Ao
som das canções de Sarah Vaughan, dei ultimamente – embora já
dele tão distanciado por tantas e tão grandes causas – de reler o
poeta Rainer Maria Rilke. Andei folheando as Cartas a um jovem
poeta, os Sonetos a Orfeu e algumas Elegias de Duíno.
E o que tenho a dizer é o seguinte: poucos seres tão poéticos
nasceram nunca de uma mulher. Pouquíssimos, como esse Grande
Enfermo, viveram tanto em poesia e se abandonaram mais fundamente,
náufrago irremediável, à avidez de suas águas onde o esperava o
indizível abandono.
Nunca
vida humana fechou-se mais completamente dentro de uma mística.
Chega a ser impressionante. Rilke passou, como aquele “afogado
pensativo”, a descer os “azuis verdes” dos céus e dos rios que
a visão de Jean-Arthur Rimbaud confundiu no seu poema “Le
Bateau ivre”. O poeta viveu em transe poético constante,
amargurando seu espírito contra todos os temas da Vida, do Amor e da
Morte, a que piedosamente amou como uma única entidade.
Sua
simplicidade como poeta nasce dessa longa tortura lírica de ver a
morte como um amadurecimento da vida, numa total compensação. Rilke
acreditava que a morte nasce com o homem, que este a traz em si tal
uma semente que brota, faz-se árvore, floresce e frutifica ao se
despojar do seu alburno humano. Seus poemas menores vencem lentamente
todos esses “graus do terrível”, num crescimento espontâneo
para a grande enflorescência, de onde penderão os melhores frutos,
desejosos de renovação na terra.
Em
1910 Rilke terminava os seus famosos Cadernos de Malte Laurids
Brigge, onde contou, com uma beleza raras vezes alcançada em
prosa, a história elegíaca da destruição de um ser votado à
fatalidade irremediável da mágoa. Porque é mágoa, mais que
angústia, o que colhemos dessa narrativa: a mágoa do mal-entendido
humano, o solilóquio desolador do homem desajustado à vida. A
qualidade do sofrimento que lhe vem dessa torturante criação, como
que lhe afina ainda mais a sensibilidade, já de si tão aguçada
para todos os sussurros da poesia. O poeta pena, como penou por um
momento o Cristo, da coexistência íntima da dúvida e da certeza,
enquanto vagueia, morbidamente enfraquecido pela doença, pelos
lugares que mais ama na Europa: Paris, a Rússia e os países
escandinavos, intermitentemente.
Em
fins de 1911, instado pelos príncipes de Tour e Taxis, Rilke vai
passar sozinho o inverno no Castelo de Duino. Um belo dia de janeiro,
passeando às bordas de um penhasco sobre o Adriático, diz ter
ouvido no vento o mistério de uma voz que lhe dizia: “Quem, se eu
gritasse, me ouviria em meio à hierarquia dos anjos?” Eriçado, e
ao mesmo tempo atônito com o milagre dessas palavras que lhe surgiam
com a própria poesia desejada, o poeta as anotou e, nesse mesmo dia,
escrevia o primeiro movimento desse bloco sinfônico a que chamou
Elegias de Duíno. Tão temperados se achavam nele os motivos da obra
em perspectiva que, em poucos dias, escrevia a segunda da série e o
começo de quase todas as outras.
Mas
o impulso cessou. Por dez anos Rilke calou-se, à espera de que nele
as palavras encontrassem seu lugar exato no grande puzzle poético
que se desencadeara. Em Paris, na Espanha e em Munique acrescentou
fragmentos a algumas das elegias, sofrendo terrivelmente da
descontinuidade com que a poesia se revelava. E não seria senão
depois da Primeira Grande Guerra, no seu refúgio da Suíça, em
Muzot, que num sopro de criação poucas vezes igualado, só
comparável talvez a certos instantes de música e de pintura em
Miguelangelo e Beethoven, escreveria em três semanas as oito elegias
restantes, Os 55 Sonetos a Orfeu e vários outros poemas a que
chamou Fragmentarishes. Fora o último espasmo de vida nesse
eterno, sereno moribundo. A Morte, sua amiga, desobjetivava-o poucos
anos depois, como “um rio que leva”. Rilke recusou o médico:
queria morrer a sua morte.
Mas,
depois, o mal-estar em que me deixou essa combinação de Rilke e
Sarah Vaughan... Foi quando tive a boa ideia de ler tua novela A
morte e a morte de Quincas Berro D'água, Jorge. Que mortes tão
diferentes... Que beleza, Jorge, que beleza!
Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor
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