Estou
nas ruínas de Cartago, na Tunísia. As pedras são romanas, pedaços
de muros construídos depois que a cidade foi destruída por Cipião
Emiliano, em 346 a.C., quando o império cartaginês tornou-se
província de Roma e foi rebatizado de África. Aqui, santo
Agostinho, quando era jovem, ensinou retórica antes de ir para
Milão. Perto dos quarenta anos de idade, atravessou o Mediterrâneo
novamente, para estabelecer-se em Hipona, onde hoje é a Argélia;
morreu ali em 430 d.C., quando os vândalos montavam o cerco à
cidade.
Trouxe
comigo minha edição escolar das Confissões, um volume fino
Classiques Roma, de capa cor de laranja, que meu professor de latim
preferia a todas as outras edições.
Nestas
ruínas, com o livro nas mãos, experimento um certo sentimento de
camaradagem para com o grande poeta renascentista Francesco Petrarca,
que sempre levava consigo uma edição de bolso de Agostinho. Ao ler
as Confissões, sentiu que a voz de Agostinho falava tão
intimamente com ele que, perto do fim da vida, compôs três diálogos
imaginários com o santo, publicados postumamente com o título de
Secretum meum.
Uma
observação a lápis na margem de minha edição comenta os
comentários de Petrarca, como se continuasse aqueles diálogos
imaginários.
É
verdade que algo no tom de Agostinho sugere uma intimidade
confortável, propícia a compartilhar segredos. Quando abro o livro,
minhas anotações na margem trazem-me à lembrança a ampla sala de
aula do Colégio Nacional de Buenos Aires, onde as paredes tinham a
cor da areia cartaginesa, e recordo a voz de meu professor recitando
as palavras de Agostinho, recordo nossos debates pomposos (tínhamos
quatorze, quinze, dezesseis anos?) sobre responsabilidade política e
realidade metafísica. O livro preserva não só a memória daquela
adolescência distante, de meu professor (já morto), das leituras de
Agostinho por Petrarca, que nosso professor lia com aprovação, mas
também de Agostinho e suas salas de aula, da Cartago que foi
construída sobre a Cartago destruída, para ser destruída
novamente. A poeira dessas ruínas é muito mais velha que o livro,
mas o livro também as contém, Agostinho observou e depois escreveu
o que recordava. Entre minhas mãos, o livro relembra duas vezes.
Talvez
tenha sido a sensualidade (que ele tanto tentou reprimir) que fez de
Agostinho um observador tão agudo. Ele parece ter passado a parte
final de sua vida num estado paradoxal de descoberta e distração,
maravilhando-se com o que seus sentidos lhe ensinavam e, no entanto,
pedindo a Deus que afastasse dele as tentações do prazer físico. O
hábito de ler em silêncio de Ambrósio foi observado porque
Agostinho cedeu à curiosidade de seus olhos, e as palavras no jardim
foram ouvidas porque ele se entregou aos odores da relva e à canção
de pássaros invisíveis.
Não
foi apenas a possibilidade de ler em silêncio que surpreendeu
Agostinho. Escrevendo sobre um antigo colega de escola, ele chamou a
atenção para a extraordinária memória do homem, a qual lhe
permitia compor e recompor textos que lera e decorara havia muito
tempo. Era capaz, diz Agostinho, de citar o penúltimo verso de cada
livro de Virgílio “rapidamente, em ordem e de memória.[...] Se
pedíamos então que recitasse o verso anterior a cada um daqueles,
fazia-o. E acreditávamos que seria capaz de recitar Vírgílio de
trás para a frente.[...] Se quiséssemos até mesmo trechos em prosa
de discursos de Cícero que havia armazenado na memória, também
isso era capaz de fazer”. Lendo em silêncio ou em voz alta, esse
homem era capaz de imprimir o texto (na expressão de Cícero que
Agostinho gostava de citar) “nas tabuletas de cera da memória”,
para relembrá-lo e recitá-lo quando quisesse, na ordem que
escolhesse, como se estivesse folheando as páginas de um livro. Ao
recordar o texto, ao trazer à mente um livro que um dia teve nas
mãos, esse leitor pode tornar-se o livro, no qual ele e os outros
podem ler.
Em
1658, aos dezoito anos de idade, estudando na abadia de Port Royal
sob o olhar vigilante dos monges cistercienses, Jean Racine descobriu
por acaso um antigo romance grego, Os amores de Teagenes e
Carícleia, cujas noções de amor trágico ele talvez tenha
relembrado anos depois, ao escrever Andrômaco e Berenice.
Racine levou o livro para a floresta que cercava a abadia e começara
a ler com avidez quando foi surpreendido pelo sacristão, que
arrancou o livro das mãos do rapaz e jogou-o numa fogueira. Pouco
depois, Racine conseguiu achar um outro exemplar, que também foi
descoberto e lançado às chamas. Isso o estimulou a comprar um
terceiro exemplar e a decorar o romance inteiro.
Então
entregou-o ao feroz sacristão, dizendo: “Agora podes queimar este
também, como fizeste com os outros”.
Alberto
Manguel, in Uma história da leitura
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