Eu
não gostava de música.
Só
as de carnaval, nas chanchadas da Atlântida. O rádio era para
futebol e programas humorísticos.
Com
13 anos, meus maiores interesses eram literários, esportivos e
sexuais. A música, pelo menos a que se ouvia no rádio e nos discos,
era insuportável para um adolescente de Copacabana no final dos anos
50. Boleros e sambas-canções falavam de encontros e desencontros
amorosos infinitamente distantes de nossas vidas de praia e cinema,
de livros e quadrinhos, de início da televisão e da ânsia de
modernização.
Para
nós, garotos de classe média de Copacabana, aqueles cantores da
Rádio Nacional e suas grandes vozes, dizendo coisas que não nos
interessavam em uma linguagem que não entendíamos, eram
abomináveis. Gostávamos mesmo era de praia e futebol, de ver Pelé
e Garrincha no Maracanã, dos folhetins de Nelson Rodrigues na Última
Hora, das gostosonas da coluna de Stanislaw Ponte Preta, das crônicas
de Antonio Maria sobre as noites cariocas, de pegar onda de peito no
Arpoador, de romances de aventura e de comédias italianas. E de
corridas de cavalos: meu grande ídolo era o jóquei Luiz Rigoni.
Apostava — e perdia — no Jockey Club e nos bookmakers até o
dinheiro que minha mãe me dava para o lanche no Colégio Santo
Inácio. Com 14 anos comecei a nadar todos os dias de manhã nos
infanto-juvenis do Fluminense e abandonei meu primeiro vício.
Mas
naquelas férias de 1958, em São Paulo, não só comecei a fumar
como ouvi num rádio de pilha Spica — a nova sensação
tecnológica, novidade absoluta recém-chegada ao Brasil — João
Gilberto cantando, “Chega de saudade”. Foi como um raio. Aquilo
era diferente de tudo que eu já tinha ouvido, fiquei chocado, sem
saber se tinha adorado ou detestado. Mas quanto mais ouvia, mais
gostava. Na volta ao Rio comprei o disco, comi a cozinheira e
abandonei a natação.
Além
de sexo e futebol, só queria saber de João Gilberto e a bossa nova,
que ninguém sabia bem o que era. Minha mãe também. Ela adorava
música, compunha e tocava foxes e blues no piano, e estava fascinada
com João e a nova música. Com ela e meu pai fui a um show no
auditório da Escola Naval, a “Operação bossa nova”, produzido
e apresentado por Ronaldo Bôscoli, que vi pela primeira vez no
palco, de terno e gravata, e achei charmosíssimo, explicando entre
um número e outro que bossa nova era o moderno, o novo, o diferente,
que era “um estado de espírito”. Foi também onde vi e ouvi pela
primeira vez Nara Leão, timidíssima, cantando de uma maneira que
fiquei sem saber se gostava ou não. Mas sem dúvida queria ver de
novo: ela era de uma beleza estranha, tinha uma bocona, uns olhos
meio caídos que lhe davam um ar de musa existencialista, um cabelo
muito liso e muito escuro e uma pele muito branca, um fio de voz e um
charme discretíssimo, sem dúvida ela era diferente. A cara da bossa
nova.
No
show, Lúcio Alves, Alayde Costa e Sylvinha Telles (que eu conhecia
vagamente) e os desconhecidos Carlinhos Lyra, Oscar Castro Neves e
Nara cantavam e tocavam umas músicas muito diferentes de tudo que se
ouvia no rádio e na televisão, parecidas com as que João cantava.
Eles se apresentavam de uma maneira mais informal e intimista, as
músicas pareciam mais leves e melodiosas e as letras falavam de
situações e pessoas parecidas com a vida que se levava nos
apartamentos, nas praias e nas ruas de Copacabana naqueles anos
bacanas.
A
bossa nova era a trilha sonora que nos faltava, que nos diferenciaria
dos “quadrados” e dos antigos, dos românticos e melodramáticos,
dos grandiloquentes e dos primitivos, dos nacionalistas e
regionalistas, dos americanos. Tínhamos uma música que imaginávamos
só para nós. João Gilberto era nosso pastor e nada nos faltaria.
Em
1959, João Gilberto era um sucesso nacional, era adorado e
detestado, acusado de desafinado e de afeminado, celebrado como o
inventor de um novo gênero musical. Eu o ouvia apaixonadamente como
o criador de uma maneira nova de cantar e tocar, com um mínimo de
voz e um máximo de precisão, com harmonias e ritmos que refinavam e
sofisticavam qualquer canção.
Com
ele conheci a música de Tom e Vinícius, de Newton Mendonça e
Carlos Lyra, de Caymmi e Ary Barroso e dos grandes mestres
brasileiros, que entraram em meus ouvidos, cabeça e coração, em
minha vida para sempre.
Porque
antes eu não sabia nada de música, não ligava, não prestava
atenção. Música não estava nos meus sonhos nem em minhas
memórias. Gostava mesmo era de ler e de escrever, de ouvir e de
contar histórias.
Nelson Motta, in Noites Tropicais
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