Um
dos meus grandes encantos em Florença, onde, em 1952, passei cerca
de um mês, era ver da janela do meu quinto andar, no Hotel
Nazionale, a madrugada toscana romper sobre a piazza Santa Maria
Novella. Habituei-me de tal modo a isso que, nos meus hábitos de
noctâmbulo, esticava a noite até o amanhecer, só pelo prazer de
ver a luz rósea do sol florentino descobrir e incendiar os mármores
da fachada da igreja de Santa Maria Novella, bem como o claustro
verde que fica à sua esquerda e as elegantes arcadas do fundo, onde
existem as terracotas de Andrea e Giovanni della Robbia. Mas o prazer
desse minuto de luz acabaria por resultar monótono, não se lhe
seguisse um dos mais extraordinários divertissements a que já
me foi dado assistir, misto de balé, cinema e circo romano, sem
falar que cheio de ensinamentos sobre a vida e arte de viver
perigosamente.
O
caso é que, aos primeiros vestígios de luz, começava-se a ouvir
por ali em torno um brando ruflar de asas que, com o despontar do
Sol, crescia num espesso burburinho ao qual vinham se unir doces
arrulhos. E o ambiente, em suas cores rosa, verde, laranja e
terracota, adquiria uma maciez de plumas; e logo asas brancas e
trigueiras começavam a tatalar em largos voos e algumas desciam em
voos rasantes; e toda uma população de pombos, habitantes daqueles
mil escaninhos, como só pode proporcionar a arquitetura antiga,
vinha pousar na praça.
A
coisa ficava assim por uns poucos minutos; e em breve apareciam,
infalivelmente, no belo logradouro, três padres e cinco gatos. Cabe
dizer, em nome da verdade, que os padres chegavam bem menos
sorrateiramente que os gatos e, estou certo, com intenções muito
menos maléficas; pois se vinham os padres para se aquecer um pouco
ao sol e ler seus breviários, os gatos surgiam, esgueirando-se das
ruas laterais, para cumprir uma fatalidade do seu destino, que é de
comer pombos. E com a malícia que lhes é peculiar, colocavam-se
pacientemente em posições estratégicas, sob automóveis encostados
ao meio-fio, à espera do momento azado para o bote.
Deus
sabe que, entre gatos e pombos, eu sou francamente pela primeira
espécie. Acho os pombos um povo horrivelmente burguês, com o seu ar
bem-disposto e contente da vida, sem falar na baixeza de certas
características de sua condição, qual seja a de, eventualmente, se
entredevorarem quando engaiolados. Mas no caso especial da piazza de
Santa Maria Novella, devo confessar que era torcida incondicional dos
pombos; e só passei a torcer pelos gatos no final, quando,
defrontado com a realidade de sua terrível humilhação, e provável
neurose subsequente, achei que não faria nenhuma falta à comunidade
a desaparição de uma meia dúzia de columbinos, em beneficio do
sistema nervoso dos pobres gatos. Pois era quase doloroso ver o
fracasso constante de suas desesperadas tentativas de caçar um
pombinho que fosse. E garanto que eles empregavam todas as técnicas
tradicionais dos gatos, desde a paciente emboscada, até a carreira
às cegas, com saltos desordenados para todos os lados.
Tudo
em vão. Porque, a cada arremetida, os pombos limitavam-se a dar
pequenos voos que criavam verdadeiros túneis para os gatos, que os
percorriam em furiosas e inúteis investidas. E o pior é que cada
pombo, passado o rojão, pousava como se nada tivesse havido, e
continuava na sua estúpida ciscação do chão da praça, na mais
total indiferença diante de seu velho inimigo. Coisa que,
positivamente, devia deixar os gatos loucos. Haja visto um que um dia
eu vi, depois de numerosos ataques frustrados, a morder como um
possesso o pneu de um Chevrolet, e por cuja sanidade mental não
poria da maneira alguma a mão na Bíblia.
Vinicius de Moraes, em Para viver um grande amor
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