quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Meu livro sobre a Espanha


Passou-se o tempo. A guerra começava a ser perdida. Os poetas acompanharam o povo espanhol em sua luta. Federico já tinha sido assassinado em Granada. Miguel Hernández de pastor de cabras tinha se transformado em verbo militante. Em uniforme de soldado dizia seus versos na primeira linha de fogo. Manuel Altolaguirre continuava com suas gráficas. Instalou uma em plena frente do Este, perto de Gerona, num velho mosteiro. Ali foi impresso de maneira singular meu livro España en el corazón. Acho que poucos livros, na história estranha de tantos livros, tiveram gestação e destino tão curiosos.
Os soldados do front aprenderam a manejar os tipos da gráfica. Mas aí faltou o papel. Encontraram um velho moinho e ali decidiram fabricá-lo. Estranha mistura a que foi elaborada entre as bombas que caíam no meio da batalha. Tudo era aproveitado no moinho, desde uma bandeira do inimigo à túnica ensanguentada de um soldado mouro. Apesar dos materiais insólitos e da inexperiência total dos fabricantes, o papel ficou muito bonito. Os poucos exemplares que restaram desse livro assombram pela tipografia e pelas páginas impressas em misteriosa manufatura. Anos depois vi um exemplar desta edição em Washington, na Biblioteca do Congresso, colocado em uma vitrina como um dos livros mais raros do nosso tempo.
Mal meu livro ficou impresso e encadernado, precipitou-se a derrota da República. Milhares de homens fugitivos se derramaram pelas estradas que saíam da Espanha. Era o êxodo dos espanhóis, o acontecimento mais doloroso na história da Espanha.
Com essas filas que marchavam para o desterro iam os sobreviventes do exército do Este, entre eles Manuel Altolaguirre e os soldados que fizeram o papel e imprimiram España en el corazón.
Meu livro era o orgulho desses homens que tinham trabalhado minha poesia num desafio à morte. Soube que muitos tinham preferido carregar sacos com os exemplares impressos aos seus próprios alimentos e roupas. Com os sacos ao ombro empreenderam a longa marcha até a França.
A coluna imensa que caminhava rumo ao desterro foi bombardeada centenas de vezes. Caíram muitos soldados, espalhando-se os livros na estrada. Outros continuaram a fuga infindável. Além da fronteira trataram brutalmente os espanhóis que chegavam ao exílio. Numa fogueira foram imolados os últimos exemplares daquele livro ardente que nasceu e morreu em plena batalha.
Miguel Hernández buscou refúgio na embaixada do Chile, que durante a guerra tinha dado asilo à enorme quantidade de quatro mil franquistas. O embaixador nesse ínterim, Carlos Morla Lynch, negou asilo ao grande poeta mesmo se dizendo seu amigo. Poucos dias depois detiveram-no e o encarceraram. Morreu de tuberculose no calabouço três anos mais tarde. O rouxinol não suportou o cativeiro.
Minha função consular tinha terminado. Por minha participação na defesa da República Espanhola o governo do Chile decidiu afastar-me do cargo.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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