quarta-feira, 6 de novembro de 2024

O discreto charme da magistocracia


Apresentação

Recém-nomeado ao Supremo Tribunal Federal, em agosto de 2023, o novo ministro abraça o governador de Alagoas na cerimônia de posse. Governadores não costumam frequentar esses eventos, mas acontece. Dias depois, o ministro decano do STF, o mais longevo na cadeira, sozinho, anula todas as provas reunidas contra esse governador em operação policial autorizada, por 10 votos a 2, pelo Superior Tribunal de Justiça em 2022.
O governador é cliente do ex-escritório de advocacia do ministro empossado. O mesmo escritório da esposa desse ministro (agora ex-sócia). Semanas antes, o governador também participou de encontro jurídico em Lisboa, organizado pela empresa do ministro decano, na presença das maiores autoridades políticas e jurídicas do país. Rodeados de advogados e empresários. Uma reunião dos Três Poderes com o poder econômico, uma congregação do público com o privado. Bem longe do país. E bem distante de qualquer valor republicano.
Episódios como esse geram a fumaça da desconfiança. Procurando mais, talvez outras conexões se iluminem nessa intrincada rede de relações. Será que a anulação das provas obedeceu à legalidade? Ou foi puro intercâmbio de interesses?
Difícil saber. Não podemos entrar na cabeça dos ministros para investigar suas reais intenções. Seus comportamentos, contudo, não ajudam. Deixam pouco nas entrelinhas e justificam a suspeita.
Atitudes assim facilitam a vida do extremismo político e convidam ao ataque de má-fé. Fragilizam o tribunal e o estado democrático de direito. Não são deslizes nem falta de noção, mas condutas antiéticas. E a antiética judicial, ao contrário de normas éticas gerais, é também ilegal.
Se você não quiser seguir princípios éticos para ser uma “boa pessoa”, qualquer que seja essa definição, tem liberdade para tanto. Já os deveres éticos do “bom juiz” estão previstos em lei. Nenhum juiz é livre para ignorá-los. A arquitetura institucional deveria fiscalizar e sancionar os desvios. Se a violação de deveres éticos é tolerada, não se torna menos ilegal por isso. Juízes devem prestar contas. Não só perante sua consciência.
Mais do que qualquer outra, instituições de justiça dependem da fumaça da confiança. A imagem de integridade é sua principal âncora de legitimidade. Para a credibilidade de um tribunal, a mensagem transmitida pela conduta de seus membros chega a ser mais decisiva do que as reais intenções eventualmente escondidas em despachos, votos e sentenças.
No mundo da justiça, parecer honesto importa tanto quanto ser honesto. Se for um lobo, que pelo menos o seja em pele de cordeiro. Não basta, mas não é pouco.
A anedota dá apenas um exemplo atual entre tantos do cotidiano político relatados pelos jornais. Não são casos isolados. Permitem visualizar padrões de comportamento das autoridades jurídicas brasileiras. Agregados, demonstram costumes arraigados. E esses costumes operam contra as instituições.
Este livro reúne uma seleção de 88 colunas sobre atores do sistema de justiça brasileiro. Sobre a magistocracia, mais especificamente. Magistocracia é um neologismo que mistura o termo “magistrado” com “aristocracia”. Evoca a ideia da aristocracia de toga. Adota o sentido mais antigo e abrangente de magistrado, que abarca qualquer agente público dotado de autoridade, como juízes, procuradores, promotores, advogados públicos. Magistocratas, aqui, não são somente os juízes.
A magistocracia corresponde a uma fatia do sistema de justiça, não à sua totalidade. Ela coloniza as cúpulas das instituições de justiça e as governa. Exerce hegemonia cultural e política e dá pouca margem para sua transformação.
O livro atribui cinco características à magistocracia. Ela é autoritária, porque adota noções iliberais e pré-constitucionais das liberdades públicas e é corresponsável por grandes violações de direitos (como o encarceramento em massa e a violência policial); autocrática, afinal reprime a independência de juízes ideologicamente destoantes; autárquica, pois recusa mecanismos de controle e transparência; rentista, porque se utiliza de estratagemas da baixa política para acumular benefícios remuneratórios que escapam da legalidade; e dinástica, pois pratica e tolera variadas formas de favoritismo familiar, o chamado parentismo.
Instituições erram e acertam. A magistocracia erra, protege o erro e resiste à autocorreção. Seus erros formam sérias comorbidades da democracia brasileira.
Juízes contrabandeiam o retrato idealizado de como pensam que o Judiciário deveria ser para dentro da descrição de como de fato é. E assim escondem o que o Judiciário é ou poderia ser. Essa dissonância acaba se normalizando na consciência de cada magistocrata orgulhoso de sua condição. Quando confrontados com retratos mais secos e realistas, alguns entram em negação. Outros partem para a perseguição.
Diante de críticas factuais, um magistocrata recita doutrinas e aforismos ululantes: “A Magistratura é, antes de tudo, serva da Constituição e da lei.” Prefere atuar no campo retórico ilusionista. Tem mania do autoelogio.
O sistema de justiça, claro, é mais diverso do que um retrato estanque e generalista da magistocracia. Não é só feito de magistocratas. Nas franjas, vê-se empenho, abnegação, coragem, cuidado, sensibilidade social, conhecimento sociológico, inteligência jurídica, sinceridade hermenêutica. São exceção nas cúpulas institucionais que governam tribunais superiores, regionais ou estaduais. Mas a diversidade, que poderia diluir a perversão magistocrática e democratizar a justiça, mal consegue subir os degraus da hierarquia.
O livro reúne escritos em ordem cronológica de publicação. Recupera alguns textos esparsos de opinião publicados a partir de 2010 em jornais, colunas semanais desde que me tornei colaborador semanal na revista Época, em março de 2018, e da Folha de S.Paulo, em novembro de 2019.
O conjunto não corresponde a uma miscelânea aleatória de temas conforme o vento da conjuntura nesses anos. Todos remetem ao lugar de cortes, de juízes e de outros profissionais jurídicos na democracia.
Além de contribuir para a memória de um período, há um fio condutor que costura argumentos comuns: de um lado, a defesa da imparcialidade, do decoro; de outro, a denúncia de conflitos de interesses, da suspeição e da corrupção institucional, da manipulação da retórica jurídica, da sedução e do disfarce.
As colunas podem ser lidas linear ou tematicamente. O índice remissivo ajuda quem quiser navegar pelos textos de acordo com os temas ou personagens tratados.
Luis Buñuel, diretor da obra surrealista O discreto charme da burguesia, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro de 1973, não se espantaria com o discreto charme da magistocracia. No filme, em dada noite, amigos da alta sociedade buscam jantar, o que acaba nunca acontecendo em razão de seguidos incidentes inusitados. Sem perder a pose, o grupo entretém conversas presunçosas, simula normalidade e expressa desprezo moral pelo drama que os rodeia. A magistocracia não deixa nada a dever.

Conrado Hübner Mendes, em O discreto charme da magistocracia: Vícios e disfarces do judiciário brasileiro

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