sexta-feira, 24 de junho de 2016

A Deus e ao Diabo também

Ela então me contou seus pecados; primeiro o primeiro, quando ainda era mocinha; depois o mais feio, que foi uma coisa que ela não queria, foi resistindo, mas você compreende, chegou a um ponto em que não dava mais jeito. O pior é que nessa ocasião tinha um rapaz de quem ela gostava muito e queria ser fiel a ele; “foi sujeira”, confessa, “foi sujeira minha”; mas a verdade é que a coisa veio devagar, foi aceitando presentes, depois não sabia o que seria mais vigarista: negar-se ou dar-se; aliás tinha uma simpatia sincera pelo sujeito; mas gostar mesmo era do outro. E contou mais algumas coisas. Disse uma palavra feia a respeito de si mesma e pediu minha opinião:
Não é verdade? — me olhando nos olhos.
Calei-me; ela insistiu, eu fiz uma evasiva meiga:
Você é um amor.
Então, meu Deus, ela se pôs filosófica. Esticou o longo corpo no sofá, sustentou a cabeça nas mãos:
Esta vida...
E disse coisas; mas sempre queria saber minha opinião. Que eu era um homem vivido, eu sabia as coisas, era um escritor. Ponderei que essas coisas quem sabe melhor é padre; de preferência padre velho, que já ouviu muita história, sabe dar conselho. Disse que não; que padre, ela já sabe o que padre vai dizer, de maneira que não adianta; “não gosto de padres”.
Mas você não é católica?
Era, mas não gostava de padres. Isto é, conheceu um padre que era formidável, aliás, era um frade. “Qual é a diferença?” Dei uma resposta vaga, ela fez “ahn...” e virou-se, ergueu uma longa perna no ar, em um movimento perfeito: “Preciso voltar a fazer ballet , eu ando muito preguiçosa.”
Depois, com o olho triste, confessou que às vezes danava a pensar no futuro, tinha medo. Notei:
— “Pensava no futuro e tinha medo.” Isto é um verso de Augusto dos Anjos, você disse quase igual.
Ficou encantada em ter dito uma coisa parecida com o verso de um poeta; pensei em dizer que ela fazia poesia como monsieur Jordan fazia prosa, mas a citação era muito trivial e, no caso, daria muito trabalho explicar. Agora ela estava deitada com as mãos atrás da cabeça (os seios quase sumiam) e erguendo as pernas fazia flexões de joelho, perfeitas.
Quanto livro você tem aí! Eu sou tão ignorante! Precisava ler muitos livros.
Ergueu-se, tirou um livro da estante. Era Soviet Economic Aid, de Berliner. Pegou outro, era O fantasma da inflação, de Humberto Bastos. Olhou as capas, comentou apenas:
Eu sou burra...
Por que você usa esse penteado assim?
Então ela confessou que tinha a testa muito feia. Aliás achava que tinha muitas coisas feias.
Eu sou cheia de complexos.
Eu disse com sinceridade:
Você devia toda manhã agradecer a Deus, ajoelhada, tudo o que Ele lhe deu.
Ela riu, ensaiou uns passos de ballet , elevou no ar um pé nu:
A Deus ou ao Diabo?
Ao Diabo também.
Sem interromper o exercício, ela me olhou de lado:
Você é gozado.
Rubem Braga, in Ai de ti, Copacabana

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