sexta-feira, 31 de março de 2017

As laranjas

Primeira lição da psicanálise: se você quiser descobrir segredos, preste atenção nas coisas pequenas, aquelas coisas que ninguém nota. É nelas que se revelam os segredos. Aqui em Campinas, por exemplo, há pessoas que falam “casa de Aurélia”, “o livro de Pedro”, “o aniversário de Margarida”... Quando ouço esse de, já sei que se trata de pessoa ligada à nobreza dos grandes barões do café. E me cubro de cerimônias por me sentir na sala de visitas de um casarão colonial... É nesse insignificante de que se encontra a revelação.
Pois as origens da família do meu pai e da família de minha mãe se revelam no insignificante e banalíssimo ato de chupar laranja. Ah! Vocês pensavam que uma laranja é simplesmente uma laranja! Não é, não. Laranjas do mesmo pé podem ser nobres ou plebeias. Depende do jeito como são comidas. A família de minha mãe chupava laranja de gomo, a família do meu pai chupava laranja de tampa. Você pode imaginar uma senhora da alta sociedade chupando laranja de tampa num jantar? Jamais! Chupar laranja de tampa é coisa de plebeus: a laranja enfiada entre os beiços e os dentes, comprimida pelas mãos para lhe extrair o caldo, as sementes enchendo a boca para serem cuspidas para o lado. Pode-se dizer que chupar laranja de tampa é gostoso e descontraído. Mas elegante é que não é. Laranja de tampa pode-se chupar de pé e mesmo andando. O que não é possível fazer quando se chupa uma laranja de gomo. Não, laranja de gomo não se chupa. Chupar não é elegante. Laranja de gomo se come calmamente. Leva tempo. É preciso estar assentado à mesa. Primeiro é o cuidadoso ato de descascar. Descascada a laranja, segue-se a operação de retirar-lhe a película branca que a cobre. A seguir, abre-se a mesma em duas metades e separam-se os seus gomos. Tomam-se então os gomos, um a um, e vagarosamente se executa a operação cirúrgica de retirar a pele translúcida em que vêm revestidos. Desnudados os gomos, retiram-se-lhes com a ponta da faca os caroços que são colocados elegantemente no prato. Finalmente, come-se a sua carne enquanto se conversa. É trabalhoso comer uma laranja de gomo. Trata-se de um elaborado strip-tease.
Todos da família da minha mãe comiam as laranjas de gomo. Curioso sobre esse costume, procurei explicações com a minha mãe. Ela me respondeu: “É para aproveitar melhor.” De fato, aproveita-se melhor. Mas eu não via razão para se aproveitar tanto quando as laranjeiras estavam cheias de laranjas que se perdiam, comidas pelos passarinhos e insetos e apodrecidas no chão. Não, não fazia sentido. Essa estória de “aproveitar melhor” só faz sentido quando laranjas são poucas e raras, frutas nobres e caras, possivelmente importadas... Mas lá no interior de Minas não se importavam laranjas, não eram raras nem eram caras. Havia um descompasso entre a abundância das laranjas e a necessidade de comê-las de sorte a aproveitar todas as suas garrafinhas. Se você não sabe, as garrafinhas de uma laranja são aquelas minúsculas gotas de caldo que compõem o gomo. Isso não era costume brasileiro. Era costume que vinha das cortes reais da Europa... Lá os nobres, ricos, comiam caras laranjas importadas, de gomo, elegantemente. O povo pobre não comia laranjas, talvez nem soubesse o que eram laranjas... Assim, ao comerem as laranjas de gomo, os membros da família de minha mãe anunciavam suas origens nobres.
Na família do meu pai, ao contrário, todo mundo chupava laranjas de tampa. Meu pai chegava a chupar 15 de uma vez, pendurando suas cascas inteiras no braço esquerdo para que fossem posteriormente usadas para acender fogo, em virtude de suas potências incendiárias. A família do meu pai nada tinha de nobreza. Era gente comum, sem etiquetas, e consta mesmo que havia índios, negros e mascates sírios nas suas origens.
O fato era que a família de minha mãe orgulhosamente se julgava de “sangue azul”, e se meu avô permitiu que minha mãe se casasse com o meu pai, acho que foi porque ele era rico. O dinheiro perdoa um homem que chupa laranjas de tampa... Referiam-se desdenhosamente às pessoas da “prateleira de baixo” e, quando uma delas tinha antecedentes negros, coçavam discretamente a bochecha com o dedo indicador como que para advertir quem não soubesse: “É negro!”
Havia vários outros artifícios para estabelecer com clareza sua superioridade sobre a plebe. Um deles eram os nomes que se davam aos filhos. A plebe batizava seus filhos de Antônio, Manoel, João, José, Maria, Conceição, Tereza, nomes vulgares... Mas, para que não houvesse confusões, nossa diferença nobre já estava anunciada em nossos nomes: Aloísio, Augusto, Silvestre, Jorge, Eugênio, Noêmia, Yolanda, Cecília...
Uma outra marca de nobreza estava nas roupas que tínhamos de vestir. Os meninos da plebe muito cedo começavam a usar calças compridas. Mas a família da minha mãe achava que os filhos nobres tinham de usar calças curtas. Meu irmão me contou da sua vergonha: já tinha 14 anos, suas pernas eram peludas, e tinha de usar calças curtas. Ele andava pelas ruas se espremendo contra as paredes para que ninguém o visse. Naqueles tempos filho não tinha vontade. Minha mãe se justificava dizendo que os meninos do Rio de Janeiro usavam calças curtas. Eu mesmo fui vítima de uma castração. Eu tinha 12 anos e envergonhadamente usava calças curtas. Meu pai e minha mãe me levaram para comprar um terno. Minha mãe pediu um terno de calças curtas. O vendedor respondeu que, para um jovem da minha idade, não havia terno de calças curtas. Ri de felicidade! Finalmente iria realizar o meu desejo de ter um terno de calças compridas! Comprado o terno, minha mãe disse ao vendedor: “Por favor, mande cortar as pernas...” Ela não era culpada. Achava que, assim, me estava dando um toque de nobreza.
Na família do meu pai as portas da rua das casas tinham um buraco pelo qual se passava um barbante amarrado ao trinco. Não era preciso bater. Bastava puxar o barbante que a porta se abria e a pessoa podia entrar pela casa indo até a cozinha onde havia sempre uma cafeteira sobre a chapa do fogão de lenha. No sobradão do meu avô ninguém passava da sala de visitas que ficava na frente, ao fim da escadaria. Era lá que as visitas eram cerimoniosamente recebidas e confinadas. Quem quiser ver a diferença que assista ao filme Casamento grego. A família grega, imensa, pais, irmãos, tios, sobrinhos, todos falando ao mesmo tempo, uma farra de gritos e risadas. A família americana, pai, mãe e filho, tão educados, tão contidos, falando baixinho, tantos sorrisos, nenhuma risada... É preciso ter cuidado para não ofender... Pois era assim mesmo...
Mas, de todas as marcas de nobreza, havia uma que me humilhava mais: os meninos da plebe tinham os seus cabelos raspados à escovinha, com uma franja na testa. Como tínhamos de nos diferenciar dos meninos da “prateleira de baixo”, tínhamos de ter cabelo comprido. O que era motivo de muita vergonha porque, naqueles tempos, cabelo comprido era coisa de menina. Cabelo comprido e calças curtas: era demais... Pois o meu irmão Ismael, já moço, que estudava num internato, veio nos visitar na cidade do trem de ferro, Lambari. Ele não disse nada. Pegou-me pela mão e levou-me a passear. Ao passar por uma barbearia, assentou-me na cadeira e ordenou ao barbeiro: “Escovinha”... Me lembro como se fosse hoje. E até hoje sou grato ao meu irmão Ismael…
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

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