80.
Intervalo doloroso
Tudo me cansa, mesmo o que me não
cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Quem me dera ser uma criança pondo
barcos de papel num tanque de quinta, com um dossel rústico de
entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos
reflexos sombrios da pouca água.
Entre mim e a vida há um vidro ténue.
Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não lhe
posso tocar.
Raciocinar a minha tristeza? Para quê,
se o raciocínio é um esforço? E quem é triste não pode
esforçar-se.
Nem mesmo abdico daqueles gestos
banais da vida de que eu tanto quereria abdicar. Abdicar é um
esforço, e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.
Quantas vezes me punge o não ser o
manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem! Qualquer banal
Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente se me
penetra de eu querê-la e se me penetra até de alheia!
Eu não teria o horror à vida como a
uma Coisa. A noção da vida como um todo não me esmagaria os ombros
do pensamento.
Os meus sonhos são um refúgio
estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.
Sou tão inerte, tão pobrezinho, tão
falho de gestos e de actos.
Por mais que por mim me embrenhe,
todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústia.
Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho
intervalos em que o sonho me foge, então as coisas aparecem-me
nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas
visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me
magoam o conhecê-las durezas. Todos os pesos visíveis de objetos me
pesam por a alma dentro.
A minha vida é como se me batessem
com ela.
Fernando Pessoa, em Livro do Desassossego
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