Ilustração: Osvalter
No
início dos anos 1990, gravei mais de trinta horas de entrevistas com
o poeta João Cabral de Melo Neto. As fitas cassetes definham, hoje,
em uma gaveta de meu escritório. As marcas afetivas dessas
conversas, porém, nunca se apagaram. Entre as lembranças
insistentes está a de certa tarde em que Cabral, disperso,
desatento, mal conseguia responder minhas perguntas. Achei melhor
desligar o gravador e sugeri: “Podemos tomar um café?”.
Enquanto
nos serviam o café, em um silêncio que se assemelhava a uma
meditação, o poeta se pôs a me observar. Esperava alguma coisa de
mim, mas eu não sabia o que era. “Você está querendo dizer algo
que não consegue dizer”, arrisquei. Um discreto sorriso de
desafogo se abriu em seu rosto.
“Lembrava
de uma frase de Plutarco”, o poeta me disse. Frase que lera, anos
antes, em A serenidade interior – livro que, desde então,
eu também não me canso de reler. Cabral se referia ao trecho do
capítulo 5 em que o filósofo, falando da construção da
serenidade, evoca a virtude dos homens secos. Plutarco os compara às
abelhas, que tiram seu mel da erva mais árida e mais amarga. “Mesmo
dos acontecimentos mais espinhosos, os homens serenos sabem tirar
algum proveito”, o filósofo escreve.
Adoentado
e melancólico, a secura deixara de ser, para Cabral, uma marca de
estilo. Ela se transplantara para sua alma. “E de onde você tira,
agora, o seu mel?”, ousei perguntar. Observou-me mais um pouco:
“Todos dizem que meus versos são secos, mas hoje cogito se eles
não são, apesar de tudo, doces”. Lembro que, em seguida,
empalideceu, como se as palavras não mais lhe pertencessem.
Essa
reviravolta interior, que Cabral me expôs como um tesouro, me volta
à memória agora que releio seus poemas na nova edição dos Poemas
completos e prosa, organizada e estabelecida por Antonio Carlos
Secchin (Nova Aguilar).
O
rigoroso Secchin não podia ter escolhido uma abertura mais
apropriada para a nova edição: antes mesmo do título, ele estampa
o poema “Retrato à sua maneira”, que Vinicius de Moraes dedicou
a João Cabral. Diz Vinicius: “Exato e provável/ No friso do
tempo/ Adiante Ave/ camarada diamante!”. Vinicius de Moraes nunca
se cansou de ironizar a secura da poesia de Cabral. Apesar da
amizade, nunca deixou de zombar de seus “poemas de cabra”.
Bem
à frente, na página 364, encontro a réplica de João Cabral à
provocação do amigo. Ela está em “Resposta a Vinicius de
Moraes”, poema no qual, além de se defender, Cabral relativiza a
ideia de secura e aspereza que sempre cercou sua poesia. Diz, para
quem quiser ler: “Não sou diamante nato/ (...)/ se ele te surge no
que faço/ será um diamante opaco/ de quem por incapaz do vago/ quer
de toda forma evitá-lo”.
O
que os críticos literários leem como uma qualidade positiva, e uma
opção estética, Cabral descreve como uma “incapacidade” (do
vago) e, em consequência, como uma sina. Ele fala, aqui, do caráter
autônomo da poesia, que nem sempre corresponde ao que os poetas dela
esperam e, muitas vezes, refuta e desmente seus desejos.
No
apêndice “João Cabral por ele mesmo”, o poeta nos fala de sua
admiração pelo pintor Joan Miró, cujo ateliê frequentou em
Barcelona nos anos 1940 e, depois novamente, nos 1960. Diz-se,
sempre, que o pintor catalão foi um grande pensador da pintura.
Cabral, no entanto, despreza essa tese. “Miró quase não tem
teoria”, diz. “Quando leu meu livrinho sobre ele não entendeu
nada.” Refere-se ao ensaio Joan Miró, que publicou em 1950
e que o leitor encontra agora na nova edição da Poesia completa.
Também Miró “sofria” de algo cujo significado lhe escapava –
sofria de uma insuficiência e dela arrancou sua pintura.
No
fundo, Cabral guardava de Vinicius de Moraes uma dupla mágoa.
Desgosto porque, em certo momento da vida, Vinicius se desviou da
poesia para se entregar à música. Nesse aspecto, João Cabral é
duro: “O poeta Vinicius de Moraes seria um grande poeta ou maior se
não escrevesse musiquinha popular”. A segunda mágoa, mais
intensa, vinha da incapacidade de Vinicius para compreender outra
incapacidade: a inaptidão ao vago que, na verdade, é o motor da
poesia de Cabral.
Também
dos desencontros e das falhas, e não só das virtudes, fazemos
muitas coisas. É só voltar a Plutarco, para quem todo homem deve
buscar, entre tantas e tantas misérias íntimas, aquele “objeto
único” que, apesar de tudo, lhe está destinado. É dessa
singularidade que fala a Esfinge na célebre inscrição: “Conhece-te
a ti mesmo”. Mas como identificar tal objeto? Diz Plutarco que ele
se liga, sempre, a “uma aptidão natural”. Enfatiza, porém, que
essa aptidão nem sempre é positiva. Sob esse “objeto único”
nos escondemos, com ele fugimos, através dele nos mascaramos. Mas é
nesta ferida – e em nenhum outro lugar – que um homem chega a si.
Para
Cabral, a pintura de Miró não pode ser reduzida a um punhado de
leis. “Senão a leis negativas”, ressalva. Os que veem sua
pintura como uma contestação às leis do renascimento, por exemplo,
se enganam. “Miró não aborda as leis da composição tradicional
para combatê-las”, Cabral argumenta. “O que Miró parece desejar
é desfazer-se delas.” Mais do que livrar-se, o pintor desejava
“lavar-se” dessas amarras. A pintura de Miró não dá uma
resposta à tradição renascentista. Ao contrário, a ignora.
É
dessa atitude fundamental de ignorância que também João Cabral
parte. Por isso se surpreendia quando, sob a capa seca de seus
versos, encontrava o gaguejar da doçura. Incapaz do vago, Cabral fez
dessa inaptidão o motor (a potência) de seus versos. Não escreveu
contra um velho mundo que não o interessava ou que não conseguia
habitar. Em vez disso, limitou-se a inventar outro mundo – e por
isso se tornou poeta.
A
secura da poesia de João Cabral não é, como em geral se pensa, uma
valorização da linguagem – mas, ao contrário, uma afirmação de
sua incapacidade para dizer as coisas. Em um pequeno poema,
“Anti-Char”, Cabral resume essa ideia: “É uma luta fantasma,/
vazia, contra nada/ não diz a coisa, diz vazio;/ nem diz coisas, é
balbucio”.
José
Castello, in Sábados inquietos
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