sábado, 12 de agosto de 2017

Cabral entre abelhas

Ilustração: Osvalter


No início dos anos 1990, gravei mais de trinta horas de entrevistas com o poeta João Cabral de Melo Neto. As fitas cassetes definham, hoje, em uma gaveta de meu escritório. As marcas afetivas dessas conversas, porém, nunca se apagaram. Entre as lembranças insistentes está a de certa tarde em que Cabral, disperso, desatento, mal conseguia responder minhas perguntas. Achei melhor desligar o gravador e sugeri: “Podemos tomar um café?”.
Enquanto nos serviam o café, em um silêncio que se assemelhava a uma meditação, o poeta se pôs a me observar. Esperava alguma coisa de mim, mas eu não sabia o que era. “Você está querendo dizer algo que não consegue dizer”, arrisquei. Um discreto sorriso de desafogo se abriu em seu rosto.
Lembrava de uma frase de Plutarco”, o poeta me disse. Frase que lera, anos antes, em A serenidade interior – livro que, desde então, eu também não me canso de reler. Cabral se referia ao trecho do capítulo 5 em que o filósofo, falando da construção da serenidade, evoca a virtude dos homens secos. Plutarco os compara às abelhas, que tiram seu mel da erva mais árida e mais amarga. “Mesmo dos acontecimentos mais espinhosos, os homens serenos sabem tirar algum proveito”, o filósofo escreve.
Adoentado e melancólico, a secura deixara de ser, para Cabral, uma marca de estilo. Ela se transplantara para sua alma. “E de onde você tira, agora, o seu mel?”, ousei perguntar. Observou-me mais um pouco: “Todos dizem que meus versos são secos, mas hoje cogito se eles não são, apesar de tudo, doces”. Lembro que, em seguida, empalideceu, como se as palavras não mais lhe pertencessem.
Essa reviravolta interior, que Cabral me expôs como um tesouro, me volta à memória agora que releio seus poemas na nova edição dos Poemas completos e prosa, organizada e estabelecida por Antonio Carlos Secchin (Nova Aguilar).
O rigoroso Secchin não podia ter escolhido uma abertura mais apropriada para a nova edição: antes mesmo do título, ele estampa o poema “Retrato à sua maneira”, que Vinicius de Moraes dedicou a João Cabral. Diz Vinicius: “Exato e provável/ No friso do tempo/ Adiante Ave/ camarada diamante!”. Vinicius de Moraes nunca se cansou de ironizar a secura da poesia de Cabral. Apesar da amizade, nunca deixou de zombar de seus “poemas de cabra”.
Bem à frente, na página 364, encontro a réplica de João Cabral à provocação do amigo. Ela está em “Resposta a Vinicius de Moraes”, poema no qual, além de se defender, Cabral relativiza a ideia de secura e aspereza que sempre cercou sua poesia. Diz, para quem quiser ler: “Não sou diamante nato/ (...)/ se ele te surge no que faço/ será um diamante opaco/ de quem por incapaz do vago/ quer de toda forma evitá-lo”.
O que os críticos literários leem como uma qualidade positiva, e uma opção estética, Cabral descreve como uma “incapacidade” (do vago) e, em consequência, como uma sina. Ele fala, aqui, do caráter autônomo da poesia, que nem sempre corresponde ao que os poetas dela esperam e, muitas vezes, refuta e desmente seus desejos.
No apêndice “João Cabral por ele mesmo”, o poeta nos fala de sua admiração pelo pintor Joan Miró, cujo ateliê frequentou em Barcelona nos anos 1940 e, depois novamente, nos 1960. Diz-se, sempre, que o pintor catalão foi um grande pensador da pintura. Cabral, no entanto, despreza essa tese. “Miró quase não tem teoria”, diz. “Quando leu meu livrinho sobre ele não entendeu nada.” Refere-se ao ensaio Joan Miró, que publicou em 1950 e que o leitor encontra agora na nova edição da Poesia completa. Também Miró “sofria” de algo cujo significado lhe escapava – sofria de uma insuficiência e dela arrancou sua pintura.
No fundo, Cabral guardava de Vinicius de Moraes uma dupla mágoa. Desgosto porque, em certo momento da vida, Vinicius se desviou da poesia para se entregar à música. Nesse aspecto, João Cabral é duro: “O poeta Vinicius de Moraes seria um grande poeta ou maior se não escrevesse musiquinha popular”. A segunda mágoa, mais intensa, vinha da incapacidade de Vinicius para compreender outra incapacidade: a inaptidão ao vago que, na verdade, é o motor da poesia de Cabral.
Também dos desencontros e das falhas, e não só das virtudes, fazemos muitas coisas. É só voltar a Plutarco, para quem todo homem deve buscar, entre tantas e tantas misérias íntimas, aquele “objeto único” que, apesar de tudo, lhe está destinado. É dessa singularidade que fala a Esfinge na célebre inscrição: “Conhece-te a ti mesmo”. Mas como identificar tal objeto? Diz Plutarco que ele se liga, sempre, a “uma aptidão natural”. Enfatiza, porém, que essa aptidão nem sempre é positiva. Sob esse “objeto único” nos escondemos, com ele fugimos, através dele nos mascaramos. Mas é nesta ferida – e em nenhum outro lugar – que um homem chega a si.
Para Cabral, a pintura de Miró não pode ser reduzida a um punhado de leis. “Senão a leis negativas”, ressalva. Os que veem sua pintura como uma contestação às leis do renascimento, por exemplo, se enganam. “Miró não aborda as leis da composição tradicional para combatê-las”, Cabral argumenta. “O que Miró parece desejar é desfazer-se delas.” Mais do que livrar-se, o pintor desejava “lavar-se” dessas amarras. A pintura de Miró não dá uma resposta à tradição renascentista. Ao contrário, a ignora.
É dessa atitude fundamental de ignorância que também João Cabral parte. Por isso se surpreendia quando, sob a capa seca de seus versos, encontrava o gaguejar da doçura. Incapaz do vago, Cabral fez dessa inaptidão o motor (a potência) de seus versos. Não escreveu contra um velho mundo que não o interessava ou que não conseguia habitar. Em vez disso, limitou-se a inventar outro mundo – e por isso se tornou poeta.
A secura da poesia de João Cabral não é, como em geral se pensa, uma valorização da linguagem – mas, ao contrário, uma afirmação de sua incapacidade para dizer as coisas. Em um pequeno poema, “Anti-Char”, Cabral resume essa ideia: “É uma luta fantasma,/ vazia, contra nada/ não diz a coisa, diz vazio;/ nem diz coisas, é balbucio”.
José Castello, in Sábados inquietos

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