quinta-feira, 18 de abril de 2024

Missa do cadáver

Nos meus anos de professor na Unicamp, conheci uma professora de quem me tornei um grande amigo: Vilma Clóris de Carvalho. Sua especialidade e prazer era a neuroanatomia. E até frequentei um dos seus cursos como aluno igual aos outros, pra valer. O que eu mais admirava na Vilma é uma virtude que está ficando cada vez mais rara: ela era apaixonada por ensinar. Gostava dos seus alunos. Digo que a paixão por ensinar está ficando cada vez mais rara porque, nos relatórios de avaliação que os professores têm de preencher para os órgãos oficiais de controle burocrático, as atividades de ensino nem mesmo são mencionadas. O que vale são as pesquisas publicadas em revistas internacionais. Os professores, assim, deixam de ser professores. Transformam-se em pesquisadores. Os alunos não importam. Na realidade, atrapalham... Eu, pessoalmente, acho que ensinar é muito mais importante que pesquisar. Porque é no ensino que se aprende a pensar. E é da capacidade de pensar que surgem os pesquisadores. Se a pesquisa é um fruto, o ensino são as sementes que foram plantadas. Sem sementes não há árvores, sem árvores não há frutos. Pois a Vilma vivia para plantar, vivia a ensinar a pensar. Era uma verdadeira educadora. Uma das práticas mais comoventes de suas atividades como professora de anatomia era a “Missa do Cadáver”. Lidando com peças anatômicas diariamente, o aluno pode se tornar insensível e embrutecido, esquecido de que aquelas peças um dia foram um corpo que sonhou, sofreu, amou – alguém como nós. A “Missa do Cadáver” era para que os alunos se lembrassem das pessoas... Lembro-me de que, numa das missas, sobre a mesa eucarística, dentro de um recipiente de vidro, havia um coração vermelho. Houve tempo em que aquele coração batia... O caráter da Vilma marcou os seus alunos. Aposentou-se. Mudou-se para Recife. Escreveu um lindo livro em que aparecem combinadas as suas memórias de vida – fascinantes! – e o seu trabalho como professora e pesquisadora: Vivendo sem calendário.

Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

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