Volúpia:
aguilhão e estaca para todos os desprezadores do corpo que vestem
cilício, e amaldiçoada como “mundo” por todos os trasmundanos:
pois escarnece e ludibria todos os mestres da confusão e do erro.
Volúpia:
para a gentalha, o fogo lento em que é consumida; para toda madeira
carcomida, para todos os trapos malcheirosos, o forno aceso e
fervoroso.
Volúpia:
para os corações livres, inocência e liberdade, a felicidade
edênica na terra, a transbordante gratidão de todo futuro ao
presente.
Volúpia:
apenas para o emurchecido um adocicado veneno, mas para os de vontade
leonina o grande estimulador do coração e o veneravelmente
reservado vinho dos vinhos.
Volúpia:
a grande imagem de felicidade para superior felicidade e suprema
esperança. Pois para muitos é prometido o casamento e mais que o
casamento, —
— para
muitos que são mais estranhos a si mesmos que o homem à mulher: —
e quem compreendeu totalmente quão estranhos um ao outro são
o homem e a mulher?
Volúpia:
— mas quero que haja cercas em volta de meus pensamentos e também
de minhas palavras: para que os porcos e entusiastas não irrompam em
meus jardins! —
Ânsia
de domínio: tição e açoite dos mais duros entre os duros de
coração; o horrendo martírio reservado ao mais cruel; a sombria
chama das fogueiras que vivem.
Ânsia
de domínio: o maldoso moscardo118 imposto aos povos mais vaidosos; a
escarnecedora de toda virtude incerta; que monta cada cavalo e cada
orgulho.
Ânsia
de domínio: o terremoto que rompe e quebra tudo que é podre e cavo;
a estrondeante, punitiva destruidora de sepulcros caiados; a
coruscante interrogação junto a respostas prematuras.
Ânsia
de domínio: ante seu olhar o homem rasteja, se curva, se submete e
se torna mais baixo do que serpente e porco: — até que finalmente
o grande desprezo grita de dentro dele —,
Ânsia
de domínio: a terrível professora do grande desprezo, que prega na
face de cidades e reinos: “Fora contigo!” — até que de dentro
deles mesmos se grita: “Fora comigo!”.
Ânsia
de domínio: que, no entanto, também sobe sedutoramente aos puros e
solitários e até alturas que bastam a si mesmas, ardente como um
amor que sedutoramente pinta purpúreas bem-aventuranças no céu da
terra.
Ânsia
de domínio: mas quem chamaria “ânsia” quando o que é alto
desce, desejando o poder? Em verdade, nada há de malsão e sôfrego
em tal desejar e descer!
Que
a altura solitária não permaneça eternamente solitária e bastando
a si mesma; que a montanha chegue ao vale e os ventos da altura
cheguem às baixadas: —
Oh,
quem encontraria o nome certo de virtude para batizar esta ânsia?
“Virtude dadivosa” — assim denominou Zaratustra um dia o
inominável.
E
também aconteceu então — em verdade, pela primeira vez! — que
sua palavra beatificasse o egoísmo, o sadio, inteiro egoísmo que
brota de uma alma poderosa: —
— de
uma alma poderosa, a que pertence o corpo elevado, o corpo bonito,
vitorioso, animador, em redor do qual tudo se torna espelho:
O
corpo flexível e convincente, o dançarino cujo símbolo e epítome
é a alma que se compraz em si. O prazer-consigo120 desses corpos e
almas chama a si mesmo “virtude”.
Com
suas palavras sobre o que é bom e ruim, esse prazer-consigo se
protege como com bosques sagrados; com os nomes de sua felicidade,
bane de sua presença tudo que é desprezível.
Bane
para longe de si tudo que é covarde; diz: “Ruim — isso é
covarde!”. Desprezível lhe parece quem sempre está a se
preocupar, lamentar, suspirar, e quem recolhe até as mínimas
vantagens.
Despreza
também toda sabedoria lamuriante: pois, em verdade, há também a
sabedoria que floresce na escuridão, uma sabedoria de sombras
noturnas: a qual sempre suspira: “Tudo é vão!”.
A
desconfiança timorata vale pouco para ele, assim como todo aquele
que prefere juramentos a olhares e mãos: e também toda sabedoria
desconfiada demais — pois tal é a maneira das almas covardes.
Menos
ainda vale para ele o obsequioso fácil, o ser canino, que
imediatamente se deita de costas, o humilde; e há também sabedoria
que é humilde, canina, devota, e facilmente obsequiosa.
É-lhe
odioso, e até mesmo nojento, quem jamais quer se defender, quem
engole escarros venenosos e olhares maus, o ser demasiado paciente,
com tudo tolerante, com tudo satisfeito: pois isso é maneira de
servo.
Seja
alguém servil ante os deuses e os pontapés divinos ou ante os
homens e as estúpidas opiniões humanas: em toda maneira de
servo ele cospe, esse bem-aventurado egoísmo!
Ruim:
assim chama ele a tudo que se curva e é tacanho-servil, aos
submissos olhos que pestanejam, aos corações oprimidos e àquela
falsa maneira indulgente que beija com lábios amplos e covardes.
E
pseudossabedoria: assim chama ele a tudo que gracejam os servos,
idosos e cansados; e, em especial, toda a feia, delirante, demasiado
engenhosa tolice dos sacerdotes!
Os
pseudossábios, porém, todos os sacerdotes, os cansados do mundo e
aqueles cuja alma tem a maneira da mulher e do servo — oh, que
terríveis peças pregaram desde sempre no egoísmo!
E
que precisamente isto fosse considerado e chamado virtude, pregar
terríveis peças no egoísmo! E “sem-ego” — assim desejariam
ser, com bom motivo, todos esses covardes e aranhas-de-cruz cansados
do mundo!
Mas
para todos eles está chegando o dia, a transformação, a espada da
justiça, o grande meio-dia: muita coisa será então
revelada!
E
quem proclama o Eu sadio e sagrado e o egoísmo bem-aventurado, em
verdade também proclama aquilo que sabe e profetiza: “Vê, ele
está chegando, ele está próximo, o grande meio-dia!”.
Assim
falou Zaratustra.
Friedrich Nietzsche, em Assim falou Zaratustra
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