“Para
que servem esses píncaros elevados da filosofia, em cima dos quais nenhum ser
humano se pode colocar, e essas regras que excedem a nossa prática e as nossas
forças? Vejo frequentes vezes proporem-nos modelos de vida que nem quem os
propõe nem os seus auditores têm alguma esperança de seguir ou, o que é pior,
desejo de o fazer. Da mesma folha de papel onde acabou de escrever uma sentença
de condenação de um adultério, o juiz rasga um pedaço para enviar um bilhetinho
amoroso à mulher de um colega. Aquela com quem acabais de ilicitamente dar uma
cambalhota, pouco depois e na vossa própria presença, bradará contra uma
similar transgressão de uma sua amiga com mais severidade que o faria Pórcia.
E
há quem condene homens à morte por crimes que nem sequer considera
transgressões. Quando jovem, vi um gentil-homem apresentar ao povo, com uma
mão, versos de notável beleza e licenciosidade, e com outra, a mais belicosa
reforma teológica de que o mundo, de há muito àquela parte, teve notícia.
Assim vão os homens. Deixa-se que as leis
e os preceitos sigam o seu caminho: nós tomamos outro, não só por desregramento
de costumes, mas também frequentemente por termos opiniões e juízos que lhes
são contrários.”
Michel
de Montaigne, in Ensaios - Da Vaidade
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