sexta-feira, 26 de dezembro de 2025

Capítulo 14 — Me tornando eu



Eu não vim aqui por comida. Minha barriga está cheia. Eu não vim aqui por comida. Vim por muito mais.
CANÇÃO RITUALÍSTICA MANDINGA

[…]

A abordagem acadêmica que tínhamos na Juilliard não se conectava ao trabalho da nossa vida. A ela faltava a verdadeira potência do talento artístico, aquilo que muda a humanidade. A arte tem o poder de curar a alma.
Eu precisava de cura. Antes de viajar para a África, tinha descoberto que meu relacionamento não era o que eu pensava. Aquele tempo todo David tivera outros relacionamentos. Eu estava arrasada. Minha irmã Anita me consolou, totalmente confusa com a minha frustração.
Bem, o que fez você pensar que estava em um relacionamento monogâmico?
Porque estávamos, Anita! Eu morava no apartamento dele.
Silêncio.
Morava com ele ou só ficava lá nos fins de semana, quando não tinha aula?
Anita!! Já faz anos que estou com ele — disse eu, ainda chorando.
Viola! Se não houve conversa sobre exclusividade no relacionamento, então não era exclusivo. Sinto muito. Você só pensou que era porque… Espera aí, você o ama?
Anita era bem pragmática. Amável e lógica. A sinceridade dela me fez voltar para a realidade — e doeu pra caralho.
É óbvio que eu o amo, Anita.
Como você sabe? Viola, quantos namorados você já teve? Você não sabe o que é amor.
Queria ter tido aquela conversa antes de começar a namorar. Não sabia que o amor, na verdade, tinha que servir às duas pessoas envolvidas, estabelecer limites e comunicação. Achei que tudo isso acontecesse naturalmente na relação.
Na África, aos 25 anos, senti minha vida ao mesmo tempo começando e terminando. Eu estava em um momento intermediário. A África era um elixir. Comíamos arroz jollof todos os dias fora do hotel e nos ­compounds. O prato era feito de arroz, peixe branco, batata-doce branca cozida no chão, com um molho vermelho picante sobre o peixe. Custava cinco dalais, o que equivalia a cinquenta centavos de dólar. Levávamos nossa própria tigela e eles a enchiam por cinquenta centavos, não importava quão grande fosse. Minha avidez da infância não passara. Nunca me sentia totalmente saciada, então pegava a maior tigela que encontrava. Mulheres armavam uma loja improvisada do lado de fora do hotel. Em geral, comíamos com as mãos. Quase nunca havia talheres. Espremíamos o óleo de palma da comida com a mão direita e a colocávamos na boca. A mão esquerda era usada para… bem… se limpar depois de ir ao banheiro. Isso não dava muito certo para mim.
Fomos a uma luta africana que mais parecia uma peça de teatro. Os participantes marchavam por um campo com tamboreiros logo atrás deles, e a plateia jogava moedas. Depois de fazer isso por algum tempo, eles lutavam. Os uólofes tinham uma dança chamada “dança da tartaruga”, que era equivalente ao twerk. As mulheres se agachavam com o traseiro na direção dos homens e rebolavam, balançavam e se moviam bem rápido, acompanhadas não apenas por tambores, mas por balafons, que eram precursores dos xilofones, e corás, semelhantes a violões.
Tambores feitos de couro de cabra e batiques eram verdadeiras obras de arte. Esculturas eram esculpidas em mogno e geralmente eram presenteadas como oferenda às divindades tradicionais.
A África era como o parquinho de Deus.
Descobri que a mulher que viajara conosco e parecia estar sofrendo, realmente estava mal. Ela tinha perdido a irmã e a mãe em um intervalo de semanas. Não conseguia sair do luto. Estava consumida pela dor. Ela foi à África em busca de conforto, respostas. Assim como todos nós. A enfermeira tímida tentava sair de sua zona de conforto. Era tão tímida que se sentava nos fundos quando íamos ao compound. Eu nunca a notava lá, de tão discreta que era. Às vezes, ela chorava quando pediam que dançasse, mesmo no nosso círculo de reza matinal.
Mas era inegável o encantamento sobrenatural que estava acontecendo em Banjul,Bakau e Serekunda, na Gâmbia, no oeste da África. Era inegável a transformação que estava em andamento. De repente, a ansiedade que sempre existiu no fundo do meu estômago desapareceu por completo. Eu me sentia quase inebriada. Minha pele ficou viva.
Um dia, um grupo de garotas trançou meu cabelo. Enquanto o faziam, elas riam, davam risadinhas. Não deviam ter mais que 15 anos, e eram nove delas. Estavam muito interessadas em saber mais sobre minha irmã Danielle e nosso relacionamento. Não queriam saber da Juilliard, de Nova York, de ser atriz. Não queriam saber sobre o que eu queria me tornar. Queriam saber sobre mim. Apenas sobre mim. Elas davam gritinhos, riam, batiam palmas quando eu contava o detalhe mais irrelevante a meu respeito, como o dia em que Danielle nasceu.
Um dia, fomos ao compound mandinga e um grupo de mulheres apareceu com a maquiagem mais engraçada de todas, usando roupas e sapatos grandes demais para elas e carregando tambores djembê. Chuck explicou que eram comediantes. Fiquei fascinada. Elas riam, faziam caretas e tocavam tambores muito alto, mas mal. Quando tinham a atenção de todos, elas falavam alto, gritavam, ficavam animadas e soltavam risadas exageradas. As pessoas foram se reunindo ao redor delas até que houvesse uma multidão de mulheres se abraçando, aplaudindo, rindo e soltando a voz para cantar: “Eu não vim aqui por comida. Minha barriga está cheia. Eu não vim aqui por comida. Vim por muito mais!”
Então começavam a passar uma cabaça com mingau dentro. Tinha gosto de mingau de pasta de amendoim. Todo mundo remexia o conteúdo, comia um pouco e passava adiante. Essas “comediantes” eram, na verdade, mulheres inférteis.
Na Gâmbia, ter filhos é a maior das bênçãos. Quando alguém é infértil, a crença é que Deus não ouviu o mais profundo desejo dessa pessoa e passou direto por ela. A intenção era fazer o maior barulho possível para que Deus pudesse ouvi-las lá do Céu e enviasse bênçãos. O barulho parou e olhei ao redor, para o rosto de mulheres sorrindo, gargalhando, gritando em desespero maníaco. Estavam tentando acordar Deus.
Eu chorei. Apesar dos papéis que costumo interpretar, não sou de chorar. Mas ali eu chorei. Chorei de novo quando vi uma mulher que parecia a minha mãe dançando na chuva, no casamento da filha. Ela fazia a dança lenjeng e parecia voar. Chorei quando muitas das pessoas que conhecemos nos compounds foram ao hotel para que nos apresentássemos para elas. Recebíamos comida. Elas davam gritos de alegria, riam, choravam diante de tudo o que apresentávamos, por mais que não falassem inglês. Interpretei Topsy de The Colored Museum, de George C. Wolfe. É uma personagem que se imagina em uma festa com Martin Luther King Jr.; Nat Turner bebendo champanhe do sapatinho de Eartha Kitt, Malcolm X tendo uma conversa existencialista. Então, a festa fica tão cheia que o piso começa a tremer, as paredes a se mover, e a sala inteira se ergue do chão e sai rolando e rolando até que desaparece, dentro da cabeça dela.
Sim, menino! Isso mesmo. Tem uma festa acontecendo bem aqui, porque estou dançando ao som da música que nasce da minha loucura. É por isso que, toda vez que ando pela rua, meus quadris balançam de um lado para o outro, porque estou dançando ao som da MINHA loucura! E todo esse tempo achei que tínhamos desistido de nossos tambores. Mas eles ainda estão aqui. Eles estão aqui. No meu jeito de andar, no meu vestido, no meu estilo, no meu sorriso e nos meus olhos. Estão dentro de mim, me conectando a tudo e a todos que já existiram. Então… querido, não tente me rotular ou me definir, porque não sou quem eu era há dez anos ou há dez minutos. Sou tudo isso e mais. E por mais que eu não possa viver na dor de ontem, não posso viver sem ela.”
Eles foram à loucura!!!! Eu havia perdido cada partícula de potência e crença no meu trabalho desde que entrara na Juilliard. Na Gâmbia, em meio ao meu povo, eu a reencontrei. Encontrei a festa dentro de mim. A celebração que precisa acontecer para combater a dor e o trauma da memória. Descobri que não há como criar sem usar a nossa essência.
Por dois anos, tinha pensado que a regra fosse se apagar e se negar. Era o que eu estava fazendo. Perder a voz, o discurso, o jeito de andar, o rosto… perder a negritude. Perder e enterrar a essência do que faz você ser quem é e criar algo sem alegria, mas cheio de técnica.
Depois daquele rugido estrondoso da plateia, Chuck acalmou a todos e nos chamou para formar um círculo de reza. Fizemos uma oração em agradecimento. Agradecemos a eles pela hospitalidade, pela sabedoria. Agradecemos pelo amor e dissemos que nunca os esqueceríamos. Eles choraram, gritaram e começaram achoramingar. Então, começaram a dançar e a pegar os tambores, ali mesmo no hotel. Era, ironicamente, a festa sobre a qual falei em meu monólogo. Estávamos todos pingando de suor. De repente, vi a expressão de Kris World mudar. Ela gritou: “Viola, olha!” A multidão se abriu e nos fundos da sala estava a enfermeira tímida! Eu nem sabia que ela estava ali. Ela veio entrando no círculo, dançando!!! Fazia a dança que aprendemos com os diolas, e perfeitamente!! Estava quase em transe e continuou dançando até estar na frente de Chuck Davis. Ele a encarava, e ela dançou e dançou até que suor e lágrimas rolassem pelo seu rosto.
Fui embora da África seis quilos mais magra, quatro tons mais retinta e tão mudada que eu não poderia voltar a ser o que era.
Sentia-me sempre tão deslocada na Juilliard porque não estava à vontade dentro de mim. Lutava contra uma ideologia sobre o que era um ator, tudo vinha das profundezas da supremacia branca. O conceito dos “clássicos” sendo a base de tudo. A questão é que eu estava na terra dos clássicos. Na África, existe o equivalente de cada instrumento “clássico” conhecido pela humanidade, e são mais antigos do que qualquer instrumento europeu. Havia uma proficiência “técnica” conectada aos tambores, à dança, à música, à contação de histórias. Por que interpretar personagens negros é “limitante”, enquanto atores brancos são “versáteis” ao interpretarem personagens brancos? Por que tenho que ser pequena, magra e mais clara do que uma sacola de papel pardo para ser considerada atraente? Estou interpretando uma personagem. Não é pornografia. Fui alimentada com mentiras por dois anos, e a pior parte é que acreditei nelas porque não conseguia combatê-las.
A África exorcizou esses demônios.
Quando voltei, ninguém me reconhecia. Apresentei meu espetáculo solo no meu terceiro ano com tudo o que aprendi na Gâmbia. Eu podia fazer o que quisesse e queria usar a mim mesma. Foi uma verdadeira catarse. Não carregava mais o peso do discurso, da voz e de tudo que me ensinaram e que estava me sufocando. Eu me guiava pela frase: “Pare de fazer amor com o que está te matando.”
Um ano depois, Mark Schlegel trabalhava em uma agência bastante conceituada na época, a J. Michael Bloom. Todos queriam fazer parte dela. Eles representavam os maiores nomes: Tom Hanks, Alec Baldwin, Wesley Snipes, Ethan Hawke, Sigourney Weaver, Kathleen Turner e Macaulay Culkin. Tinham todo mundo. Também era a agência do momento, provavelmente o equivalente à William Morris, CAA e UTA nos dias de hoje. Mark foi assistir a The Journey of the Fifth Horse quando interpretei uma mulher russa mais velha. Era parte fantasia, parte realismo. Eu usava uma maquiagem pesada. Ele me viu naquele papel e deixou uma mensagem no escritório da Juilliard, dizendo que queria marcar uma reunião comigo.
Eu me encontrei com ele. Mark disse que adorou meu trabalho, que via algo em mim.
Viola, você se destacou. Seu talento e seu poder se destacaram. Queria me encontrar com você.
Nosso encontro foi de sinergia, destino, um momento perfeito. Às vezes, a atmosfera dos encontros entre atores e agentes é algo na linha O que você pode fazer por mim? Você é um agente importante. Consiga audições para eu trabalhar. Me faça ganhar muito dinheiro. Mas ali estava alguém que tinha me visto de verdade, que tinha visto meu talento, minhas possibilidades. Ele me apresentou aos seus colegas da agência e disse:
Queremos fechar um contrato com você.
Tudo bem, vamos lá.
Fora para isso que eu havia entrado na Juilliard. Eles me contrataram antes mesmo que eu me formasse. Quando cheguei às audições no fim do quarto ano, já não tinha mais que me preocupar em encontrar um agente. Amigos da faculdade me disseram: “Você devia ter esperado até depois de ter feito suas cenas, assim provavelmente teria mais opções.”
Eu só precisava de um agente. A relação entre agente e ator é como um casamento. O agente tem que “entender” você. Eu era retinta, não vestia 36, não era considerada “bonita”. Depois de todas as dificuldades e tribulações passadas na Juilliard por esses motivos, pensei que seria justo ter um agente que me “enxergava”. Aquele agente seria a força motriz da minha carreira, meu defensor. Recebi talvez 22 ligações com propostas depois das minhas cenas — o que era um bom número, embora algumas pessoas tenham recebido sessenta —, mas nunca me arrependi de ter assinado contrato antes de fazê-las.
Existe nas redes sociais uma oposição direta entre a fantasia e a realidade do que é ser um ator. A maioria dos atores não quer ser artista, quer mesmo é ser famosa.
Muitos acreditam que se forem bonitos, jovens, se tiverem um ótimo agente, então voilá! É um mercado bem mais instável do que parece. Não há palavras para descrever o que ocorre quando a sorte encontra o talento. E quanto a mim? Eu só queria trabalhar. Não queria voltar para Rhode Island. Para mim, isso seria o mesmo que a morte.
Finalmente faltavam apenas duas semanas para que eu me formasse na Juilliard. As últimas duas semanas seriam o salto para minha nova vida. Depois de quatro anos honrando meu ofício, era o fim. Toda dor, alegria, sofrimento, todos os triunfos, e de repente… a exatas duas semanas do dia da graduação… acordei enjoada!

Viola Davis, in Em Busca de Mim

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