Já
não tinha voz, mas teimava em dizer que a tinha. “O desuso é que
me faz mal”, acrescentava. Sempre que uma companhia nova chegava da
Europa, ia ao empresário e expunha-lhe todas as injustiças da Terra
e do Céu; o empresário cometia mais uma, e ele saía a bradar
contra a iniquidade. Trazia ainda os bigodes dos seus papéis. Quando
andava, apesar de velho, parecia cortejar uma princesa de Babilônia.
Às vezes, cantarolava, sem abrir a boca, algum trecho ainda mais
idoso que ele ou tanto; vozes assim abafadas são sempre possíveis.
Vinha aqui jantar comigo algumas vezes. Uma noite, depois de muito
Chianti, repetiu-me a definição do costume, e como eu lhe dissesse
que a vida tanto podia ser uma ópera como uma viagem de mar ou uma
batalha, abanou a cabeça e replicou:
– A
vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam
pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não
são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do
mesmo baixo e dos mesmos comprimários. Há coros numerosos, muitos
bailados, e a orquestração é excelente…
– Mas,
meu caro Marcolini…
– Quê?…
E,
depois, de beber um gole de licor, pousou o cálice, e expôs-me a
história da criação, com palavras que vou resumir.
Deus
é o poeta. A música é de Satanás, jovem maestro de muito futuro,
que aprendeu no conservatório do céu. Rival de Miguel, Rafael e
Gabriel, não tolerava a precedência que eles tinham na distribuição
dos prêmios. Pode ser também que a música em demasia doce e
mística daqueles outros condiscípulos fosse aborrecível ao seu
gênio essencialmente trágico. Tramou uma rebelião que foi
descoberta a tempo, e ele expulso do conservatório. Tudo se teria
passado sem mais nada, se Deus não houvesse escrito um libreto de
ópera, do qual abrira mão, por entender que tal gênero de recreio
era impróprio da sua eternidade. Satanás levou o manuscrito consigo
para o inferno. Com o fim de mostrar que valia mais que os outros, —
e acaso para reconciliar-se com o céu, — compôs a partitura, e
logo que a acabou foi levá-la ao Padre Eterno.
– Senhor,
não desaprendi as lições recebidas, disse-lhe. Aqui tendes a
partitura, escutai-a, emendai-a, fazei-a executar, e se a achardes
digna das alturas, admiti-me com ela a vossos pés…
– Não,
retorquiu o Senhor, não quero ouvir nada.
– Mas,
Senhor…
– Nada!
Nada!
Satanás
suplicou ainda, sem melhor fortuna, até que Deus, cansado e cheio de
misericórdia, consentiu em que a ópera fosse executada, mas fora do
céu. Criou um teatro especial, este planeta, e inventou uma
companhia inteira, com todas as partes, primárias e comprimárias,
coros e bailarinos.
– Ouvi
agora alguns ensaios!
– Não,
não quero saber de ensaios. Basta-me haver composto o libreto; estou
pronto a dividir contigo os direitos de autor.
Foi
talvez um mal esta recusa; dela resultaram alguns desconcertos que a
audiência prévia e a colaboração amiga teriam evitado. Com
efeito, há lugares em que o verso vai para a direita e a música,
para a esquerda. Não falta quem diga que nisso mesmo está a beleza
da composição, fugindo à monotonia, e assim explicam o terceto do
Éden, a ária de Abel, os coros da guilhotina e da escravidão. Não
é raro que os mesmos lances se reproduzam, sem razão suficiente.
Certos motivos cansam à força de repetição. Também há
obscuridades; o maestro abusa das massas corais, encobrindo muita vez
o sentido por um modo confuso. As partes orquestrais são aliás
tratadas com grande perícia. Tal é a opinião dos imparciais.
Os
amigos do maestro querem que dificilmente se possa achar obra tão
bem acabada. Um ou outro admite certas rudezas e tais ou quais
lacunas, mas com o andar da ópera é provável que estas sejam
preenchidas ou explicadas, e aquelas desapareçam inteiramente, não
se negando o maestro a emendar a obra onde achar que não responde de
todo ao pensamento sublime do poeta. Já não dizem o mesmo os amigos
deste. Juram que o libreto foi sacrificado, que a partitura corrompeu
o sentido da letra, e, posto seja bonita em alguns lugares, e
trabalhada com arte em outros, é absolutamente diversa e até
contrária ao drama. O grotesco, por exemplo, não está no texto do
poeta; é uma excrescência para imitar as Mulheres Patuscas de
Windsor. Este ponto é contestado pelos satanistas com alguma
aparência de razão. Dizem eles que, ao tempo em que o jovem Satanás
compôs a grande ópera, nem essa farsa nem Shakespeare eram
nascidos. Chegam a afirmar que o poeta inglês não teve outro gênio
senão transcrever a letra da ópera, com tal arte e fidelidade, que
parece ele próprio o autor da composição; mas, evidentemente, é
um plagiário.
– Esta
peça, concluiu o velho tenor, durará enquanto durar o teatro, não
se podendo calcular em que tempo será ele demolido por utilidade
astronômica. O êxito é crescente. Poeta e músico recebem
pontualmente os seus direitos autorais, que não são os mesmos,
porque a regra da divisão é aquilo da Escritura: “Muitos são os
chamados, poucos os escolhidos”. Deus recebe em ouro, Satanás em
papel.
– Tem
graça…
– Graça?
bradou ele com fúria; mas aquietou-se logo, e replicou: Caro
Santiago, eu não tenho graça, eu tenho horror à graça. Isto que
digo é a verdade pura e última. Um dia, quando todos os livros
forem queimados por inúteis, há de haver alguém, pode ser que
tenor, e talvez italiano, que ensine esta verdade aos homens. Tudo é
música, meu amigo. No princípio era o dó, e o dó fez-se ré, etc.
Este cálice (e enchia-o novamente), este cálice é um breve
estribilho. Não se ouve? Também não se ouve o pau nem a pedra, mas
tudo cabe na mesma ópera…
Machado de Assis, em Dom Casmurro
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