sábado, 14 de janeiro de 2017

O moço não mental

A mãe olhou o relógio na parede da cozinha.
Por que esse miúdo não regressa, sozinho como os outros?
Ia a sair, hesitou. O frio a empurrou para dentro. Antes, ainda usava a doença como pedido para que o mundo dela se compaixonasse. Agora, tinha tanta pouca vontade de viver que nem lhe apetecia ficar doente. Ainda assim se decidiu. Passou um casaco pelos ombros, bateu a porta. Estremeceu como se a rua lhe fosse estranha. Como se seu corpo não soubesse respirar fora de casa. Ia buscar seu filho Marcito.
A noite já espontava e a escola adormecia, esventrada de gente, vazada de vozes. Espreitou a sala e viu o filho. Estava como sempre: pasmado, sozinho. Sentado na carteira, riso como cinza após o fogo.
Ela nem zangou. Puxou o moço, corrigiu lhe os passos, mão em mão. Sem palavra, sem suspiro. O miúdo, quase em desculpa:
Estava a ver a casa a nascer, mãe.
Regressaram sob a luz tosca dos postes, despertando os súbitos zumbidos dos gafanhotos. Marcito arredondava os olhos nos voantes bichos. Tudo para ele era repetida alumbração. Se surpreendia até no haver do Sol. Nem entendia ele como na mesma estrada se vai e se vem em opostos sentidos.
O moço vivia em pasmo. Tão pouco retirava do momento que, mais tarde, se lembrava apenas do que não acontecera. Perguntava se fosse o quê e ele jamais dava acerto. Mesmo o mais simples, o nome. Em cada momento, invocava um diferente.
Sou quem?
A mãe o desculpava, intrincando:
É que a pessoa nunca enche o seu nome. Só morto, cada um se deita no seu.
Aos poucos, o miúdo foi deixando de ser alvo de atenção. Evitável como um assunto doloroso, um luto. Alguns, às vezes, ainda tentavam diálogo, nas mais singelas perguntas:
Qual a sua idade?
A idade não é minha — respondia.
O olhar mortiço, como pavio depois do vento. Mas olhos de bom, fosse a maldade requerer habilidades. Quem é inteligente pode ser justo?
Na volta da escola, a mãe confirmava as perdas.
E o chapéu, Marcito? Perdeu?
Aquilo ele não chamava perder. Acreditava, sim, poder ter um pássaro em lugar de chapéu.
Era sombra levezinha, até eu podia ter pensamentos voadores.
A mãe sorriu, de triste. Pensamentos? A mulher percorria a página da sebenta, a fiscalizar os deveres de casa. O professor queria saber, de cada um, o que queria ser quando fosse grande? Ainda olhou, de soslaio, para o filho. Sem esperança que ele tivesse resposta.
Mãe, eu nem quero ser.
A mãe se sentou, caneta em riste, disfarçando, uma vez mais, a letra torta do menino. Ela se cansara de recobrir o atraso do moço. Outras tinham filhos. Ela tinha uma doença. Incurável, definitiva. Mesmo que ele se extinguisse, na fronteira do suspiro, mesmo assim ela continuaria exercendo sua maternidade. É se mãe ainda que deixando de ser. Toda a mãe é vitalícia.
Certo dia, ela acordou decidida: aquele seria o último dia em que iria buscar o filho. O deixaria na escola para sempre. Mudaria de casa, de bairro, de vida. Mas não iria buscar o moço.
Ficou sentada, metida nos ombros, emagrecida, olhando Marcito arrumar a derradeira pasta. Na parede, o relógio se excedeu. Ela inerte, ausentada. Passou se a hora. Marcito a contemplava, arrumadinho, parecendo nem dar conta do atraso.
Mãe?
Absorta, a mulher sonhava, antecipando a futura sucedência. Cinco horas da tarde ela sairia de casa, mala na mão, rumo ao bar do Joãoane. Pediria para telefonar.
Diretor: estou atrasada.
Não tem de quem. Ainda estamos por aqui. Quando vem?
O senhor não entendeu. Eu nunca mais vou buscar meu filho.
Desligaria lentamente, fosse o gesto cimentar a palavra. E iria pelo escuro, imaginando o moço sentado na carteira, horas e horas, sempre risonhável, como se nada merecesse nunca reparo. Passariam dias, semanas, meses. Ela, em outro lugar, se curando do tempo. O menino, porém, aumentando em si saudade, invasão do vazio.
Ainda não me acostumei a mim, só.
Mãe: está falar sozinha?
O moço, na cozinha, a convocou para o mundo. E ela foi, de mão dada, conduzindo Marcito para a escola. Seus passos se demoravam, em despedida. Quando, por fim, chegaram ao portão, a mãe sentiu um aperto. Não era no peito. Mas a mão de seu filho, bem real, teimando em não se soltar. Nunca fizera antes: o menino retinha, agora, a presença da mãe. E ele disse, com inesperado tom:
Adeus, mãe!
Ela se surpreendeu. Porquê aquele inusitado adeus, se ele nunca antes dera uso ao tempo? E ficou olhando o filho se afastando, como se nele se inaugurasse um outro ser. O moço entrou, engolido pelo edifício. A mãe não regressou a casa. Ficou ali, sentada no muro, esperando pelas cinco. A gente passava e a via: com ar pasmado, enquanto acariciava o ventre, em gesto grato, como só fazem as grávidas.
Mia Couto, in Na berma de nenhuma estrada

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