quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

Eu seria o homem mais feliz do mundo se pudesse passar uma noite com você


Meg saía de casa para ir trabalhar quando viu no chão da sala, próximo da porta, um envelope. Dentro havia um bilhete: Eu seria o homem mais feliz do mundo se pudesse passar uma noite com você. Meg pegou o bilhete, escrito em caracteres tipográficos, amassou e jogou na cesta de papéis.
Trancou com cuidado as duas fechaduras da porta, não obstante fosse pouco provável que alguém furtasse os seus bens, uma televisão colorida, um computador, uma impressora a jato de tinta. O síndico do prédio era um neurótico que policiava a conduta dos moradores, exigindo que os porteiros, que se revezavam dia e noite, anotassem o nome e o destino de qualquer visitante, com as horas de entrada e de saída. Isso causava constrangimentos e reclamações, mas talvez o síndico estivesse agindo com judiciosa prudência, o edifício tinha quinze andares com dez apartamentos de quarto e sala em cada pavimento, condições propícias para se tornar um cortiço gigantesco. Segundo sua vizinha Telma, o síndico fora reformado por invalidez devido a um acidente com uma granada que lhe tirara completamente a virilidade quando era um jovem tenente da Marinha de Guerra. “Ele é durão porque tem aquela coisa mole.”
Meg precisava tomar um ônibus até a loja de cosméticos onde trabalhava, em Copacabana, não muito distante da sua casa, mas era uma viagem incômoda, pois sempre carregava, além da bolsa, uma pequena maleta com o seu sapato preto de salto alto, as meias pretas de náilon e o vestido, também preto, que usava na loja. A dona do estabelecimento, uma senhora chamada dona Gigi, que fora garota de programa quando jovem, exigia que as balconistas se vestissem daquela maneira. Dona Gigi fornecia os vestidos e os sapatos, mas as moças eram encarregadas de cuidar do bom estado das peças. Quando um vestido, gasto pelo uso, precisava ser trocado, dona Gigi fazia uma admoestação demorada, que terminava com a frase “no meu tempo as mulheres não eram assim desmazeladas”.
A loja abria às nove da manhã, mas o trabalho de se vestir e maquiar demorava algum tempo, por isso Meg e as outras tinham que chegar uma hora antes. As três moças tinham estatura e compleição física parecidas, e depois de maquiadas ficavam com a mesma cara, como se fossem manequins feitos em série. Almoçavam na loja, saladas, legumes cozidos e carnes grelhadas. Dona Gigi ameaçava: “quem engordar vai para o olho da rua.” Meg odiava aquele emprego, gostaria de trabalhar em outra coisa, razão pela qual comprara o computador, a impressora e a cesta de papéis, mas não sabia o que fazer com eles.
No fim do dia, os pés de Meg, cheios de calos, doíam muito. Logo que a loja fechava, a primeira coisa que fazia era arrancar os sapatos e calçar uma sandália. Depois tirava o vestido, que colocava cuidadosamente na maleta, junto com os sapatos. Lulu era a primeira a sair, o namorado costumava esperar por ela do lado de fora da loja. Sissy, a outra moça, sempre convidava Meg para tomarem um cafezinho juntas depois do trabalho. As duas, durante o café, conversavam muito, mas nada pessoal. Sissy era a mais bonita de todas.
Naquele dia, logo ao chegar em casa, Meg apanhou na cesta de papéis o bilhete. Releu: Eu seria o homem mais feliz do mundo se pudesse passar uma noite com você. Quem teria escrito aquele bilhete? Certamente algum morador do prédio, um bobalhão metido a engraçadinho. Além de Telma, ela conhecia de vista apenas alguns moradores. Havia um sujeito desgrenhado no seu andar, que olhava para o chão quando passava por ela. Sujeitos tímidos eram capazes de audácias anônimas daquele tipo.
Melhor esquecer o assunto. Meg jogou novamente o bilhete amassado na cesta de papéis. Tomou um banho demorado, com água muito quente, para se livrar do cheiro da loja, fez um sanduíche de pão integral com uma fatia de ricota e duas folhas de alface, pegou um refrigerante light, foi para o quarto, ligou a televisão e deitou-se apenas de calcinha, pois era uma noite quente. Mais uma vez, dormiu com a televisão ligada e sem escovar os dentes.
Acordou, como sempre, muito cedo, e foi correndo escovar os dentes, jurando que não dormiria mais na frente da televisão. Em seguida tomou um banho quente pensando nas longas horas que teria que ficar empoleirada em cima dos sapatos, decidida a mudar de vida nem que fosse preciso dar um tiro na cabeça. Não aguentava mais mostrar dezenas de tipos de batons, esmaltes de unhas e outros cosméticos, ou perfumar pulsos de mulheres que nunca sabiam o que queriam. O odor de todo e qualquer perfume estava começando a lhe dar náuseas.
Meg notou o novo envelope ao lavar a xícara em que tomara o café da manhã. Sem enxugar as mãos, apanhou o envelope e leu o bilhete: Eu seria o homem mais feliz do mundo se pudesse passar uma noite com você. A umidade dos seus dedos manchou algumas das palavras. Porcaria de tinta, ela pensou, reles como o autor dos bilhetes.
O novo bilhete teve o destino do antigo, a cesta de papéis.
Depois de mais um longo dia de trabalho, de roupa trocada, agora de jeans e sandália de dedo, ela foi tomar um cafezinho com Sissy que estava vestida como se fosse uma freira.
Posso dizer uma coisa? Você vai ter paciência comigo?”
Claro, Sissy”
Você vai ter, mesmo, paciência comigo?”
Você me acha impaciente?”
Acho. Com as outras moças, com os clientes. Você vive mal-humorada.”
Eu vivo mal-humorada? E você? Sempre emburrada. Aliás, você é uma chata, sabia? Insuportável.”
Você tem razão.”
Ainda bem que você reconhece. Que é isso? Você está chorando?”
Caiu um cisco no meu olho.”
Desculpe, Sissy. O que você queria me dizer?”
Não era nada. Até amanhã.”
Deixa que eu pago o cafezinho.”
Hoje é o meu dia. Até amanhã.”
Sissy saiu apressada. Meg ficou mais algum tempo em pé no balcão, pensando naquela conversa. Chegou em casa mais infeliz do que nos outros dias. Comeu o sanduíche de ricota com alface, escovou os dentes. Deitou para ver televisão e dormiu.
De manhã encontrou outro bilhete com a mesma frase e sentiu que alguma coisa precisava ser feita, sabia que o síndico já devia estar no seu pequeno escritório, ao lado da portaria. Ligou para ele.
É um assunto urgente? Se não for urgente a senhora tem que marcar uma hora comigo. Certo?”
É urgente.”
Então posso recebê-la agora. Por quinze minutos. Certo?”
Meg apanhou na cesta de papéis os dois bilhetes amassados, botou-os na bolsa junto com o que recebera naquele dia, se vestiu correndo, fez a mala e desceu pelo elevador ao andar térreo. Bateu na porta do escritório do síndico. Ele abriu a porta.
Favor entrar. Sente-se.”
Era um escritório pequeno, com uma mesa sobre a qual havia um computador e uma impressora, parecida com a dela, e duas cadeiras.
Como é mesmo o seu nome?”
Margaret. Moro no apartamento mil e doze.”
Certo. Qual é o problema?”
Meg tirou os bilhetes da bolsa e entregou-os ao síndico. Ele leu os bilhetes.
Certo.”
Certo como?”
Não estou entendendo a senhora.”
O senhor falou certo e eu perguntei, certo como?”
É um vício de linguagem. Certo?”
E os bilhetes?”
Foram escritos numa impressora a jato de tinta. Dá para ver pelas letras borradas, neste aqui. Jato de tinta, borra. O tipo usado é o Times New Roman, 14.”
E o que eu faço?”
Nada.”
Um sujeito está me enviando bilhetes pornográficos e o senhor me manda ficar sem fazer nada?”
Mas eu não vou ficar sem fazer nada, certo?”
Enquanto isso eu fico recebendo os bilhetes pornográficos?”
Os termos do bilhete não são propriamente pornográficos.”
São o quê?”
Grosseiros, talvez, mas não pornográficos, certo?”
O senhor devia fazer alguma coisa para se livrar desse vício de linguagem.”
Estou tentando, minha senhora. Passe bem”, disse o síndico se levantando.
Não houve nenhum acidente na Marinha, jogaram a granada em cima dele de propósito para fazer o idiota calar a boca, pensou Meg, retirando-se irritada. O dia começou perturbador para Meg e transcorreu doloroso, os sapatos machucando muito os seus pés. E no cafezinho Sissy deixou-a ainda mais abalada.
Eu te amo” disse Sissy.
Como assim?”
Eu quero ser sua namorada. Era isso que eu queria te dizer, ontem.”
Minha namorada?”
Sei que você não gosta de homem. Você não tem namorado, como a Lulu.”
Você tem razão. Eu não gosto de homem. Mas isso não quer dizer que eu goste de mulher.”
Não sente desejo por ninguém?”
Por ninguém.”
Eu morro de desejo por você.”
Sissy, por favor, vamos mudar de assunto, você está me constrangendo.”
E você está me fazendo sentir vergonha.”
Não quero que você fique envergonhada. Só quero mudar de assunto.”
Me desculpe”, disse Sissy.
Eu é que peço desculpas. Somos diferentes, azar o nosso.”
Sissy ficou calada, com um ar deprimido. Meg quase disse a ela que não gostava de homem porque havia sido estuprada aos quinze anos, mas era melhor dizer boa-noite e ir embora antes que outro cisco caísse no olho de Sissy.
Foi o que ela fez. O dia fora horrível e a noite continuou péssima, Meg ficou vendo televisão até tarde, sem conseguir dormir, e comeu um pacote de biscoitos cujas calorias iriam certamente engrossar a sua cintura.
No dia seguinte outro envelope havia sido enfiado por debaixo da porta. Meg nem abriu. Amassou e jogou na cesta.
No trabalho, ela e Sissy não trocaram uma palavra sequer. Meg, dissimuladamente, observou, pela primeira vez, o corpo de Sissy. A outra não tinha apenas um rosto bonito, o seu corpo era perfeito, mas não lhe despertava o menor erotismo, como o que sentia quando sonhava com um homem desconhecido que a acariciava de maneira excitante e acordava molhada e nervosa. Quando a loja fechou, Sissy arrumou-se com rapidez e saiu, antes mesmo da Lulu.
No dia seguinte, logo que acordou, Meg foi à porta da sala. Havia outro envelope no chão. Ela se aprontou e desceu para falar com o síndico.
O senhor tem alguma novidade para mim?”, perguntou, entregando o novo envelope ao síndico.
Ele pegou o envelope.
Os mesmos dizeres?”
Acho que sim. Nem abri.”
A que horas a senhora acordou hoje?”
Seis horas.”
E o bilhete já estava lá?”
Estava.”
Eu fiquei vigiando o seu andar até as três horas da madrugada. Isso significa que esse indivíduo enfia o envelope na sua porta entre três e seis horas. Certo?”
Certo.” Estou pegando o vício do sujeito, pensou Meg.
Quando chegou à loja, dona Gigi comunicou que Sissy havia pedido demissão e que não iria admitir outra balconista, Lulu e Meg fariam todo o trabalho.
Tenho que mudar de vida, pensou Meg, sentindo dores nos pés. À tarde, Lulu lhe perguntou:
Você não está sentindo falta da Sissy?”
Estou”, respondeu Meg. Era verdade, sem Sissy a loja ficava mais triste.
Naquela noite, Meg colocou o despertador para acordá-la às três horas. Ela não acreditava no síndico. Quando acordou, ao primeiro toque do relógio, Meg se levantou e ficou espiando o corredor pelo olho mágico. Eram quatro horas quando notou o sujeito desgrenhado que morava no seu andar e o síndico caminhando pelo corredor, discutindo. Mas ela não ouviu o que diziam. Cansada, puxou sua única poltrona para perto da porta e sentou-se, para ver o que aconteceria. Acabou dormindo. Quando acordou, verificou que não havia envelope no chão. Eram sete horas.
Telefonou para o síndico.
Hoje não apareceu nenhum envelope.”
Precisamos fazer uma reunião. Terá que ser às dez horas.”
Meg não falou do que vira pelo olho mágico.
O problema está solucionado?”
Saberemos às dez horas. Certo?”
Certo.”
Às oito e meia Meg telefonou para a loja. Dona Gigi atendeu.
Dona Gigi, hoje eu não posso ir trabalhar, não estou me sentindo bem. Estou de cama.”
Antes que dona Gigi pudesse responder, Meg desligou o telefone.
Na hora marcada, desceu ao escritório do síndico. Meg notou sobre a mesa um pacote de biscoitos.
Vamos esperar o senhor Walter chegar.”
Senhor Walter?”
É um indivíduo que mora no seu andar.”
Um sujeito que está sempre desgrenhado?”
E sujo. Ele diz que é cineasta. Mas ainda não terminou o filme dele. Talvez seja o autor das cartas anônimas.”
Talvez?”
Eu o encontrei no corredor do seu apartamento por volta das quatro da manhã. É tudo o que posso dizer por enquanto.”
Uma batida na porta.
Eu pedi que ele viesse aqui para conversarmos todos”, disse o síndico abrindo a porta.
Walter, quando viu Meg, parou, surpreso.
Entre”, disse o síndico.
Walter entrou.
O senhor terá que ficar de pé. Só existem duas cadeiras aqui, uma é a minha, a outra é da dona Margaret. Certo? Não vou perder tempo. É o senhor que está enfiando bilhetes debaixo da porta de dona Margaret?”
Enfiando bilhetes?”
O que o senhor fazia às quatro da manhã andando pelo corredor do andar da dona Margaret?”
Eu ia para o meu apartamento. Moro naquele andar. Eu lhe disse isso ontem. Chego tarde da noite. Pergunte aos porteiros.”
Enquanto falava, nem por um momento Walter olhou para Margaret.
Acho que não foi o senhor Walter quem fez os bilhetes, dona Margaret. O senhor pode ir embora, seu Walter, desculpe o incômodo. Mas eu vou descobrir o patife...”
Pensando bem”, disse Margaret, “acho que o assunto devia ser encerrado. Não interessa quem colocou os bilhetes debaixo da minha porta. E pensando bem, um homem dizer que seria o mais feliz do mundo se fosse para a cama comigo pode ser uma coisa grosseira, como o senhor disse muito bem, mas de certa maneira é um elogio.”
A senhora acha?”
Acho. Qualquer mulher se sentiria lisonjeada ao saber que desperta desejos num homem.”
Acha mesmo?”, perguntou o síndico, num tom de voz diferente.
Mesmo. Não sei por que me senti ofendida. Eu ando muito nervosa ultimamente, deve ser isso.”
Fui eu sim”, disse Walter, que, apesar de dispensado pelo síndico, permanecera na sala.
O quê?”, gritou o síndico.
Coloquei o bilhete, fui eu, sempre gostei dessa moça.”
O síndico levantou-se furioso da cadeira e agarrou Walter pelos ombros, sacudindo-o.
Cretino. Quantos bilhetes você colocou?”
Coloquei um, dois...”
Que fonte tipográfica usou no seu bilhete?”
Fonte o quê?”
Seu mentiroso nojento. Não sabe nem quantos bilhetes foram. Foram cinco. Times New Roman 14, em itálico. Você tem um computador? Não tem. Tem uma impressora a jato de tinta? Não tem. Não sei onde estou que não lhe parto a cara. Ponha-se daqui para fora.”
Walter saiu correndo. A fúria do síndico era assustadora.
A senhora foi dizer que gostou do bilhete e o cachorro logo se declarou o autor.”
Por que fez essa palhaçada toda, chamando aqui aquele desgrenhado?”
Palhaçada?”
Eu sei quem é o autor dos bilhetes”, disse Meg.
Sabe?”
O senhor. A impressora é essa sobre a sua mesa. Tenho uma igual. Só não sei usar.”
O síndico baixou os olhos. Ela nunca tinha visto, ou não quisera ver, um homem ficar ruborizado. No fundo, deve ser uma pessoa tímida, delicada, pensou Meg, não é feio, deve ter uns quarenta anos, mãos limpas, rosto bem barbeado.
Eu não tinha coragem de assumir os sentimentos torpes que sentia pela senhora. Fiz uma loucura, peço que me perdoe”, o síndico murmurou.
Vivo cercado de pobres-diabos infelizes, a Sissy, o senhor.... Como quer encontrar a felicidade na cama com uma mulher, se foi aleijado por uma granada?”
Foi a dona Telma, uma mulher carente despeitada, quem espalhou isso. Não fui aposentado por invalidez. Dei baixa da Marinha por vontade própria. A história da granada é uma grossa mentira. Posso provar.”
Não precisa provar nada. Estou tão cansada”, disse Meg, suspirando, “esta noite quase não dormi.”
Meg pegou o pacote de biscoitos sobre a mesa.
Posso comer um?”
O síndico assentiu, com meneios afirmativos da cabeça.
Compra daqueles recheados de chocolate.”
Hoje mesmo, hoje mesmo.”

Rubem Fonseca, em Pequenas Criaturas

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