— Vou
contar a história da cachorra e do porco brabo, anunciou Alexandre
aos amigos uma noite escanchado na rede. Já falei nisto uma vez, se
não me engano, quando me referi ao veado e às duas araras.
Lembram-se? Os senhores conheceram nesse dia o alcance da lazarina
que meu irmão tenente me ofereceu. Ora muito bem. Essa cachorra de
que vou tratar hoje era uma pobre de Cristo, feia, magra e apareceu
aí no pátio, sem ninguém saber donde tinha vindo, esfomeada e
cheia de peladuras. Latia que era um deus nos acuda, coçava-se nas
estacas das cercas, esfregava-se nas pernas da gente e fazia nojo. Eu
por mim não queria aquela infeliz em casa, mas Cesária, que tem um
coração de ouro, tomou conta dela, deu-lhe comida e curou-lhe os
achaques.
— Foi
porque vi logo que a cachorra era diferente das outras, explicou
Cesária, lá da esteira. Preta como carvão, tinha a ponta do rabo
branca e uma estrela na testa. Estes sinais não falham.
— Estão
ouvindo? exclamou Alexandre encantado com a sabedoria da mulher. Essa
Cesária nasceu de encomenda. Que tino! Pois eu não percebi nada: a
cadelinha preta, de rabo branco e estrela na testa, parecia-me igual
às outras. E nem prestei atenção às primeiras habilidades dela.
Depois é que assuntei: aquilo não era procedimento de cachorro
ordinário. Diga-me uma coisa, mestre Gaudêncio, com franqueza: o
senhor acredita em artes do diabo?
— Sem
dúvida, seu Alexandre, respondeu o curandeiro. Quem não acredita?
Tenho tirado com reza muito espírito mau do couro de cristão.
— Pois,
mestre Gaudêncio, continuou o dono da casa, foi no capeta que eu
pensei quando a cachorra botou para fora o que sabia. Mas Cesária
fez uma oração forte em cima dela, o estouro que eu esperava não
veio e, com os poderes de Deus, ficou provado que a bichinha era bem
procedida. Entendia perfeitamente a linguagem das pessoas. Eu às
vezes dizia, para experimentá-la: — “Moqueca, você hoje vai
dormir no chiqueiro das cabras.” Ela balançava a cabeça, metia-se
no chiqueiro e não saía de lá nem por decreto. — “Moqueca, vá
comprar um quilo de bacalhau na cidade.” Moqueca segurava o
dinheiro com os dentes, galopava para a rua, entrava numa bodega, ia
direito à barrica de bacalhau, fazia a compra, pagava, tudo sem
erro, pois ninguém se enganava com as intenções dela. Acabado o
negócio, voltava correndo, carregando o embrulho. Contava como um
cobrador de imposto, e quando um caixeiro lhe deu no troco uma nota
falsa, Moqueca latiu, protestou, chamou a atenção do povo e da
autoridade. Estas miudezas não têm relação com o porco brabo:
servem apenas para mostrar que a cachorra sabia onde tinha as ventas.
A especialidade dela era a caça. Caçava sozinha bichos pequenos:
enchi a casa de coelhos, preás, mocós, tatus, cutias e aves de
pena. E se achava roteiro de animal graúdo, chegava aqui ladrando,
corria de um lado para outro, fazia barulho. Só se acomodava na
capueira. Foi num desses dias que se deu a desgraça, de que talvez
vossemecês tenham tido notícia, porque o caso se espalhou. Moqueca
estava pejada, com a barriga pela boca, e a gente esperava que a
qualquer momento desse cria. Uma tarde apareceu aí no pátio,
latindo, subiu ao copiar e roçou-se nas minhas pernas, dizendo lá
na língua dela que havia no mato um bicho grosso, bom para matar.
Tentei sossegá-la e falei assim: — “Moqueca, você com esse
bucho não aguenta rojão. Vá deitar-se, vá coçar as pulgas e
descansar.” Ela não aceitou o conselho e continuou a puxar-me a
perna da calça com os dentes. Como não havia meio de aquietá-la,
fui buscar a espingarda no jirau, pus a tiracolo o aió, onde
guardava o chumbeiro, o polvarinho e as espoletas. Entramos na
catinga, e aí a pobrezinha começou a mexer-se com dificuldade,
arfando, num trote curto, o focinho para cima, farejando mal. Parece
que havia sinais cruzados de animais diferentes, porque a cachorra ia
e vinha, latindo esmorecida, sem atinar com um rasto. Aborrecido
daqueles manejos, sentei-me, acendi um cigarro e peguei a falar só,
recordando coisas antigas, do tempo em que eu e Cesária vivíamos de
grande. Os latidos enfraqueceram, enfraqueceram, afinal se sumiram.
Pensei no bode, na onça, no papagaio que não mostrou para quanto
prestava porque morreu de fome, no olho coberto de formigas, este
olho que nunca pude encaixar direito no buraco do rosto e assim mesmo
enxerga melhor que o outro. Ora muito bem. Onde andaria o diabo da
Moqueca, pesada, com aquela barriga que estava por acolá, perdida
entre cipós e espinhos, correndo atrás de um vivente ligeiro?
Levantei-me, decidido a voltar para casa, ajeitei no ombro a correia
do aió e a espingarda. A cadelinha que fosse para o inferno: ia
recolher-me, não havia de ficar ali, esperando os caprichos dela.
Ainda levei a mão à orelha, estive um minuto procurando a voz de
Moqueca no barulho da catinga. Afastei-me desanimado, entrei numa
vereda, com o pensamento longe da caça. Ia anoitecendo. Ouvi
pancadas de asas; os olhos de um bacurau desceram e subiram, como
duas tochas. Depois foram miados de gato, roncos de suçuarana, urros
de bois assustados. Tudo se calou. Quando pisei no copiar, estirei a
vista pelo mato e percebi sem querer, muito para lá da ribanceira do
rio, a umas duas léguas daqui pouco mais ou menos, a cachorra
fincando os dentes no sedenho de um bicho acuado junto a um mulungu.
Em redor havia umas coisinhas que não distingui bem. Encostei a
espingarda à cara, dormi na pontaria, a carga bateu na pá do bicho.
Botei-me para ele. Andei, cortei caminho, cheguei a um mulungu, onde
um porco brabo espumava, sangrava e estrebuchava, com vontade de
morrer. A cachorra já tinha morrido e estava num estrago medonho: o
espinhaço quebrado no meio, as tripas de fora, completamente
espatifada. Pelos buracos da barriga tinham saído vários
cachorrinhos que, ali perto, criaturas de boa raça, latiam
danadamente, os dentinhos agarrados no couro do porco. Latiam
direito, em conformidade com o costume. Mas um diferia dos outros:
fazia “Hom! hom! hom!”, muito rouco e muito fanhoso. Pobre da
Moqueca. Um fim tão triste! Fui examinar os cachorrinhos, saber por
que um gorgolejava daquele jeito. Sabem o que havia acontecido? No
momento de estripar a mãe o porco tinha cortado o pescoço dele. E o
infeliz, sem cabeça, queria proceder como os irmãos. Coitado.
Finou-se ali, com poucos minutos de vida, roncando em cima da
obrigação. Quem é bom já nasce feito, não é verdade? O sangue
tem muita força. Escaparam três cachorrinhos.
— Me
arranje um, seu Alexandre, pediu o cego. Estou precisando de guia e
um animal desses vinha a propósito.
— Não
é possível, seu Firmino, respondeu o dono da casa. Andaram por aí
uns tempos, mas desapareceram, acabaram-se. O que tem valia não
dura, seu Firmino.
Graciliano
Ramos, in Histórias de Alexandre
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