sábado, 4 de janeiro de 2025

O Brutalista | Trailer

Recebei as nossas homenagens

Único homem acordado nesta noite, o apartamento
apertado parece imenso; vagueio desacordado de tudo
e sobretudo em desacordo comigo, único homem
acordado no mundo; o teatro estreito assim vazio

parece largo, perambulo absoluto, príncipe estragado;
não dormir é meu palácio; a Dinamarca, diminuta,
parece dilatar-se enquanto palmilho o ar do quarto.
Vem o dia, e o fantasma de meu pai não me aparece.

Eucanaã Ferraz, em Sentimental

Linus e Lucy: Mudanças

1554 – Cuzco

O alcaide e as orelhas

Desde que o galã fez a ameaça, dom Diego apalpa as orelhas cada manhã, ao despertar, e as mede no espelho. Descobriu que as orelhas crescem quando estão contentes e que as encolhem o frio e as melancolias; que as transformam em ferro em brasa os olhares e as calúnias e que batem asas desesperadamente, como pássaros na gaiola, quando escutam o ruído de uma folha de aço que se afia.
Para pô-las a salvo, dom Diego as traz para Cuzco. Guardas e escravos o acompanham na longa viagem.
Um domingo de manhã, dom Diego sai da missa, mais desfilando que caminhando, seguido por um negrinho que leva seu reclinatório de veludo. De repente um par de olhos se cravam, certeiros, em suas orelhas, e uma capa azul atravessa em rajada a multidão e se desvanece, ondulando, na distância.
Ficam as orelhas como que machucadas.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

Desespero

Não há nada mais triste do que o grito de um trem no silêncio noturno. É a queixa de um estranho animal perdido, único sobrevivente de alguma espécie extinta, e que corre, corre, desesperado, noite em fora, como para escapar à sua orfandade e solidão de monstro.

Mário Quintana, em Sapato Florido

Um Marlboro Vermelho queimando na mão




[...]
E tinha o ônibus escolar. Naquela manhã, como em todas as manhãs, ninguém sentou ao meu lado. Encostei na janela e preenchi minha visão com o exterior, malva com a escuridão do início da manhã: o Motel 6, a lavanderia Kline’s, que ainda não tinha aberto, um Toyota bege sem capô abandonado em frente a um jardim com um balanço de pneu inclinado na terra. À medida que o ônibus acelerava, pedaços da cidade rodopiavam como objetos numa máquina de lavar. Em todo lugar à minha volta, meninos se empurravam. Eu sentia o vento dos braços e pernas deles se movendo rápido atrás da minha nuca, os braços e punhos agitados deslocando o ar. Conhecendo o rosto que tenho, seus traços raros para essa parte do mundo, forcei a cabeça ainda mais contra a janela para evitá-los. Foi aí que vi uma fagulha no meio de um estacionamento lá fora. Só quando ouvi as vozes atrás de mim percebi que a fagulha veio de dentro da minha cabeça. Que alguém enfiou minha cara no vidro.
Fala inglês”, disse o menino com um corte tigelinha nos cabelos amarelos, a papada corada e ondulante.
Os muros mais cruéis são feitos de vidro, Mãe. Eu queria quebrar o vidro e saltar pela janela.
Ei.” O garoto-papada se inclinou, a boca de vinagre do lado do meu rosto. “Você nunca diz nada? Você não fala inglês?” Ele agarrou meu ombro e me girou para ficar de frente para ele. “Olhe pra mim quando eu falo com você.”
Ele tinha só nove anos, mas já dominava o dialeto dos pais americanos perturbados. Os meninos se aglomeraram em torno de mim, sentindo que ia haver diversão. Eu sentia o cheiro das roupas recém-lavadas deles, os amaciantes de lilás e lavanda.
Eles esperaram para ver o que ia acontecer. Quando a única coisa que fiz foi fechar os olhos, o garoto me deu um tapa.
Diz alguma coisa.” Ele enfiou o nariz roliço na minha bochecha ardendo. “Você não consegue dizer pelo menos uma coisa?”
O segundo tapa veio de cima, de outro garoto.
Corte-tigelinha pegou meu queixo e girou minha cabeça na direção dele. “Diz meu nome, então.” Ele piscou, os cílios, longos e louros, quase nada palpitaram. “Que nem a tua mãe disse ontem de noite.”
Lá fora, as folhas caíam, gordas e úmidas como dinheiro sujo, pelas janelas. Eu me voluntariei a uma obediência severa e disse o nome dele.
Deixei o riso deles entrar em mim.
De novo”, ele disse.
Kyle.”
Mais alto.”
“Kyle.” Meus olhos ainda fechados.
Muito bem, putinha.”
Então, como uma virada no clima, começou a tocar uma música no rádio. “Ei, meu primo foi ao show deles!” E assim, do nada, acabou. As sombras deles saíram de cima de mim. Deixei meu nariz escorrer. Olhei para os meus pés, para os tênis que você comprou para mim, aqueles com luzes vermelhas que piscavam na sola quando eu andava.
Minha testa encostada no banco à minha frente, chutei meus tênis, gentilmente no começo, depois mais rápido. Meus tênis entraram em erupção com luzes silenciosas: as menores ambulâncias do mundo, indo a lugar nenhum.

Naquela noite você estava sentada no sofá com uma toalha enrolada no corpo depois do banho, um Marlboro Vermelho queimando na mão. Fiquei ali, segurando minhas pernas contra o peito.
Por quê?” Você olhava fixamente a TV.
Você enfiou o cigarro na xícara de chá e eu imediatamente me arrependi de ter contado. “Por que você ia deixar eles fazerem isso? Não feche os olhos. Você não está dormindo.”
Você pôs teus olhos em mim, fumaça azul rodopiando entre nós.
Que tipo de menino ia deixar fazerem isso?” A fumaça vazava pelos cantos da tua boca. “Você não fez nada.” Você deu de ombros. “Simplesmente deixou.”
Pensei na janela de novo, pensei que tudo parecia uma janela, mesmo o ar entre nós.
Você agarrou meus ombros, a testa pressionada forte contra a minha. “Pare de chorar. Você chora o tempo todo!” Você estava tão perto que eu sentia o cheiro de cinzas e pasta de dentes. “Ninguém está batendo em você ainda. Pare de chorar. Eu disse pra parar, cacete!”
O terceiro tapa daquele dia arremessou meu olhar para um lado, a tela da TV passou num flash diante dos meus olhos antes de minha cabeça girar de volta para encarar você. Teus olhos percorriam meu rosto de um lado para o outro.
E então você me puxou na tua direção, meu queixo apertado contra teu ombro.
Você tem que encontrar um jeito, Cachorrinho”, você disse em meio aos meus cabelos. “Você precisa encontrar, porque meu inglês não é bom o bastante pra te ajudar. Eu não tenho como dizer alguma coisa pra fazer eles pararem. Encontre um jeito. Encontre um jeito ou nunca mais me conte essas coisas, está ouvindo?” Você se afastou. “Você tem que ser um menino de verdade e ser forte. Você tem que mostrar que é forte ou eles vão continuar. Você já está de barriga cheia de inglês.” Você colocou a mão na minha barriga, quase sussurrando. “Você tem que usar isso, ok?”
Sim, Mãe.”
Você penteou meu cabelo de lado, me deu um beijo na testa. Você me estudou, um pouco a mais do que devia, antes de se jogar no sofá gesticulando. “Me pega outro cigarro.”
Quando voltei com o Marlboro e um isqueiro Zippo, a TV estava desligada. Você ficou ali sentada, só olhando a janela azul.
[...]

Ocean Vuong,em Sobre a terra somos belos por um instante

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Emílio Santiago | Dindi

Vem

Porque os dias quebravam contra sua cara, porque
trocara as horas por nada, quis o espinho extremo;
mas, sobre encontrá-lo, ninguém, nada respondia.
Saberia reconhecê-lo em meio a tudo? Algum sinal?
Um cisne gravado na testa? Talvez

bastasse, à distância, atentar nos modos de dobrar
ou desfazer frases um lenço quem sabe, no levar
água à boca, moeda à bolsa, banal, vislumbrasse
um rastro, mesmo sem saber agora, não saberia
nunca?, o que faria do acaso o certo, até que

se manifestasse numa forma inadiável e porque seria
assim avistaria na matéria mínima a sua fábrica,
o fogo que sobreviria contra a indiferença dos dias;
mas as ruas são compridas, era preciso estar mais perto
para perceber; e logo baralhava unhas vozes cabelos

à maneira de uma teia aos pedaços que o fazia adolescente
como um pombo tonto; mesmo sem vestígios, farejava;
o que as costelas dos viadutos escondiam? Ruas becos
subiam-lhe à boca enchendo-o de inocência e desejo;
envenenara-se com o anseio de que a cidade desaguasse

em alguém, não fosse tão só pedras de seus olhos
se ferirem; mais seguro era cegar as vontades; cerrados
os olhos calariam o teatro excessivo dos gestos; talvez
dormisse, mas a insônia vinha branca ácida alta.
Houve uma vez um comandante prussiano

recostado fundo na poltrona cavando com as esporas
de sua bota o mármore da lareira, lembrava,
era mais fácil deixar a solidão crescer no vento
vir ao quadril, lembrava do conto enquanto seus olhos
erravam, esperança em pelo, juízo em vão, fome

de um relance, um fio. Suave, se ainda soubesse, era
beber sem supor alguém após o drinque, gastar-se só,
sem presumir um abraço à saída do cinema, à saída
de sábado, mas ele sacrificaria qualquer ponderação
para persistir no engano de seguir à própria sorte

por mundos que semelhavam estacionamentos
abarrotados de frases moles blogs celulares
fazer amigos impressionar pessoas dicionários
como se fósforos para queimar o tempo o tédio,
saudade de quando não vagava devastado pela

espera, pela espora, dizia o conto, de uma lâmpada
após o labirinto, por aquela presença tão só pressentida
mas que talvez por adivinhada ardia ainda mais; tudo
(um exagero) escarnecia dele, sequioso de que regressasse
quem nem mesmo houvera, Ulisses ou o filho pródigo

caminhando sobre o mar etílico, turbulento. Canções
de amor foram o seu veneno, todas à roda da mesma
víscera, da mesma válvula sentimental, podia senti-la
sem amores nem romances, sangue e bomba só,
como no peito de um bicho que é apenas isso.

Então, exausto, sem nenhum grito, deitou-se sobre
a pedra escura da rua ou da escarpa mais alta da lua
mais miserável e suja e esteve ali, parado, manso,
sem que nada pedisse ao tempo ou pretendesse.
E era só uma noite entre as noites, quando despertou

agitado, deve ter sido assim, pela visão de uns lábios,
vinham acesos, na direção
dos seus.

Eucanaã Ferraz, em Sentimental

O caso da vara

Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano; foi antes de 1850. Passados alguns minutos parou vexado; não contava com o efeito que produzia nos olhos da outra gente aquele seminarista que ia espantado, medroso, fugitivo. Desconhecia as ruas, andava e desandava; finalmente parou. Para onde iria? Para casa, não; lá estava o pai que o devolveria ao seminário, depois de um bom castigo. Não assentara no ponto de refúgio, porque a saída estava determinada para mais tarde; uma circunstância fortuita a apressou. Para onde iria? Lembrou-se do padrinho, João Carneiro, mas o padrinho era um moleirão sem vontade, que por si só não faria cousa útil. Foi ele que o levou ao seminário e o apresentou ao reitor:
Trago-lhe o grande homem que há de ser — disse ele ao reitor.
Venha — acudiu este —, venha o grande homem, contanto que seja também humilde e bom. A verdadeira grandeza é chã. Moço...
Tal foi a entrada. Pouco tempo depois fugiu o rapaz ao seminário. Aqui o vemos agora na rua, espantado, incerto, sem atinar com refúgio nem conselho; percorreu de memória as casas de parentes e amigos, sem se fixar em nenhuma. De repente, exclamou:
Vou pegar-me com Sinhá Rita! Ela manda chamar meu padrinho, diz-lhe que quer que eu saia do seminário... Talvez assim...
Sinhá Rita era uma viúva, querida de João Carneiro; Damião tinha umas ideias vagas dessa situação e tratou de a aproveitar. Onde morava? Estava tão atordoado, que só daí a alguns minutos é que lhe acudiu a casa; era no largo do Capim.
Santo nome de Jesus! Que é isto? — bradou Sinhá Rita, sentando-se na marquesa, onde estava reclinada.
Damião acabava de entrar espavorido; no momento de chegar à casa, vira passar um padre, e deu um empurrão à porta, que por fortuna não estava fechada a chave nem ferrolho. Depois de entrar espiou pela rótula, a ver o padre. Este não deu por ele e ia andando.
Mas que é isto, sr. Damião? — bradou novamente a dona da casa, que só agora o conhecera. — Que vem fazer aqui?
Damião, trêmulo, mal podendo falar, disse que não tivesse medo, não era nada; ia explicar tudo.
Descanse, e explique-se.
Já lhe digo; não pratiquei nenhum crime, isso juro; mas espere.
Sinhá Rita olhava para ele espantada, e todas as crias, de casa, e de fora, que estavam sentadas em volta da sala, diante das suas almofadas de renda, todas fizeram parar os bilros e as mãos. Sinhá Rita vivia principalmente de ensinar a fazer renda, crivo e bordado. Enquanto o rapaz tomava fôlego, ordenou às pequenas que trabalhassem, e esperou. Afinal, Damião contou tudo, o desgosto que lhe dava o seminário; estava certo de que não podia ser bom padre; falou com paixão, pediu-lhe que o salvasse.
Como assim? Não posso nada.
Pode, querendo.
Não — replicou ela abanando a cabeça —, não me meto em negócios de sua família, que mal conheço; e então seu pai, que dizem que é zangado!
Damião viu-se perdido. Ajoelhou-se-lhe aos pés, beijou-lhe as mãos, desesperado.
Pode muito, Sinhá Rita; peço-lhe pelo amor de Deus, pelo que a senhora tiver de mais sagrado, por alma de seu marido, salve-me da morte, porque eu mato-me, se voltar para aquela casa.
Sinhá Rita, lisonjeada com as súplicas do moço, tentou chamá-lo a outros sentimentos. A vida de padre era santa e bonita, disse-lhe ela; o tempo lhe mostraria que era melhor vencer as repugnâncias e um dia... Não, nada, nunca! redarguia Damião, abanando a cabeça e beijando-lhe as mãos; e repetia que era a sua morte. Sinhá Rita hesitou ainda muito tempo; afinal perguntou-lhe por que não ia ter com o padrinho.
Meu padrinho? Esse é ainda pior que papai; não me atende, duvido que atenda a ninguém...
Não atende? — interrompeu Sinhá Rita ferida em seus brios. — Ora, eu lhe mostro se atende ou não...
Chamou um moleque e bradou-lhe que fosse à casa do sr. João Carneiro chamá-lo, já e já; e se não estivesse em casa, perguntasse onde podia ser encontrado, e corresse a dizer-lhe que precisava muito de lhe falar imediatamente.
Anda, moleque.
Damião suspirou alto e triste. Ela, para mascarar a autoridade com que dera aquelas ordens, explicou ao moço que o sr. João Carneiro fora amigo do marido e arranjara-lhe algumas crias para ensinar. Depois, como ele continuasse triste, encostado a um portal, puxou-lhe o nariz, rindo:
Ande lá, seu padreco, descanse que tudo se há de arranjar.
Sinhá Rita tinha quarenta anos na certidão de batismo, e 27 nos olhos. Era apessoada, viva, patusca, amiga de rir; mas, quando convinha, brava como diabo. Quis alegrar o rapaz, e, apesar da situação, não lhe custou muito. Dentro de pouco, ambos eles riam, ela contava-lhe anedotas, e pedia-lhe outras, que ele referia com singular graça. Uma destas, estúrdia, obrigada a trejeitos, fez rir a uma das crias de Sinhá Rita, que esquecera o trabalho, para mirar e escutar o moço. Sinhá Rita pegou de uma vara que estava ao pé da marquesa, e ameaçou-a:
Lucrécia, olha a vara!
A pequena abaixou a cabeça, aparando o golpe, mas o golpe não veio. Era uma advertência; se à noitinha a tarefa não estivesse pronta, Lucrécia receberia o castigo do costume. Damião olhou para a pequena; era uma negrinha, magricela, um frangalho de nada, com uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava 11 anos. Damião reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação. Teve pena da negrinha, e resolveu apadrinhá-la, se não acabasse a tarefa. Sinhá Rita não lhe negaria o perdão... Demais, ela rira por achar-lhe graça; a culpa era sua, se há culpa em ter chiste.
Nisto, chegou João Carneiro. Empalideceu quando viu ali o afilhado, e olhou para Sinhá Rita, que não gastou tempo com preâmbulos. Disse-lhe que era preciso tirar o moço do seminário, que ele não tinha vocação para a vida eclesiástica, e antes um padre de menos que um padre ruim. Cá fora também se podia amar e servir a Nosso Senhor. João Carneiro, assombrado, não achou que replicar durante os primeiros minutos; afinal, abriu a boca e repreendeu o afilhado por ter vindo incomodar “pessoas estranhas”, e em seguida afirmou que o castigaria.
Qual castigar, qual nada! — interrompeu Sinhá Rita. — Castigar por quê? Vá, vá falar a seu compadre.
Não afianço nada, não creio que seja possível...
Há de ser possível, afianço eu. Se o senhor quiser — continuou ela com certo tom insinuativo —, tudo se há de arranjar. Peça-lhe muito, que ele cede. Ande, sr. João Carneiro, seu afilhado não volta para o seminário; digo-lhe que não volta...
Mas, minha senhora...
Vá, vá.
João Carneiro não se animava a sair, nem podia ficar. Estava entre um puxar de forças opostas. Não lhe importava, em suma, que o rapaz acabasse clérigo, advogado ou médico, ou outra qualquer cousa, vadio que fosse; mas o pior é que lhe cometiam uma luta ingente com os sentimentos mais íntimos do compadre, sem certeza do resultado; e, se este fosse negativo, outra luta com Sinhá Rita, cuja última palavra era ameaçadora: “digo-lhe que ele não volta”. Tinha de haver por força um escândalo. João Carneiro estava com a pupila desvairada, a pálpebra trêmula, o peito ofegante. Os olhares que deitava a Sinhá Rita eram de súplica, mesclados de um tênue raio de censura. Por que lhe não pedia outra cousa? Por que lhe não ordenava que fosse a pé, debaixo de chuva, à Tijuca, ou Jacarepaguá? Mas logo persuadir ao compadre que mudasse a carreira do filho... Conhecia o velho; era capaz de lhe quebrar uma jarra na cara. Ah! se o rapaz caísse ali, de repente, apoplético, morto! Era uma solução — cruel, é certo, mas definitiva.
Então? — insistiu Sinhá Rita.
Ele fez-lhe um gesto de mão que esperasse. Coçava a barba, procurando um recurso. Deus do céu! um decreto do papa dissolvendo a Igreja, ou, pelo menos, extinguindo os seminários, faria acabar tudo em bem. João Carneiro voltaria para casa e ia jogar os três-setes. Imaginai que o barbeiro de Napoleão era encarregado de comandar a batalha de Austerlitz... Mas a Igreja continuava, os seminários continuavam, o afilhado continuava cosido à parede, olhos baixos, esperando, sem solução apoplética.
Vá, vá — disse Sinhá Rita dando-lhe o chapéu e a bengala.
Não teve remédio. O barbeiro meteu a navalha no estojo, travou da espada e saiu à campanha. Damião respirou; exteriormente deixou-se estar na mesma, olhos fincados no chão, acabrunhado. Sinhá Rita puxou-lhe desta vez o queixo.
Ande jantar, deixe-se de melancolias.
A senhora crê que ele alcance alguma cousa?
Há de alcançar tudo — redarguiu Sinhá Rita cheia de si. — Ande, que a sopa está esfriando.
Apesar do gênio galhofeiro de Sinhá Rita, e do seu próprio espírito leve, Damião esteve menos alegre ao jantar que na primeira parte do dia. Não fiava do caráter mole do padrinho. Contudo, jantou bem; e, para o fim, voltou às pilhérias da manhã. À sobremesa, ouviu um rumor de gente na sala, e perguntou se o vinham prender.
Hão de ser as moças.
Levantaram-se e passaram à sala. As moças eram cinco vizinhas que iam todas as tardes tomar café com Sinhá Rita, e ali ficavam até o cair da noite.
As discípulas, findo o jantar delas, tornaram às almofadas do trabalho. Sinhá Rita presidia a todo esse mulherio de casa e de fora. O sussurro dos bilros e o palavrear das moças eram ecos tão mundanos, tão alheios à teologia e ao latim, que o rapaz deixou-se ir por eles e esqueceu o resto. Durante os primeiros minutos, ainda houve da parte das vizinhas certo acanhamento; mas passou depressa. Uma delas cantou uma modinha, ao som da guitarra, tangida por Sinhá Rita, e a tarde foi passando depressa. Antes do fim, Sinhá Rita pediu a Damião que contasse certa anedota que lhe agradara muito. Era a tal que fizera rir Lucrécia.
Ande, sr. Damião, não se faça de rogado, que as moças querem ir embora. Vocês vão gostar muito.
Damião não teve remédio senão obedecer. Malgrado o anúncio e a expectação, que serviam a diminuir o chiste e o efeito, a anedota acabou entre risadas das moças. Damião, contente de si, não esqueceu Lucrécia e olhou para ela, a ver se rira também. Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa. Não ria; ou teria rido para dentro, como tossia.
Saíram as vizinhas, e a tarde caiu de todo. A alma de Damião foi-se fazendo tenebrosa, antes da noite. Que estaria acontecendo? De instante a instante, ia espiar pela rótula, e voltava cada vez mais desanimado. Nem sombra do padrinho. Com certeza, o pai fê-lo calar, mandou chamar dous negros, foi à polícia pedir um pedestre, e aí vinha pegá-lo à força e levá-lo ao seminário. Damião perguntou a Sinhá Rita se a casa não teria saída pelos fundos; correu ao quintal, e calculou que podia saltar o muro. Quis ainda saber se haveria modo de fugir para a rua da Vala, ou se era melhor falar a algum vizinho que fizesse o favor de o receber. O pior era a batina; se Sinhá Rita lhe pudesse arranjar um rodaque, uma sobrecasaca velha... Sinhá Rita dispunha justamente de um rodaque, lembrança ou esquecimento de João Carneiro.
Tenho um rodaque do meu defunto — disse ela, rindo —, mas para que está com esses sustos? Tudo se há de arranjar, descanse.
Afinal, à boca da noite, apareceu um escravo do padrinho, com uma carta para Sinhá Rita. O negócio ainda não estava composto; o pai ficou furioso e quis quebrar tudo; bradou que não, senhor, que o peralta havia de ir para o seminário, ou então metia-o no Aljube ou na presiganga. João Carneiro lutou muito para conseguir que o compadre não resolvesse logo, que dormisse a noite, e meditasse bem se era conveniente dar à religião um sujeito tão rebelde e vicioso. Explicava na carta que falou assim para melhor ganhar a causa. Não a tinha por ganha; mas no dia seguinte lá iria ver o homem, e teimar de novo. Concluía dizendo que o moço fosse para a casa dele.
Damião acabou de ler a carta e olhou para Sinhá Rita. “Não tenho outra tábua de salvação”, pensou ele. Sinhá Rita mandou vir um tinteiro de chifre, e na meia folha da própria carta escreveu esta resposta: “Joãozinho, ou você salva o moço, ou nunca mais nos vemos.” Fechou a carta com obreia, e deu-a ao escravo, para que a levasse depressa. Voltou a reanimar o seminarista, que estava outra vez no capuz da humildade e da consternação. Disse-lhe que sossegasse, que aquele negócio era agora dela.
Hão de ver para quanto presto! Não, que eu não sou de brincadeiras!
Era a hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os; todas as discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia estava ainda à almofada, meneando os bilros, já sem ver; Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não estava acabada, ficou furiosa, e agarrou-a por uma orelha.
Ah! malandra!
Nhanhã, nhanhã! pelo amor de Deus! por Nossa Senhora que está no céu.
Malandra! Nossa Senhora não protege vadias!
Lucrécia fez um esforço, soltou-se das mãos da senhora, e fugiu para dentro; a senhora foi atrás e agarrou-a.
Anda cá!
Minha senhora, me perdoe! — tossia a negrinha.
Não perdoo, não. Onde está a vara?
E tornaram ambas à sala, uma presa pela orelha, debatendo-se, chorando e pedindo; a outra dizendo que não, que a havia de castigar.
Onde está a vara?
A vara estava à cabeceira da marquesa, do outro lado da sala. Sinhá Rita, não querendo soltar a pequena, bradou ao seminarista:
Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?
Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. Sim, tinha jurado apadrinhar a pequena, que por causa dele atrasara o trabalho...
Dê-me a vara, sr. Damião!
Damião chegou a caminhar na direção da marquesa. A negrinha pediu-lhe então por tudo o que houvesse mais sagrado, pela mãe, pelo pai, por Nosso Senhor...
Me acuda, meu sinhô moço!
Sinhá Rita, com a cara em fogo e os olhos esbugalhados, instava pela vara, sem largar a negrinha, agora presa de um acesso de tosse. Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário! Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita.

Machado de Assis, em Gazeta de Notícias, 1º de fevereiro de 1891

Téo & O Mini Mundo

Os trovões de antigamente

Estou dormindo no antigo quarto de meus pais; as duas janelas dão para o terreiro onde fica o imenso pé de fruta-pão, à cuja sombra cresci. O desenho de suas folhas recorta-se contra o céu; essa imagem das folhas do fruta-pão recortadas contra o céu é das mais antigas de minha infância, do tempo em que eu ainda dormia em uma pequena cama cercada de palhinha junto à janela da esquerda.
A tarde está quente. Deito-me um pouco para ler, mas deixo o livro, fico a olhar pela janela. Lá fora, uma galinha cacareja, como antigamente. E essa trovoada de verão é tão Cachoeiro, é tão minha casa em Cachoeiro! Não, não é verdade que em toda parte do mundo os trovões sejam iguais. Aqui os morros lhe dão um eco especial, que prolonga seu rumor. A altura e a posição das nuvens, do vento e dos morros que ladeiam as curvas do rio criam essa ressonância em que me reconheço menino, assustado e fascinado pela visão dos relâmpagos, esperando a chegada dos trovões e depois a chuva batendo grossa lá fora, na terra quente, invadindo a casa com seu cheiro. Diziam que São Pedro estava arrastando móveis, lavando a casa; e eu via o padroeiro de nossa terra, com suas barbas, empurrando móveis imensos, mas iguais aos de nossa casa, no assoalho do céu — certamente também feito assim, de tábuas largas. Parece que eu não acreditava na história, sabia que era apenas uma maneira de dizer, uma brincadeira, mas a imagem de São Pedro de camisolão empurrando um grande armário preto me ficou na memória.
Nossa casa era bem bonita, com varanda, caramanchão e o jardim grande ladeando a rua. Lembro-me confusamente de alguns canteiros, algumas flores e folhagens desse jardim que não existe mais; especialmente de uma grande touceira de espadas de São Jorge que a gente chamava apenas de “talas”; e, lá no fundo, o precioso pé de saboneteira que nos fornecia bolas pretas para o jogo de gude. Era uma grande riqueza, uma árvore tão sagrada como a fruta-pão e o cajueiro do alto do morro, árvores de nossa família, mas conhecidas por muita gente na cidade; nós também não conhecíamos os pés de carambola das Martins ou as mangueiras do Dr. Mesquita?
Sim, nossa casa era muito bonita, verde, com uma tamareira junto à varanda, mas eu invejava os que moravam do outro lado da rua, onde as casas dão fundos para o rio. Como a casa das Martins, como a casa dos Leão, que depois foi dos Medeiros, depois de nossa tia, casa com varanda fresquinha dando para o rio.
Quando começavam as chuvas a gente ia toda manhã lá no quintal deles ver até onde chegara a enchente. As águas barrentas subiam primeiro até a altura da cerca dos fundos, depois às bananeiras, vinham subindo o quintal, entravam pelo porão. Mais de uma vez, no meio da noite, o volume do rio cresceu tanto que a família defronte teve medo.
Então vinham todos dormir em nossa casa. Isso para nós era uma festa, aquela faina de arrumar camas nas salas, aquela intimidade improvisada e alegre. Parecia que as pessoas ficavam todas contentes, riam muito; como se fazia café e se tomava café tarde da noite! E às vezes o rio atravessava a rua, entrava pelo nosso porão, e me lembro que nós, os meninos, torcíamos para ele subir mais e mais. Sim, éramos a favor da enchente, ficávamos tristes de manhãzinha quando, mal saltando da cama, íamos correndo para ver que o rio baixara um palmo — aquilo era uma traição, uma fraqueza do Itapemirim. Às vezes chegava alguém a cavalo, dizia que lá para cima, pelo Castelo, tinha caído chuva muita, anunciava água nas cabeceiras, então dormíamos sonhando que a enchente ia outra vez crescer, queríamos sempre que aquela fosse a maior de todas as enchentes.
E naquelas tardes as trovoadas tinham esse mesmo ronco prolongado entre morros, diante das duas janelas do quarto de meus pais; eles trovejavam sobre nosso telhado e nosso pé de fruta-pão, os grandes, grossos trovões familiares de antigamente, os bons trovões do velho São Pedro.

Rubem Braga, em Ai de ti, Copacabana

Boato

As pessoas gostam de imaginar coisas. Quando foi anunciado que a princesa Diana da Inglaterra estava com uma doença nervosa que a fez emagrecer, e como o analista de Bagé foi visto no aeroporto do Rio de janeiro embarcando num voo internacional com sua garrafa térmica, logo surgiu o boato de que os dois fatos tinham ligação. Segundo o próprio analista, “pra boato e briga em bolicho, basta um cochicho”. A propósito, o analista de Bagé realça a importância sociológica da garrafa térmica, que aumentou em muito a mobilidade do gaúcho – já que chaleira e lenha vermelha são difíceis de carregar – e é hoje a segunda maior responsável pela evasão de gaúchos para outros estados, depois do governo.
Dizem que, apesar de um problema na alfândega de Londres – os pelegos e o fumo em corda foram confiscados para exame pelas autoridades sanitárias e o facão ficou – o analista de Bagé foi recebido “como vipe, tchê” e levado às pressas para o palácio, já que sua viagem fora a pedido da família Real. Qual teria sido a sua impressão de Lady Di?
Aquilo é potranca pra três guri e uma guaiaca. Quando a gente pensa que tá terminando, ainda tem mais. Oigalê raça troncuda!
Mas o analista de Bagé observa ria que a boa estrutura óssea da moça salta, literalmente, aos olhos, porque de carne não tinha mais quase nada. Aliás, recorreram ao analista de Bagé quando o último recurso, a acupuntura, foi descartado por falta do que espetar. Embora a sua crescente reputação internacional, o analista de Bagé só é chamado no fim de uma escalada bem definida: medicina convencional, curandeirismo, acupuntura e ele.
De acordo com o boato, antes de falar com a paciente, o analista de Bagé teria pedido um exame físico para investigar a possibilidade de que a tristeza da princesa tivesse alguma causa anatômica.
Impossible, sir. Nenhum homem pode examinar o corpo da princesa, muito menos um plebeu e muito menos de Bagé.
A princesa não. O príncipe.
No fim, ainda segundo a fantasia das pessoas, o analista de Bagé, depois de ouvir a princesa contar seus problemas, suas angústias e inquietações, teria diagnostica do: “Frescura.” E teria receitado uma dieta específica. Co m alguma dificuldade, pois seu inglês é da fronteira. Quer dizer, igual ao espanhol, só com o agá mais aspirado.
Foi más duro que ferra cavalo de estátua, tchê. A indiada não queria entendê o que é mogango com leite gordo!

Luís Fernando Veríssimo, em O Analista de Bagé

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

Seu Pereira e Coletivo 401 • Eu não sou boa influência pra você

Canção Pensativa

Um toque da solidão, e um dedo
severo me traz à realidade: não depender
dos meus amores, não me enfeitar
demais com sua graça, mas ver
que cada um de nós é um coração sozinho.

Cada um de nós perenemente
é um espelho a se mirar, sabendo
que mesmo se nesse leito frio e branco
um outro amor quer derramar-se em nós,
entre gélido cristal e alma ardente
levantam-se paredes para sempre.

(E para sempre
a amante solidão nos chama e abraça.)

Lya Luft, em Secreta Mirada

Nominedômine

[...]
Mas, por aí, o frei Florduardo já se chegava, bastou só levantar a mão, para atenção: e o Nominedômine se ajoelhou de vez, aos pés dele, prostrou a cara. — “Pode ir, meu filho. Deus te abençoe…” — o frade falou. E o Nominedômine se levantou e foi puxando, vagaroso, pela beira da igreja, de olhos postos, rezando cantado em latim o Credo e o Padre-Nosso, com voz tão enfadonha. À porta, se voltou e declarou assim inesperado: — “Olha o responsório! Olha o falimento do fim, cambada!” Daí, se foi. Dava dó. Quem sabe ele não estava pressentindo um fiapo dos tempos? Pedro Orósio ainda veio cá fora, perseguí-lo com a vista. Embora, ô cujo para comer estrada: rumou, rumou, era aquela terrível velocidade, dum lado e doutro não queria saber de nada. Tirou dali, desceu, cortou a várzea, subiu como quem ia para a Lagôa, pelo Bento-Velho. Já estava alongado demais. Por fim, foi para o morro, adversamente, abriu um furozinho preto no horizonte, por ele se passou, e se sumiu do mundo.

Guimarães Rosa, em O recado do Morro

Para viver um grande amor

Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso – para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... – não tem nenhum valor.
Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro – seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada – para viver um grande amor.
Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o “velho amigo”, que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor.
Para viver um grande amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fieldade – para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.
Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô – para viver um grande amor.
Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito – peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.
É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista – muito mais, muito mais que na modista! – para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...
Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs - comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica, e gostosa, farofinha, para o seu grande amor?
Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto – pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer “baixo– seu, a amada sente – e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia – para viver um grande amor.
É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que – que não quer nada com o amor.
Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva escura e desvairada não se souber achar a bem-amada – para viver um grande amor.

Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor

O impagável Quino

Sobre a Tranquilidade da Alma

VIII

1. Passemos agora à consideração do patrimônio, essa fonte mais fértil das dores humanas: se compararmos todos os outros males de que sofremos – mortes, enfermidades, medos, arrependimentos, dores e fadigas – com as misérias que o nosso dinheiro nos inflige, este último pesará muito mais do que todos os outros.
2. Reflita, pois, quanto menos dor é nunca ter tido dinheiro do que tê-lo perdido: assim entenderemos que quanto menos a pobreza tem a perder, menos tormento tem com que nos afligir: pois você está enganado se supõe que os ricos suportam suas perdas com maior espírito do que os pobres: uma ferida causa a mesma quantidade de dor ao maior e ao menor corpo. 3. Foi um belo ditado de Bion, “que dói aos carecas tanto quanto aos cabeludos terem seus cabelos arrancados”: você pode estar certo de que o mesmo se aplica aos ricos e aos pobres, de que seu sofrimento é igual: pois seu dinheiro se agarra a ambas as classes e não pode ser arrancado sem que eles o sintam: no entanto, é mais suportável, como já disse, e mais fácil não ganhar propriedade do que perdê-la, e, portanto, verá que aqueles sobre os quais a Fortuna nunca sorriu são mais alegres do que aqueles sobre os quais ela desertou.
4. Diógenes, um homem de espírito infinito, percebeu isso e impossibilitou que lhe fosse tirado qualquer coisa. Chame isso de precariedade, miséria, carência, necessidade ou qualquer nome desdenhoso que lhe agrade: Considerarei tal homem feliz, a menos que você me encontre outro que não possa perder nada. Se não me engano, é um atributo real entre tantos avarentos, malfeitores e ladrões, ser o único homem que não pode ser ferido.
5. Se alguém duvida da felicidade de Diógenes, duvida se a posição dos deuses imortais é de felicidade plena, pois eles não têm fazendas ou jardins, não têm propriedades de valor arrendadas a inquilinos desconhecidos, nem grandes títulos de crédito no mercado monetário. Não se envergonha de si mesmo, você que olha as riquezas com admiração estupefata? Olhe para o universo: você verá os deuses totalmente desprovidos de propriedade, e não possuindo qualquer coisa, ainda que deem tudo.
6. Você acha que esse homem que se despojou de todos os acessórios fortuitos é um pobre, ou um semelhante aos deuses imortais? Você considera Demétrio, o libertado de Pompeu, um homem feliz, aquele que não tinha vergonha de ser mais rico do que Pompeu, que era diariamente munido de uma lista com o número de seus escravos, como um general faz com o do seu exército, embora há muito merecesse que todas as suas riquezas consistissem num par de subordinados, e numa cela mais espaçosa do que os outros escravos?
7. Mas o único escravo de Diógenes fugiu dele, e quando foi apontado para Diógenes, ele não achou que valesse a pena buscá-lo de volta. “É uma vergonha”, disse ele, “que Manes possa viver sem Diógenes, mas que Diógenes não possa viver sem Manes”. Ele me parece ter dito: “Fortuna, não se intrometa: Diógenes não tem mais nada que lhe pertença. O meu escravo fugiu? Não, ele se afastou de mim como um homem livre”.
8. Uma casa cheia de escravos requer comida e roupa: as barrigas de tantas criaturas famintas têm que ser preenchidas: temos que comprar roupas para eles, temos que vigiar suas mãos mais ladras, e temos que fazer uso dos serviços de pessoas que nos lamentam e nos execram. Quão mais feliz é aquele que não deve nada a ninguém, a não ser o que se pode privar com a maior facilidade!
9. Mas, como não temos tal força de espírito, devemos, em todo caso, diminuir a extensão dos nossos bens, para estarmos menos expostos aos ataques da sorte: aqueles homens cujos corpos podem estar dentro do abrigo de suas armaduras, estão mais aptos para a guerra do que aqueles cujo enorme tamanho se estende por toda parte para além dela, e os expõe a feridas: a melhor quantidade de bens a ter é aquela que é suficiente para nos afastar da pobreza, mas que ainda não nos deixei muito distante dela.

Sêneca, em Sobre a Tranquilidade da Alma

A leste do Éden | 7


[ 1 ]

Adam passou seus cinco anos seguintes fazendo as coisas que um exército usa para impedir que seus homens enlouqueçam — polimento interminável de metais e couros, parada, ordem-unida e escolta, cerimônia de clarim e bandeira, um balé de ocupações para homens que não estão fazendo nada. Em 1886, estourou a grande greve das fábricas de carne enlatada em Chicago e o regimento de Adam foi treinado, mas a greve se resolveu antes que ele fosse necessário. Em 1888, os índios Seminole, que nunca haviam assinado um tratado de paz, ficaram indóceis e agitados, e a cavalaria foi treinada de novo; mas os Seminole se retiraram para os seus charcos e ficaram quietos, e a rotina sonâmbula se instalou entre as tropas de novo.
O intervalo de tempo é uma questão estranha e contraditória na mente. Seria sensato supor que um tempo de rotina ou um tempo sem acontecimentos pareceria interminável. Deveria ser assim, mas não é. São os tempos monótonos e parados que não têm nenhuma duração. Um tempo salpicado de interesses, marcado pela tragédia, recheado de alegrias — este é o tempo que parece longo na memória. E é assim quando se pensa a respeito. A falta de acontecimentos não tem postes para marcar sua duração. Entre o nada e o nada não há tempo algum.
O segundo período de cinco anos de Adam acabou antes que ele se desse conta. Era o final de 1890 e ele foi dispensado com divisas de sargento no Presídio em São Francisco. Cartas entre Charles e Adam tinham se tornado uma grande raridade, mas Adam escreveu ao irmão pouco antes de dar baixa. “Desta vez estou indo para casa”, e foi a última coisa que Charles soube dele por mais de três anos.
Adam esperou que o inverno passasse, subindo o rio lentamente até Sacramento, vagueando no vale do San Joaquin e quando a primavera chegou Adam não tinha mais nenhum dinheiro. Enrolou um cobertor e iniciou uma lenta jornada para o leste, às vezes caminhando e às vezes com grupos de homens nos tirantes debaixo de trens de carga lentos. À noite, ele acampava com vagabundos nos arredores das cidades. Aprendeu a mendigar, não por dinheiro, mas por comida. E antes que percebesse ele mesmo era um vagabundo.
Homens desse tipo são raros hoje em dia, mas nos anos 1890 havia muitos deles, homens errantes, homens solitários, que queriam as coisas daquele jeito. Alguns deles fugiam de responsabilidades e alguns se sentiam injustamente rejeitados pela sociedade. Trabalhavam um pouco, mas não por muito tempo. Roubavam um pouco, mas só comida, e de vez em quando pegavam uma roupa de um varal. Eram todo tipo de homens — homens instruídos e homens ignorantes, homens limpos e homens sujos —, mas todos eles tinham a inquietação em comum. Seguiam o calor, mas evitavam o calor excessivo e o frio excessivo. À medida que a primavera avançava, eles a acompanhavam para o leste, e a primeira geada os impelia para o oeste e o sul. Eram irmãos do coiote que, sendo selvagem, vive perto do homem e dos seus galinheiros: ficavam perto das cidades, mas não dentro delas. Associações com outros homens duravam uma semana, ou um dia, e depois cada um seguia o seu caminho.
Em torno das pequenas fogueiras onde borbulhava o ensopado comunitário, circulava todo tipo de conversa e só os assuntos pessoais não eram mencionados. Adam ouviu falar do surgimento da Central Sindical dos Trabalhadores da Indústria com seus anjos irados. Escutou discussões filosóficas, sobre metafísica, estética e experiência impessoal. Seus companheiros da noite podiam ser um assassino, um padre destituído ou que largou a batina por escolha própria, um professor que deixou um bom emprego numa faculdade enfadonha, um homem solitário perseguido pelas lembranças, um anjo caído e um diabo em treinamento, e cada um contribuía com nacos de pensamento à fogueira assim como contribuía com cenouras, batatas, cebolas e carne para o ensopado. Aprendeu a técnica de fazer a barba com caco de vidro, a estudar uma casa antes de bater para pedir um prato de comida. Aprendeu a evitar ou lidar com policiais hostis e a julgar uma mulher pelo calor do seu coração.
Adam sentia prazer em sua nova vida. Quando o outono tocou as árvores, ele havia chegado tão longe quanto a cidade de Omaha, e sem perguntas, motivo ou pensamento apressou-se a tomar o rumo do oeste e do sul, atravessou as montanhas e chegou com alívio ao sul da Califórnia. Caminhou pelo litoral da divisa norte até San Luis Obispo e aprendeu a pegar moluscos, enguias, mexilhões e percas nas poças formadas pela maré, a achar mariscos cavando em bancos de areia e a capturar coelhos nas dunas com um laço de linha de pescar. E ficava deitado na areia aquecida pelo sol contando as ondas.
A primavera o chamou de novo para o leste, porém mais lentamente do que antes. O verão estava frio nas alturas e o pessoal das montanhas foi bondoso como as pessoas solitárias costumam ser. Adam conseguiu emprego no rancho de uma viúva nos arredores de Denver e compartilhou sua mesa e cama humildemente até que a geada o impeliu de novo para o sul. Seguiu o Rio Grande passando por Albuquerque e El Paso, contornando a Grande Curva, atravessando Laredo e chegando a Brownsville. Aprendeu as palavras espanholas para comida e prazer, e aprendeu que quando as pessoas são muito pobres elas ainda têm algo para dar e o impulso de dar. Criou um amor pelos pobres que não poderia ter concebido se não fosse ele mesmo pobre. E a esta altura era um vagabundo experiente, usando a humildade como o seu princípio de ação. Ficou esguio e bronzeado do sol e podia anular sua personalidade a ponto de não provocar nenhum sentimento de raiva ou inveja. Sua voz tornara-se macia e havia combinado muitos sotaques e dialetos em sua própria fala, de modo a não parecer estrangeiro em lugar algum. Esta era a grande segurança do vagabundo, um véu protetor. Muito raramente viajava como clandestino em trens, pois havia uma hostilidade crescente contra os vagabundos, baseada na raiva violenta da Central Sindical dos Trabalhadores da Indústria e agravada pelas ferozes represálias contra eles. Adam foi detido por vadiagem. A rápida brutalidade dos policiais e dos prisioneiros o apavorou e o fez afastar-se das rodas de vagabundos. Viajava sozinho depois disso e se certificava de estar bem barbeado e limpo.
Quando a primavera voltou, partiu para o norte. Sentia que o seu tempo de descanso e paz estava terminado. Rumou ao norte em direção a Charles e às memórias evanescentes da sua infância.
Adam deslocou-se rapidamente através do interminável leste do Texas, através da Louisiana e dos extremos meridionais do Mississippi e do Alabama, até o flanco da Flórida. Sentia que precisava andar rápido. Os negros eram pobres o bastante para serem generosos, mas ele não podia confiar em nenhum branco, por mais pobre que fosse, e os brancos pobres tinham medo de forasteiros.
Perto de Tallahassee, foi detido pelos homens do xerife, julgado vadio e colocado num grupo de trabalhos forçados. Era assim que se construíam estradas. Sua sentença foi de seis meses. Foi solto e imediatamente detido para cumprir mais seis meses. E agora aprendeu como os homens podem considerar outros homens como bestas e que a melhor maneira de lidar com tais homens era agir como besta. Um rosto limpo, um rosto aberto, um olho erguido para encontrar outro olho — essas coisas chamavam atenção e isso por sua vez trazia punição. Adam pensava como um homem que se machucou enquanto fazia uma coisa feia ou brutal, e que agora precisava punir alguém por causa daquele machucado. Ser vigiado no trabalho por homens com espingardas, ser algemado pelo tornozelo e preso a uma corrente à noite eram simples questões de precaução, mas os selvagens açoites pelo menor sinal de contrariedade, pelo menor resquício de dignidade ou resistência pareciam indicar que os guardas tinham medo dos prisioneiros e Adam sabia, pelos anos passados no Exército, que um homem com medo é um animal perigoso. E Adam, como qualquer um no mundo, temia o que os açoites poderiam fazer ao seu corpo e ao seu espírito. Puxou uma cortina ao seu redor. Removeu qualquer expressão do seu rosto, luz dos seus olhos, e silenciou a sua fala. Mais tarde, não ficou tão espantado que aquilo tivesse acontecido com ele, mas que conseguisse absorver e com um mínimo de dor. Foi muito mais horrível depois do que quando estava acontecendo. É um triunfo do autocontrole ver um homem chicoteado até que os músculos das suas costas se mostrem brancos e brilhantes através dos cortes e não dar nenhum sinal de piedade, raiva ou interesse. E Adam aprendeu isso.
As pessoas são sentidas, mais do que vistas, após os primeiros momentos. Durante a sua segunda sentença nas estradas da Flórida, Adam reduziu sua personalidade ao mínimo. Não causava nenhuma agitação, não emitia nenhuma vibração, tornou-se quase tão invisível quanto é possível ser. E, quando os guardas não podiam senti-lo, não tinham medo dele. Deram-lhe tarefas de limpeza no acampamento, de distribuir o mingau para os prisioneiros, de encher os baldes de água.
Adam esperou até três dias antes da sua segunda liberação. Pouco depois do meio-dia, ele encheu os baldes de água e voltou ao riacho para pegar mais. Encheu seus baldes com pedras e os afundou, então esgueirou-se até a água e nadou um longo trecho rio abaixo, descansou, e nadou mais outro trecho. Continuou deslocando-se pela água até que ao entardecer encontrou um lugar debaixo de um barranco com arbustos para se esconder. Não saiu da água.
Mais tarde na noite ouviu os cães farejadores passarem, cobrindo ambos os lados do rio. Havia esfregado seus cabelos com folhas verdes para ocultar o odor humano. Ficou sentado na água com o nariz e os olhos alertas. De manhã os cães voltaram, desinteressados, e os homens estavam cansados demais para investigar as margens adequadamente. Quando tinham ido embora, Adam puxou um pedaço encharcado de carne de porco frita e comeu.
Havia treinado a si mesmo contra a pressa. A maioria dos homens é apanhada quando foge como um relâmpago. Adam levou cinco dias para percorrer a curta distância até a Geórgia. Não corria riscos, continha sua impaciência com um controle de ferro. Ficou espantado com a sua capacidade.
Nos arredores de Valdosta, na Geórgia, ficou escondido até bem depois da meia-noite, entrou na cidade como uma sombra, esgueirou-se para trás de um armazém barato, forçou uma janela lentamente até que os parafusos da tranca foram arrancados da madeira apodrecida. Recolocou a tranca, mas deixou a janela aberta. Tinha de trabalhar à luz do luar que mal atravessava as janelas sujas. Furtou uma calça barata, uma camisa branca, sapatos pretos, um chapéu preto e uma capa de chuva, e experimentou cada artigo para ver se lhe servia. Certificou-se de que nada parecia fora de ordem antes de saltar para fora pela janela. Tudo o que tirou foi de um estoque farto. Nem chegou a olhar para a caixa registradora. Abaixou a janela cuidadosamente e deslizou de sombra em sombra sob o luar.
Ficava escondido durante o dia e saía em busca de comida à noite — nabos, algumas espigas de milho de uma manjedoura, algumas maçãs derrubadas pelo vento. Tirou a aparência de novo dos sapatos esfregando areia neles e amarrotou a capa de chuva para lhe dar um aspecto de usada. Esperou três dias para que caísse a chuva de que ele precisava ou que, em sua cautela extremada, achava que precisava.
A chuva começou no final da tarde. Adam enroscou-se debaixo de sua capa de chuva, esperando que o escuro chegasse, e então caminhou para a cidade de Valdosta. Seu chapéu preto estava caído sobre os olhos e a capa amarela bem fechada no pescoço. Caminhou até a estação e espiou através de uma janela embaçada pela chuva. O agente da estação, com uma viseira verde e as mangas de trabalho em alpaca preta, estava inclinado para fora da bilheteria falando com um amigo. Levou vinte minutos para que o amigo fosse embora. Adam observou-o da plataforma. Respirou fundo para se acalmar e entrou na estação.

John Steinbeck, em A leste do Éden