Meg
saía de casa para ir trabalhar quando viu no chão da sala, próximo
da porta, um envelope. Dentro havia um bilhete: Eu seria o homem
mais feliz do mundo se pudesse passar uma noite com você. Meg
pegou o bilhete, escrito em caracteres tipográficos, amassou e jogou
na cesta de papéis.
Trancou
com cuidado as duas fechaduras da porta, não obstante fosse pouco
provável que alguém furtasse os seus bens, uma televisão colorida,
um computador, uma impressora a jato de tinta. O síndico do prédio
era um neurótico que policiava a conduta dos moradores, exigindo que
os porteiros, que se revezavam dia e noite, anotassem o nome e o
destino de qualquer visitante, com as horas de entrada e de saída.
Isso causava constrangimentos e reclamações, mas talvez o síndico
estivesse agindo com judiciosa prudência, o edifício tinha quinze
andares com dez apartamentos de quarto e sala em cada pavimento,
condições propícias para se tornar um cortiço gigantesco. Segundo
sua vizinha Telma, o síndico fora reformado por invalidez devido a
um acidente com uma granada que lhe tirara completamente a virilidade
quando era um jovem tenente da Marinha de Guerra. “Ele é durão
porque tem aquela coisa mole.”
Meg
precisava tomar um ônibus até a loja de cosméticos onde
trabalhava, em Copacabana, não muito distante da sua casa, mas era
uma viagem incômoda, pois sempre carregava, além da bolsa, uma
pequena maleta com o seu sapato preto de salto alto, as meias pretas
de náilon e o vestido, também preto, que usava na loja. A dona do
estabelecimento, uma senhora chamada dona Gigi, que fora garota de
programa quando jovem, exigia que as balconistas se vestissem daquela
maneira. Dona Gigi fornecia os vestidos e os sapatos, mas as moças
eram encarregadas de cuidar do bom estado das peças. Quando um
vestido, gasto pelo uso, precisava ser trocado, dona Gigi fazia uma
admoestação demorada, que terminava com a frase “no meu tempo as
mulheres não eram assim desmazeladas”.
A
loja abria às nove da manhã, mas o trabalho de se vestir e maquiar
demorava algum tempo, por isso Meg e as outras tinham que chegar uma
hora antes. As três moças tinham estatura e compleição física
parecidas, e depois de maquiadas ficavam com a mesma cara, como se
fossem manequins feitos em série. Almoçavam na loja, saladas,
legumes cozidos e carnes grelhadas. Dona Gigi ameaçava: “quem
engordar vai para o olho da rua.” Meg odiava aquele emprego,
gostaria de trabalhar em outra coisa, razão pela qual comprara o
computador, a impressora e a cesta de papéis, mas não sabia o que
fazer com eles.
No
fim do dia, os pés de Meg, cheios de calos, doíam muito. Logo que a
loja fechava, a primeira coisa que fazia era arrancar os sapatos e
calçar uma sandália. Depois tirava o vestido, que colocava
cuidadosamente na maleta, junto com os sapatos. Lulu era a primeira a
sair, o namorado costumava esperar por ela do lado de fora da loja.
Sissy, a outra moça, sempre convidava Meg para tomarem um cafezinho
juntas depois do trabalho. As duas, durante o café, conversavam
muito, mas nada pessoal. Sissy era a mais bonita de todas.
Naquele
dia, logo ao chegar em casa, Meg apanhou na cesta de papéis o
bilhete. Releu: Eu seria o homem mais feliz do mundo se pudesse
passar uma noite com você. Quem teria escrito aquele bilhete?
Certamente algum morador do prédio, um bobalhão metido a
engraçadinho. Além de Telma, ela conhecia de vista apenas alguns
moradores. Havia um sujeito desgrenhado no seu andar, que olhava para
o chão quando passava por ela. Sujeitos tímidos eram capazes de
audácias anônimas daquele tipo.
Melhor
esquecer o assunto. Meg jogou novamente o bilhete amassado na cesta
de papéis. Tomou um banho demorado, com água muito quente, para se
livrar do cheiro da loja, fez um sanduíche de pão integral com uma
fatia de ricota e duas folhas de alface, pegou um refrigerante light,
foi para o quarto, ligou a televisão e deitou-se apenas de calcinha,
pois era uma noite quente. Mais uma vez, dormiu com a televisão
ligada e sem escovar os dentes.
Acordou,
como sempre, muito cedo, e foi correndo escovar os dentes, jurando
que não dormiria mais na frente da televisão. Em seguida tomou um
banho quente pensando nas longas horas que teria que ficar
empoleirada em cima dos sapatos, decidida a mudar de vida nem que
fosse preciso dar um tiro na cabeça. Não aguentava mais mostrar
dezenas de tipos de batons, esmaltes de unhas e outros cosméticos,
ou perfumar pulsos de mulheres que nunca sabiam o que queriam. O odor
de todo e qualquer perfume estava começando a lhe dar náuseas.
Meg
notou o novo envelope ao lavar a xícara em que tomara o café da
manhã. Sem enxugar as mãos, apanhou o envelope e leu o bilhete: Eu
seria o homem mais feliz do mundo se pudesse passar uma noite com
você. A umidade dos seus dedos manchou algumas das palavras.
Porcaria de tinta, ela pensou, reles como o autor dos bilhetes.
O
novo bilhete teve o destino do antigo, a cesta de papéis.
Depois
de mais um longo dia de trabalho, de roupa trocada, agora de jeans e
sandália de dedo, ela foi tomar um cafezinho com Sissy que estava
vestida como se fosse uma freira.
“Posso
dizer uma coisa? Você vai ter paciência comigo?”
“Claro,
Sissy”
“Você
vai ter, mesmo, paciência comigo?”
“Você
me acha impaciente?”
“Acho.
Com as outras moças, com os clientes. Você vive mal-humorada.”
“Eu
vivo mal-humorada? E você? Sempre emburrada. Aliás, você é uma
chata, sabia? Insuportável.”
“Você
tem razão.”
“Ainda
bem que você reconhece. Que é isso? Você está chorando?”
“Caiu
um cisco no meu olho.”
“Desculpe,
Sissy. O que você queria me dizer?”
“Não
era nada. Até amanhã.”
“Deixa
que eu pago o cafezinho.”
“Hoje
é o meu dia. Até amanhã.”
Sissy
saiu apressada. Meg ficou mais algum tempo em pé no balcão,
pensando naquela conversa. Chegou em casa mais infeliz do que nos
outros dias. Comeu o sanduíche de ricota com alface, escovou os
dentes. Deitou para ver televisão e dormiu.
De
manhã encontrou outro bilhete com a mesma frase e sentiu que alguma
coisa precisava ser feita, sabia que o síndico já devia estar no
seu pequeno escritório, ao lado da portaria. Ligou para ele.
“É
um assunto urgente? Se não for urgente a senhora tem que marcar uma
hora comigo. Certo?”
“É
urgente.”
“Então
posso recebê-la agora. Por quinze minutos. Certo?”
Meg
apanhou na cesta de papéis os dois bilhetes amassados, botou-os na
bolsa junto com o que recebera naquele dia, se vestiu correndo, fez a
mala e desceu pelo elevador ao andar térreo. Bateu na porta do
escritório do síndico. Ele abriu a porta.
“Favor
entrar. Sente-se.”
Era
um escritório pequeno, com uma mesa sobre a qual havia um computador
e uma impressora, parecida com a dela, e duas cadeiras.
“Como
é mesmo o seu nome?”
“Margaret.
Moro no apartamento mil e doze.”
“Certo.
Qual é o problema?”
Meg
tirou os bilhetes da bolsa e entregou-os ao síndico. Ele leu os
bilhetes.
“Certo.”
“Certo
como?”
“Não
estou entendendo a senhora.”
“O
senhor falou certo e eu perguntei, certo como?”
“É
um vício de linguagem. Certo?”
“E
os bilhetes?”
“Foram
escritos numa impressora a jato de tinta. Dá para ver pelas letras
borradas, neste aqui. Jato de tinta, borra. O tipo usado é o Times
New Roman, 14.”
“E
o que eu faço?”
“Nada.”
“Um
sujeito está me enviando bilhetes pornográficos e o senhor me manda
ficar sem fazer nada?”
“Mas
eu não vou ficar sem fazer nada, certo?”
“Enquanto
isso eu fico recebendo os bilhetes pornográficos?”
“Os
termos do bilhete não são propriamente pornográficos.”
“São
o quê?”
“Grosseiros,
talvez, mas não pornográficos, certo?”
“O
senhor devia fazer alguma coisa para se livrar desse vício de
linguagem.”
“Estou
tentando, minha senhora. Passe bem”, disse o síndico se
levantando.
Não
houve nenhum acidente na Marinha, jogaram a granada em cima dele de
propósito para fazer o idiota calar a boca, pensou Meg, retirando-se
irritada. O dia começou perturbador para Meg e transcorreu doloroso,
os sapatos machucando muito os seus pés. E no cafezinho Sissy
deixou-a ainda mais abalada.
“Eu
te amo” disse Sissy.
“Como
assim?”
“Eu
quero ser sua namorada. Era isso que eu queria te dizer, ontem.”
“Minha
namorada?”
“Sei
que você não gosta de homem. Você não tem namorado, como a Lulu.”
“Você
tem razão. Eu não gosto de homem. Mas isso não quer dizer que eu
goste de mulher.”
“Não
sente desejo por ninguém?”
“Por
ninguém.”
“Eu
morro de desejo por você.”
“Sissy,
por favor, vamos mudar de assunto, você está me constrangendo.”
“E
você está me fazendo sentir vergonha.”
“Não
quero que você fique envergonhada. Só quero mudar de assunto.”
“Me
desculpe”, disse Sissy.
“Eu
é que peço desculpas. Somos diferentes, azar o nosso.”
Sissy
ficou calada, com um ar deprimido. Meg quase disse a ela que não
gostava de homem porque havia sido estuprada aos quinze anos, mas era
melhor dizer boa-noite e ir embora antes que outro cisco caísse no
olho de Sissy.
Foi
o que ela fez. O dia fora horrível e a noite continuou péssima, Meg
ficou vendo televisão até tarde, sem conseguir dormir, e comeu um
pacote de biscoitos cujas calorias iriam certamente engrossar a sua
cintura.
No
dia seguinte outro envelope havia sido enfiado por debaixo da porta.
Meg nem abriu. Amassou e jogou na cesta.
No
trabalho, ela e Sissy não trocaram uma palavra sequer. Meg,
dissimuladamente, observou, pela primeira vez, o corpo de Sissy. A
outra não tinha apenas um rosto bonito, o seu corpo era perfeito,
mas não lhe despertava o menor erotismo, como o que sentia quando
sonhava com um homem desconhecido que a acariciava de maneira
excitante e acordava molhada e nervosa. Quando a loja fechou, Sissy
arrumou-se com rapidez e saiu, antes mesmo da Lulu.
No
dia seguinte, logo que acordou, Meg foi à porta da sala. Havia outro
envelope no chão. Ela se aprontou e desceu para falar com o síndico.
“O
senhor tem alguma novidade para mim?”, perguntou, entregando o novo
envelope ao síndico.
Ele
pegou o envelope.
“Os
mesmos dizeres?”
“Acho
que sim. Nem abri.”
“A
que horas a senhora acordou hoje?”
“Seis
horas.”
“E
o bilhete já estava lá?”
“Estava.”
“Eu
fiquei vigiando o seu andar até as três horas da madrugada. Isso
significa que esse indivíduo enfia o envelope na sua porta entre
três e seis horas. Certo?”
“Certo.”
Estou pegando o vício do sujeito, pensou Meg.
Quando
chegou à loja, dona Gigi comunicou que Sissy havia pedido demissão
e que não iria admitir outra balconista, Lulu e Meg fariam todo o
trabalho.
Tenho
que mudar de vida, pensou Meg, sentindo dores nos pés. À tarde,
Lulu lhe perguntou:
“Você
não está sentindo falta da Sissy?”
“Estou”,
respondeu Meg. Era verdade, sem Sissy a loja ficava mais triste.
Naquela
noite, Meg colocou o despertador para acordá-la às três horas. Ela
não acreditava no síndico. Quando acordou, ao primeiro toque do
relógio, Meg se levantou e ficou espiando o corredor pelo olho
mágico. Eram quatro horas quando notou o sujeito desgrenhado que
morava no seu andar e o síndico caminhando pelo corredor,
discutindo. Mas ela não ouviu o que diziam. Cansada, puxou sua única
poltrona para perto da porta e sentou-se, para ver o que aconteceria.
Acabou dormindo. Quando acordou, verificou que não havia envelope no
chão. Eram sete horas.
Telefonou
para o síndico.
“Hoje
não apareceu nenhum envelope.”
“Precisamos
fazer uma reunião. Terá que ser às dez horas.”
Meg
não falou do que vira pelo olho mágico.
“O
problema está solucionado?”
“Saberemos
às dez horas. Certo?”
“Certo.”
Às
oito e meia Meg telefonou para a loja. Dona Gigi atendeu.
“Dona
Gigi, hoje eu não posso ir trabalhar, não estou me sentindo bem.
Estou de cama.”
Antes
que dona Gigi pudesse responder, Meg desligou o telefone.
Na
hora marcada, desceu ao escritório do síndico. Meg notou sobre a
mesa um pacote de biscoitos.
“Vamos
esperar o senhor Walter chegar.”
“Senhor
Walter?”
“É
um indivíduo que mora no seu andar.”
“Um
sujeito que está sempre desgrenhado?”
“E
sujo. Ele diz que é cineasta. Mas ainda não terminou o filme dele.
Talvez seja o autor das cartas anônimas.”
“Talvez?”
“Eu
o encontrei no corredor do seu apartamento por volta das quatro da
manhã. É tudo o que posso dizer por enquanto.”
Uma
batida na porta.
“Eu
pedi que ele viesse aqui para conversarmos todos”, disse o síndico
abrindo a porta.
Walter,
quando viu Meg, parou, surpreso.
“Entre”,
disse o síndico.
Walter
entrou.
“O
senhor terá que ficar de pé. Só existem duas cadeiras aqui, uma é
a minha, a outra é da dona Margaret. Certo? Não vou perder tempo. É
o senhor que está enfiando bilhetes debaixo da porta de dona
Margaret?”
“Enfiando
bilhetes?”
“O
que o senhor fazia às quatro da manhã andando pelo corredor do
andar da dona Margaret?”
“Eu
ia para o meu apartamento. Moro naquele andar. Eu lhe disse isso
ontem. Chego tarde da noite. Pergunte aos porteiros.”
Enquanto
falava, nem por um momento Walter olhou para Margaret.
“Acho
que não foi o senhor Walter quem fez os bilhetes, dona Margaret. O
senhor pode ir embora, seu Walter, desculpe o incômodo. Mas eu vou
descobrir o patife...”
“Pensando
bem”, disse Margaret, “acho que o assunto devia ser encerrado.
Não interessa quem colocou os bilhetes debaixo da minha porta. E
pensando bem, um homem dizer que seria o mais feliz do mundo se fosse
para a cama comigo pode ser uma coisa grosseira, como o senhor disse
muito bem, mas de certa maneira é um elogio.”
“A
senhora acha?”
“Acho.
Qualquer mulher se sentiria lisonjeada ao saber que desperta desejos
num homem.”
“Acha
mesmo?”, perguntou o síndico, num tom de voz diferente.
“Mesmo.
Não sei por que me senti ofendida. Eu ando muito nervosa
ultimamente, deve ser isso.”
“Fui
eu sim”, disse Walter, que, apesar de dispensado pelo síndico,
permanecera na sala.
“O
quê?”, gritou o síndico.
“Coloquei
o bilhete, fui eu, sempre gostei dessa moça.”
O
síndico levantou-se furioso da cadeira e agarrou Walter pelos
ombros, sacudindo-o.
“Cretino.
Quantos bilhetes você colocou?”
“Coloquei
um, dois...”
“Que
fonte tipográfica usou no seu bilhete?”
“Fonte
o quê?”
“Seu
mentiroso nojento. Não sabe nem quantos bilhetes foram. Foram cinco.
Times New Roman 14, em itálico. Você tem um computador? Não tem.
Tem uma impressora a jato de tinta? Não tem. Não sei onde estou que
não lhe parto a cara. Ponha-se daqui para fora.”
Walter
saiu correndo. A fúria do síndico era assustadora.
“A
senhora foi dizer que gostou do bilhete e o cachorro logo se declarou
o autor.”
“Por
que fez essa palhaçada toda, chamando aqui aquele desgrenhado?”
“Palhaçada?”
“Eu
sei quem é o autor dos bilhetes”, disse Meg.
“Sabe?”
“O
senhor. A impressora é essa sobre a sua mesa. Tenho uma igual. Só
não sei usar.”
O
síndico baixou os olhos. Ela nunca tinha visto, ou não quisera ver,
um homem ficar ruborizado. No fundo, deve ser uma pessoa tímida,
delicada, pensou Meg, não é feio, deve ter uns quarenta anos, mãos
limpas, rosto bem barbeado.
“Eu
não tinha coragem de assumir os sentimentos torpes que sentia pela
senhora. Fiz uma loucura, peço que me perdoe”, o síndico
murmurou.
“Vivo
cercado de pobres-diabos infelizes, a Sissy, o senhor.... Como quer
encontrar a felicidade na cama com uma mulher, se foi aleijado por
uma granada?”
“Foi
a dona Telma, uma mulher carente despeitada, quem espalhou isso. Não
fui aposentado por invalidez. Dei baixa da Marinha por vontade
própria. A história da granada é uma grossa mentira. Posso
provar.”
“Não
precisa provar nada. Estou tão cansada”, disse Meg, suspirando,
“esta noite quase não dormi.”
Meg
pegou o pacote de biscoitos sobre a mesa.
“Posso
comer um?”
O
síndico assentiu, com meneios afirmativos da cabeça.
“Compra
daqueles recheados de chocolate.”
“Hoje
mesmo, hoje mesmo.”
Rubem Fonseca, em Pequenas Criaturas
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