A
mãe olhou o relógio na parede da cozinha.
— Por
que esse miúdo não regressa, sozinho como os outros?
Ia
a sair, hesitou. O frio a empurrou para dentro. Antes, ainda usava a
doença como pedido para que o mundo dela se compaixonasse. Agora,
tinha tanta pouca vontade de viver que nem lhe apetecia ficar doente.
Ainda assim se decidiu. Passou um casaco pelos ombros, bateu a porta.
Estremeceu como se a rua lhe fosse estranha. Como se seu corpo não
soubesse respirar fora de casa. Ia buscar seu filho Marcito.
A
noite já espontava e a escola adormecia, esventrada de gente, vazada
de vozes. Espreitou a sala e viu o filho. Estava como sempre:
pasmado, sozinho. Sentado na carteira, riso como cinza após o fogo.
Ela
nem zangou. Puxou o moço, corrigiu lhe os passos, mão em mão. Sem
palavra, sem suspiro. O miúdo, quase em desculpa:
—
Estava a ver a casa a nascer, mãe.
Regressaram
sob a luz tosca dos postes, despertando os súbitos zumbidos dos
gafanhotos. Marcito arredondava os olhos nos voantes bichos. Tudo
para ele era repetida alumbração. Se surpreendia até no haver do
Sol. Nem entendia ele como na mesma estrada se vai e se vem em
opostos sentidos.
O
moço vivia em pasmo. Tão pouco retirava do momento que, mais tarde,
se lembrava apenas do que não acontecera. Perguntava se fosse o quê
e ele jamais dava acerto. Mesmo o mais simples, o nome. Em cada
momento, invocava um diferente.
— Sou
quem?
A
mãe o desculpava, intrincando:
— É
que a pessoa nunca enche o seu nome. Só morto, cada um se deita no
seu.
Aos
poucos, o miúdo foi deixando de ser alvo de atenção. Evitável
como um assunto doloroso, um luto. Alguns, às vezes, ainda tentavam
diálogo, nas mais singelas perguntas:
— Qual
a sua idade?
— A
idade não é minha — respondia.
O
olhar mortiço, como pavio depois do vento. Mas olhos de bom, fosse a
maldade requerer habilidades. Quem é inteligente pode ser justo?
Na
volta da escola, a mãe confirmava as perdas.
— E
o chapéu, Marcito? Perdeu?
Aquilo
ele não chamava perder. Acreditava, sim, poder ter um pássaro em
lugar de chapéu.
— Era
sombra levezinha, até eu podia ter pensamentos voadores.
A
mãe sorriu, de triste. Pensamentos? A mulher percorria a página da
sebenta, a fiscalizar os deveres de casa. O professor queria saber,
de cada um, o que queria ser quando fosse grande? Ainda olhou, de
soslaio, para o filho. Sem esperança que ele tivesse resposta.
— Mãe,
eu nem quero ser.
A
mãe se sentou, caneta em riste, disfarçando, uma vez mais, a letra
torta do menino. Ela se cansara de recobrir o atraso do moço. Outras
tinham filhos. Ela tinha uma doença. Incurável, definitiva. Mesmo
que ele se extinguisse, na fronteira do suspiro, mesmo assim ela
continuaria exercendo sua maternidade. É se mãe ainda que deixando
de ser. Toda a mãe é vitalícia.
Certo
dia, ela acordou decidida: aquele seria o último dia em que iria
buscar o filho. O deixaria na escola para sempre. Mudaria de casa, de
bairro, de vida. Mas não iria buscar o moço.
Ficou
sentada, metida nos ombros, emagrecida, olhando Marcito arrumar a
derradeira pasta. Na parede, o relógio se excedeu. Ela inerte,
ausentada. Passou se a hora. Marcito a contemplava, arrumadinho,
parecendo nem dar conta do atraso.
— Mãe?
Absorta,
a mulher sonhava, antecipando a futura sucedência. Cinco horas da
tarde ela sairia de casa, mala na mão, rumo ao bar do Joãoane.
Pediria para telefonar.
—
Diretor: estou atrasada.
— Não
tem de quem. Ainda estamos por aqui. Quando vem?
— O
senhor não entendeu. Eu nunca mais vou buscar meu filho.
Desligaria
lentamente, fosse o gesto cimentar a palavra. E iria pelo escuro,
imaginando o moço sentado na carteira, horas e horas, sempre
risonhável, como se nada merecesse nunca reparo. Passariam dias,
semanas, meses. Ela, em outro lugar, se curando do tempo. O menino,
porém, aumentando em si saudade, invasão do vazio.
— Ainda
não me acostumei a mim, só.
— Mãe:
está falar sozinha?
O
moço, na cozinha, a convocou para o mundo. E ela foi, de mão dada,
conduzindo Marcito para a escola. Seus passos se demoravam, em
despedida. Quando, por fim, chegaram ao portão, a mãe sentiu um
aperto. Não era no peito. Mas a mão de seu filho, bem real,
teimando em não se soltar. Nunca fizera antes: o menino retinha,
agora, a presença da mãe. E ele disse, com inesperado tom:
—
Adeus, mãe!
Ela
se surpreendeu. Porquê aquele inusitado adeus, se ele nunca antes
dera uso ao tempo? E ficou olhando o filho se afastando, como se nele
se inaugurasse um outro ser. O moço entrou, engolido pelo edifício.
A mãe não regressou a casa. Ficou ali, sentada no muro, esperando
pelas cinco. A gente passava e a via: com ar pasmado, enquanto
acariciava o ventre, em gesto grato, como só fazem as grávidas.
Mia
Couto, in Na berma de nenhuma estrada
Nenhum comentário:
Postar um comentário