quinta-feira, 18 de abril de 2024

As ilhas da corrente | 2

O inverno acabou e a primavera estava quase no fim quando os filhos de Thomas Hudson chegaram à ilha naquele ano. Os três haviam combinado encontrar-se em Nova York para viajar juntos de trem e depois tomar o avião em Miami. Como de costume, não faltaram dificuldades com a mãe dos dois menores. Ela planejara uma excursão à Europa sem dizer nada, naturalmente, ao pai dos garotos sobre quando pretendia realizá-la, e queria os filhos durante o verão. Hudson poderia ficar com eles para as festas de fim de ano; depois do Natal, lógico. Porque o Natal seria passado com ela.
Thomas Hudson a essa altura já conhecia bem a manobra e afinal houve as concessões mútuas de sempre. Os dois filhos menores vinham à ilha visitar o pai por cinco semanas e depois iriam embora para Nova York, de onde partiriam na classe de estudante de um vapor da Linha Francesa ao encontro da mãe em Paris, onde ela já teria comprado algumas roupas necessárias. Estariam sob a tutela do irmão mais velho, Tom Jr., que depois iria reunir-se à mãe dele, que andava fazendo um filme no sul da França.
A mãe de Tom Jr. não exigira que ele fosse para lá e teria gostado que permanecesse na ilha com o pai. Mas adoraria vê-lo e era um acordo razoável em vista da decisão inabalável da mãe dos outros meninos, mulher deliciosa e de raro encanto, que jamais alterava qualquer plano que fizesse na vida. Sempre os conservava em segredo, feito um autêntico general, e os punha em prática com idêntico rigor. Uma concessão podia ser cabível. Mas nunca a modificação radical de um plano concebido em noite em claro, manhã de contrariedade ou festa regada a gim.
Um plano era um plano, e uma decisão, indubitavelmente, uma decisão. Sabendo disso, e bem adestrado nos costumes do divórcio, Thomas Hudson se deu por satisfeito por terem chegado a um acordo e que os filhos estivessem vindo por cinco semanas. Se é esse o prazo que conseguimos, pensou, contentemo-nos com ele. Cinco semanas é tempo suficientemente longo para se passar junto das pessoas que amamos e ao lado de quem gostaríamos de ficar para sempre. Mas, em primeiro lugar, por que se havia separado da mãe de Tom? Melhor não pensar nisso, aconselhou a si mesmo. Eis aí uma coisa sobre a qual convém pôr uma pedra em cima. E os filhos que você teve com a outra são ótimos. Muito estranhos, complicados, mas você bem sabe quantas boas qualidades herdaram da mãe. Mulher ótima, de quem você também nunca deveria ter se separado. E então disse consigo mesmo: Não, eu tinha que me separar.
Mas não se deixou impressionar por nada disso. Fazia muito tempo que não se impressionava por coisa alguma. Sufocava os remorsos com o máximo de trabalho possível e agora só se preocupava com a chegada dos garotos, que precisavam ter um bom veraneio. Depois retornaria à pintura.
Tinha conseguido substituir quase tudo, menos os filhos, pelo trabalho e a vida regular, normal, operosa, que observava na ilha. Acreditava ter criado ali algo que haveria de perdurar e retê-lo. Agora, quando sentia saudade de Paris, recorria às recordações em vez de viajar para lá. Fazia o mesmo com toda a Europa e grande parte da Ásia e da África.
Ainda se lembrava do comentário de Renoir ao saber que Gauguin havia abandonado tudo para ir pintar em Taiti: — Pra que ele precisa gastar tanto dinheiro pra ir pra tão longe quando a gente pode pintar tão bem aqui em Batignolles? — Em francês ficava melhor: quand on peint si bien aux Batignolles, e Thomas Hudson imaginava a ilha como o seu quartier, onde se havia radicado, conhecia os vizinhos e o trabalho rendia tanto como em Paris, quando Tom Jr. ainda era criança.
Às vezes deixava a ilha para pescar em águas cubanas ou para ir às montanhas no outono. Mas alugara a fazenda que possuía em Montana porque a melhor época por lá era no verão e no outono, e agora os meninos sempre tinham colégio no outono.
De vez em quando precisava dar um pulo a Nova York para falar com seu marchand de tableaux. Mas já se tornara mais frequente suceder o oposto, e o marchand levava as telas consigo para o norte. Estava muito cotado como pintor, sendo respeitado tanto na Europa quanto em seu próprio país. Recebia a renda sistemática do arrendamento petrolífero de terras que haviam sido propriedade do avô. Antigamente pastoris, ao serem vendidas alguém teve a boa ideia de conservar os direitos de mineração do solo. Cerca da metade dos rendimentos que usufruía era absorvida em pensões alimentares, mas o saldo proporcionava-lhe a segurança necessária para pintar unicamente o que queria, livre de coações comerciais. Permitia-lhe também viver onde bem entendesse e viajar quando lhe desse vontade.
Vencera praticamente em todos os setores da vida, exceto no casamento, apesar de nunca ter ligado realmente para o sucesso. O que lhe interessava eram a pintura e os filhos, e continuava apaixonado pela primeira mulher de quem se enamorara. Depois dela havia amado várias outras, e às vezes uma vinha fazer-lhe companhia na ilha. Sentia falta da presença feminina e durante certo tempo eram bem-vindas. Gostava de tê-las ali, frequentemente por períodos bastante longos. Mas no fim sempre sentia alívio quando partiam, mesmo aquelas por quem se afeiçoava. Aprendera a não discutir mais com mulheres e agora sabia como se esquivar do casamento. Duas coisas quase tão difíceis de aprender quanto se radicar e pintar de maneira constante, metódica. Mas tinha aprendido — e esperava que fosse em caráter permanente. Há muito tempo que sabia pintar e acreditava estar aprendendo cada vez mais com o correr dos anos. Aprender, porém, a ficar sempre no mesmo lugar e pintar com disciplina lhe fora bastante penoso, porque houve uma época em sua vida em que se mostrara indisciplinado, egoísta e impiedoso. Agora o sabia, não só porque muitas mulheres lhe tinham feito ver isso, mas porque descobrira finalmente, por si mesmo. Decidiu-se então a ser egoísta apenas com a pintura, implacável só com o trabalho — e a se autodisciplinar, aceitando a disciplina.
Ia aproveitar a vida dentro dos limites que se havia imposto e trabalhar com afinco. E hoje sentia-se felicíssimo porque os filhos iam chegar na manhã seguinte.
seu Tom, o senhor não quer nada? — perguntou-lhe Joseph, o criado. — Tirou o dia de folga, né?
Joseph era alto, a cara espichada, pretíssima, com mãos e pés enormes. Usava paletó e calças brancos e andava descalço.
Obrigado, Joseph. Acho que não quero nada.
Nem um pouco de gim-tônica?
Não. Acho que vou lá embaixo tomar um no bar do seu Bobby.
Tome um aqui. Sai mais barato. Seu Bobby tava de cara feia quando passei por lá. Misturou muita bebida, diz ele. Teve uma moça, de um iate aí, que pediu um troço chamado White Lady, e ele serviu pra ela uma garrafa daquela mineral americana que tem uma dona com uma espécie de vestido de mosquiteiro branco sentada junto de uma fonte.
É melhor eu ir até lá.
Deixe eu lhe preparar um antes. Veio correspondência pro senhor na lancha do piloto. O senhor pode ler enquanto toma seu drinque e depois vai lá no seu Bobby.
Tá certo.
Que bom — disse Joseph. — Porque já tá preparado. Parece que não tem nada importante nas cartas, seu Tom.
Onde estão?
Lá na cozinha. Já vou buscar. Tem duas com letra de mulher. Uma de Nova York. Uma de Palm Beach. Letra bonita. Uma daquele moço que vende os quadros do senhor em Nova York. E mais duas que eu nunca vi.
Não quer respondê-las pra mim?
Quero, sim senhor. É só o senhor deixar. Senão nem sei o que vou fazer com toda a instrução que eu tive.
É melhor ir buscá-las.
Sim, senhor, seu Tom. Chegou jornal também.
Por favor, Joseph, deixe pra hora do café.
Thomas Hudson sentou, leu a correspondência e tomou a bebida gelada. Releu uma carta e depois guardou todas numa gaveta da escrivaninha.
Joseph — chamou. — Você arrumou tudo para os meninos?
Arrumei, sim, seu Tom. E duas caixas extras de Coca-Cola. O Tom Jr. deve estar maior do que eu, né?
Ainda não.
Acha que ele já pode me derrubar?
Acho que não.
Eu lutei tantas vezes com aquele menino por motivos pessoais — disse Joseph. — Vai ser muito gozado chamar ele de seu. Seu Tom, seu David e seu Andrew. Três dos meninos mais danados que conheço. E o mais safado é o Andy.
Ele já nasceu safado — disse Thomas Hudson.
E, puxa vida, nunca mais parou — disse Joseph, cheio de admiração.
Vê se lhes dá um bom exemplo este verão.
Seu Tom, o senhor não vai querer que eu dê bom exemplo pra esses meninos este verão. Há três ou quatro anos, quando eu não sabia nada, podia ser. Eu vou é copiar o jeitão do Tom. Ele teve em colégio granfa e aprendeu boas maneiras de gente rica. Não vou poder ficar igualzinho a ele, mas posso comportar-me que nem ele. Sem cerimônia, mas educado. Depois vou ser tão sabido como o Dave. Essa é a parte mais difícil. Aí então vou aprender como é que o Andy faz pra ser tão safado.
Não comece com safadezas por aqui.
Não, seu Tom, o senhor entendeu mal o que eu quis dizer. Essa safadeza não é pra aplicar aqui em casa. Eu quero ela pra minha vida privada.
Vai ser bom com eles aqui, não é?
Seu Tom, não vai haver nada que se compare com aquela vez que eles fizeram aquele fogaréu todo. Pra mim, aquilo só pode ser comparado com a Segunda Vinda do Messias. Vai ser bom?, o senhor me pergunta. Vai, sim, senhor.
Temos que pensar numa porção de divertimentos pra eles.
Não, seu Tom — disse Joseph. — A gente devia era pensar num modo de proteger esses meninos dos próprios planos terríveis que eles têm. O Eddy podia ajudar-nos. Ele conhece os três melhor do que eu. Eu sou amigo deles, o que torna a coisa mais difícil.
Como vai o Eddy?
Já anda bebendo por aí pra festejar antecipadamente o aniversário da rainha. Tá em plena forma.
É melhor eu dar um pulo lá no seu Bobby enquanto ele ainda tá de cara feia.
Ele perguntou pelo senhor, seu Tom. O seu Bobby é um moço educado como poucos, e às vezes esse lixo que chega de iate por aqui deixa ele fubeca. Ele tava fubeca pra burro quando vim de lá.
Que é que você foi fazer lá?
Fui tomar Coca-Cola e fiquei pra uma rodadinha de bilhar.
Como vai a mesa?
Pior.
Eu vou até lá — disse Thomas Hudson. — Mas antes preciso de um banho e quero trocar de roupa.
Já deixei estendida em cima da cama pro senhor — avisou Joseph. — Quer outro gim-tônica?
Não, obrigado.
O seu Roger tá lá na lancha.
Ótimo. Depois eu falo com ele.
Ele vai ficar hospedado aqui?
Talvez.
Então, por via das dúvidas, vou arrumar a cama pra ele.
Isso.

Ernest Hemingway, in As ilhas da corrente

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