quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Os Nascimentos | 1553 – Margens do rio San Pedro


Miguel

Bastante pele tinha deixado nos chicotes. O acusavam de trabalhar sem vontade ou de perder a ferramenta e dizia o mordomo: “Que pague com o corpo”. Quando iam amarrá-lo para outra dose de açoites, Miguel arrebatou uma espada e perdeu-se na montanha.
Outros escravos das minas de Buría fugiram atrás dele. Uns quantos índios se somaram aos chimarrãos. Assim nasceu o pequeno exército que no ano passado atacou as minas e investiu contra a recém-nascida cidade de Barquisimeto.
Depois os rebeldes vieram montanha adentro e longe de tudo fundaram, nas margens do rio, este reino livre. Os índios jirajaras pintaram de negro seus corpos, da cabeça aos pés, e junto com os africanos proclamaram como monarca o negro Miguel.
A rainha Guiomar passeia, rumbosa, entre as palmeiras. Range sua ampla saia de brocados. Dois pajens erguem as pontas de seu manto de seda.
De seu trono de pau, Miguel manda cavar trincheiras e levantar paliçadas, designa oficiais e ministros e proclama bispo o mais sabido dos homens. Aos seus pés, brinca com pedrinhas o príncipe herdeiro.
Meu reino é redondo e de águas claras – diz Miguel, enquanto um cortesão ajeita sua gola de rendas e outro estica as mangas do gibão de cetim.
Já se prepara em Tocuyo, ao mando de Diego de Losada, a tropa que matará Miguel e aniquilará seu reino. Virão os espanhóis armados de arcabuzes e cães e balestras. Os negros e os índios que sobreviverem perderão suas orelhas ou seus testículos ou os tendões de seus pés, para exemplo de toda Venezuela.

Eduardo Galeano, em Os Nascimentos

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