domingo, 24 de novembro de 2024

Linguagem: a história da maior invenção da humanidade


Prefácio

Por volta de 1920, uma cascavel matou meu bisavô nos arredores de Lubbock, Texas. Voltando da igreja para casa com sua família, por entre uma plantação de algodão, meu bisavô Dungan estava dizendo para seus filhos tomarem cuidado com as cobras na plantação quando ele, de repente, foi picado na coxa. Sua filha, Clara Belle, minha avó, me contou que ele sofreu por três dias, paralisado pela dor e pelos gritos, até que finalmente deu o último suspiro em seu quarto, nos fundos da casa.
Não foi preciso estar na cena do incidente para saber que, em se tratando de uma cascavel, ela deve ter “avisado” meu bisavô antes do ataque. Mas, considerando o resultado, deve ter havido uma falha na comunicação entre meu bisavô Dungan e a cobra. Minha avó viu a cobra morder seu pai e falou sobre o ocorrido muitas vezes durante minha infância. Ela seguidamente se lembrava daqueles momentos em que a cobra estava “avisando-o”, como se o bicho fosse usar palavras de verdade se conseguisse. Contudo, as pessoas que sabem que as cascavéis se comunicam muitas vezes confundem a agitação de sua cauda com linguagem, antropomorfizando as cobras e usando termos humanos para falar delas, como “elas dizem para você se afastar”, quando, na verdade, estão balançando as partes ocas – interconectadas e formadas de queratina – da sua cauda para produzir um chocalho ruidoso. Embora essa ação não seja tecnicamente linguagem, o chocalho da cobra carrega informações importantes. Meu bisavô pagou um preço muito alto por não conseguir ouvir essa mensagem.
Claro, as cascavéis não são os únicos animais que se comunicam. Na verdade, todos os animais se comunicam, recebendo informações de outros animais e também lhes transmitindo, quer de sua espécie quer de espécies diferentes. Como eu vou explicar mais adiante, nós não devemos cair na tentação de chamar o chocalho da cobra de linguagem. O repertório de uma cascavel é magnificamente efetivo, mas para propósitos rigorosamente limitados. Nenhuma cobra pode lhe dizer o que quer fazer amanhã ou como se sente em relação ao clima. Mensagens como essas requerem linguagem, a mais avançada forma de comunicação que o planeta já produziu.
A história de como os humanos vieram a adquirir a linguagem é a menos contada, repleta de invenções e descobertas, e as conclusões a que eu chego, por meio dessa história, têm uma longa genealogia nas ciências relacionadas à evolução da linguagem – Antropologia, Linguística, Ciências Cognitivas, Paleoneurologia, Arqueologia, Biologia, Neurociência e Primatologia. No entanto, como qualquer cientista, minhas interpretações estão fundamentadas no meu conhecimento prévio, que, nesse caso, é de quarenta anos de pesquisa de campo sobre línguas e culturas da América Central, do Sul e do Norte, especialmente de caçadores-coletores da Amazônia brasileira. Como no meu último estudo sobre a intersecção entre psicologia e cultura, Dark Matter of the Mind: The Culturally Articulated Unconscious, eu nego neste livro que a linguagem seja um instinto de qualquer tipo, assim como nego que ela seja inata ou congênita.
Desde o trabalho do psicólogo Kurt Goldstein no começo do século XX, os pesquisadores têm negado que haja distúrbios cognitivos exclusivos da linguagem. A ausência de tais distúrbios parece sugerir que a linguagem surge de um indivíduo, e não simplesmente de regiões do cérebro específicas para a linguagem. Por sua vez, isso dá suporte à afirmação de que ela não é um desenvolvimento relativamente recente, de digamos 50-100 mil anos de idade, que exclusivamente os Homo sapiens possuem. Minha pesquisa sugere que a linguagem começou com os Homo erectus, mais de um milhão de anos atrás, e tem existido por 60 mil gerações.
Sendo assim, os heróis dessa história são os Homo erectus, homens com postura ereta, as criaturas mais inteligentes que haviam existido até aquele momento. Os erectus foram os pioneiros da linguagem, da cultura, da migração humana e da aventura. Por volta de 750 mil anos antes de os Homo erectus se metamorfosearem em Homo sapiens, suas comunidades navegaram 320 quilômetros pelo oceano aberto e andaram quase o mundo inteiro.
As comunidades de erectus inventaram símbolos e linguagem, do tipo que não pareceriam inadequados hoje em dia. Embora suas línguas diferissem das línguas modernas no que diz respeito à quantidade de ferramentas gramaticais, elas eram línguas humanas. Sem sombra de dúvida, com o passar das gerações, foi natural que os Homo sapiens aprimorassem o que os erectus tinham feito, e ainda há línguas faladas hoje em dia que são remanências da primeira língua já falada, sem que isso signifique que sejam inferiores às outras línguas modernas.
A palavra latina “Homo” significa “homem”. Logo, qualquer criatura do gênero Homo é um ser humano. Na nomenclatura biológica latina de duas palavras, “gênero” é uma classificação mais ampla, da qual as “espécies” são variedades. Assim, “Homo erectus” descreve uma espécie – “erectus”, ‘que está em pé’ –, que é um membro do gênero Homo. Portanto, Homo erectus significa “homem que está em pé”. É a primeira espécie de humanos. Homo neanderthalensis significa “homem do Vale de Neander”, com base no fato de que seus fósseis foram descobertos, pela primeira vez, no Vale de Neander, na Alemanha. Homo sapiens significa “homem sábio” e sugere, de forma incorreta, como veremos, que todos os humanos modernos (somos todos Homo sapiens) são os únicos humanos sábios ou inteligentes. Nós somos, muito provavelmente, os mais inteligentes. Mas não somos os únicos humanos inteligentes que já viveram.
Os erectus também inventaram o outro pilar da cognição humana: a cultura. Aquilo que somos hoje foi parcialmente constituído pela inteligência, pelas viagens, pelos experimentos e pela força dos Homo erectus. Isso é digno de nota, porque muitos sapiens não dão o devido valor à importância que os primeiros humanos tiveram para que nós tenhamos nos tornado o que somos hoje.
Meu interesse na linguagem e na sua evolução é pessoal. Toda a minha vida, desde os primeiros anos da minha criação na fronteira entre o México e a Califórnia, as línguas e as culturas me fascinaram. E como não poderiam? Incrivelmente, todas as línguas compartilham pelo menos algumas características gramaticais, seja da relação entre palavras e coisas, entre palavras e acontecimentos ou entre convenções e ordenamento e estruturação de som e palavras, ou entre organização de parágrafos, histórias e conversas. Mas as línguas talvez sejam mais diferentes do que semelhantes umas em relação às outras. Independentemente de quão fácil ou difícil pode ser descobrir essas diferenças, elas sempre estiveram lá. Hoje em dia não há nenhuma língua humana universal, se é que houve em algum passado remoto. E não há nenhum molde mental inato para gramática. As similaridades entre as línguas não estão enraizadas em alguma genética especializada para a linguagem. Elas se seguem de uma cultura e de soluções de processamento de informações comuns e têm suas próprias histórias evolutivas individuais.
Mas toda língua satisfaz a necessidade humana de se comunicar. Embora muitas pessoas do mundo de hoje sejam tentadas a gastar mais tempo em mídias sociais do que talvez deveriam, é o impulso das trocas linguísticas que as está levando a essa situação. Não importa o quão ocupadas algumas pessoas estejam, é difícil não participarem de alguma conversa na tela à sua frente, para opinar sobre assuntos sobre os quais elas sabem pouco e se importam menos ainda. Seja por meio de conversas informais, da absorção de informações vindas da televisão, da discussão de jogos ou da leitura/escrita de romances, falar e escrever conecta os humanos, de modo ainda mais íntimo, em uma comunidade.
Como resultado, a linguagem – não a comunicação – é a linha que separa os homens dos outros animais. Ainda assim, é impossível compreender a linguagem sem compreender alguma coisa sobre sua origem e sua evolução. Há séculos, as pessoas formulam hipóteses sobre onde e quando a linguagem se originou. Elas se perguntam qual das muitas espécies do gênero Homo foi a primeira a ter linguagem; questionam como teria sido a primeira língua na aurora da história da humanidade. A resposta é simples: a linguagem surgiu gradualmente de uma cultura, formada por pessoas que se comunicavam umas com as outras, através dos cérebros humanos. A linguagem está a serviço da cultura.
Linguagem: a história da maior invenção da humanidade oferece uma história ampla e única da evolução da linguagem como uma invenção humana – da emergência da nossa espécie até as mais de sete mil línguas faladas hoje em dia. Sua complexidade e extensão foram inventadas pela nossa espécie, posteriormente se desenvolvendo em variedades locais; cada comunidade linguística foi modificando a linguagem para acomodar sua própria cultura. As primeiras línguas também foram restringidas pela neuropsicologia e pelo trato vocal humanos. Todas as línguas surgiram gradualmente. A linguagem não começou com gestos, nem com cantoria, nem com imitação dos sons animais. A linguagem surgiu através de símbolos inventados culturalmente. Os humanos ordenaram esses símbolos iniciais e formaram símbolos superiores a partir deles. Ao mesmo tempo, os símbolos foram acompanhados por gestos e pela modulação da altura da voz: a entonação. Os gestos e a entonação funcionam conjunta e individualmente para chamar a atenção, para tornar perceptivamente mais salientes alguns dos símbolos usados em um enunciado – os mais relevantes para o ouvinte. Esse sistema de símbolos, ordenamento, gestos e entonação surgiu cooperativamente; cada componente adicionando alguma coisa que levou a algo mais intrincado, mais eficaz. Nenhum desses componentes era parte da linguagem até que todos eles fossem – há quase dois milhões de anos. A linguagem foi culturalmente inventada e modelada e tornou-se possível por causa dos cérebros maiores e mais densos. Essa combinação de cérebro e cultura explica por que somente os humanos têm sido capazes de falar até agora.
Outros autores têm rotulado a linguagem como “invenção” somente para qualificar essa avaliação como razoável, acrescentando “mas não é realmente uma invenção. Trata-se de uma metáfora”. Mas o uso da palavra “invenção” nesse caso não é uma metáfora. Ele quer dizer o que quer dizer: que as comunidades humanas criaram símbolos, gramática e linguagem onde antes não havia nada.
Mas o que é uma invenção? É uma criação de cultura. Thomas Edison sozinho não inventou a lâmpada, ele precisou do trabalho de Franklin sobre eletricidade, quase duzentos anos antes dele. Ninguém inventa nada. Tudo é parte de uma cultura e parte da criatividade de cada um, de ideias, de tentativas prévias e do conhecimento geral sobre o mundo em que vivemos. Cada invenção é construída ao longo do tempo, pedaço por pedaço. A linguagem não é exceção.

Daniel L. Everett, em Linguagem: a história da maior invenção da humanidade

Nenhum comentário:

Postar um comentário