,
alguém já me observou que sua superfície incita aos crimes.
Discordo. Niterói é boa. De Chicago, ouvi outro tanto, e afirmam
que sua gente se mostra a mais rude e egoísta dos Estados Unidos.
Pode ser, ignoro mas, no caso, não se saberá se a celerada
influência é bem terrânea, ou se se origina dos mil miasmas
astrais, elementais ou larvas, que se evolam do sangue
de tantos matadouros.
Em
favor da tese, citem-se também Siena e Florença, ambas toscanas,
ex-etruscas, e tão vizinhas, mas discrepadas, dissimilíssimas —
uma realista, positiva, e a outra mística — conforme em tudo se
ostentam, a principiar pelas artes respectivas.
Caso
indubitável é o de Weimar: de seu subsolo, sente-se logo, vêm
ondas de harmonia e de inspiração espiritual. Goethe o sabia,
sabia-o Schiller. E também os que a escolheram para sítio de
elaboração da Constituição do IIº Reich. Weimar é a Barbacena
alemã, se não europeia. Intelectualizante e amena. Apenas — isto
sim — que Barbacena, a Weimar nossa, talvez outrora excitasse um
pouquinho mais, no que toque à política.
Outros
e vivos exemplos haveria a citar, muitíssimos a estudar, pois a
ciência é nova, anda ainda empírica. Mas séria. Sua importância
é fundamental, obviamente. Não é à toa que os hindus de alta
casta, quando de sua Índia se ausentavam, deviam mandar preparar
calçados especiais, com um pouco da poeira do país entre duas
solas.
Até,
na minha Minas, quando o capiau faz para si a casinha, terra-a-terra,
elege como sítio o batido limpo dos malhadores, ali onde — ele diz
— “nada de ruim nem maldito governa de se
aparecer”. De gente do Rio Grande do Sul, pastoril também, já
ouvi assim isto. E que é que de ruim ou maldito gaúcho e mineiro
receiam irrompa, que não nos pontos que o gado sábia-instintivamente
escolhe para sua ruminada e dormida?
Afinal,
hoje em dia está mais ou menos provado que tudo irradia. Como não
irradiará então o chão, com sua imensa massa, misturada de
elementos? Irradia, pois, conforme o que conforme. Tenhamo-lo.
Guimarães
Rosa, in Ave, palavra
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