Para
dias como esse, Henry tinha regras.
Primeiro,
cerveja.
Segundo,
tinha que ser gelada.
Por
isso, deixou Tommy, Clay e Aurora no cemitério e ficou de
encontrá-los mais tarde, no parque Bernborough.
(O
parque Bernborough, para quem não conhece a região, é uma velha
pista de atletismo. Na época, tinha uma arquibancada caindo aos
pedaços e um estacionamento que mais parecia uma zona de guerra.
Também foi palco dos mais famigerados treinos de Clay.)
No
entanto, antes de entrar no carro, Henry sentiu necessidade de passar
algumas instruções de última hora para Tommy. Aurora também
estava prestando atenção.
— Se
eu me atrasar, fala pro pessoal esperar um pouco, entendeu?
— Entendi,
Henry.
— E
manda eles já separarem o dinheiro.
— Entendi,
Henry.
— Essa
merda de “Entendi, Henry” significa que você entendeu mesmo?
— Sim.
— Continua
assim que eu coloco você para correr com ele. É isso que você
quer?
— Não,
Henry, obrigado.
— Isso
aí, garoto esperto.
Um
sorriso breve despontava de uma mente zombeteira e treinada. Deu um
tapinha leve certeiro na orelha de Tommy e então agarrou Clay,
dizendo:
— E
você... vê se me faz um favor. — Segurou o rosto do irmão. —
Não deixa esses dois moleques para trás.
***
Na
nuvem de poeira que o carro deixou, a cachorra olhou para Tommy.
Tommy
olhou para Clay.
Clay
não olhou para nenhum dos dois.
Pôs
a mão no bolso e sentiu, e dentro de si havia tanto querer —
queria sair dali, sair correndo de novo —, mas, com a cidade se
derramando à frente deles e o cemitério atrás, ele deu dois passos
e enfiou Aurora debaixo do braço.
Clay
se levantou, e a cachorrinha sorria.
Os
olhos dela eram como trigo e ouro.
Aurora
ria para o mundo sob suas patas.
***
Eles
já estavam na avenida Entreaty, no topo da grande colina que tinham
acabado de subir, quando, por fim, Clay botou a cachorrinha no chão.
Passaram por cima das árvores de jasmim-manga mortas no caminho para
a avenida Poseidon, que era a principal sede do turfe naquela área.
Um quilômetro e meio de lojas enferrujadas.
Enquanto
Tommy estava doido para ir à pet shop, Clay trocaria tudo por outros
lugares; pelas ruas e pelos monumentos a ela.
Lonhro,
pensou ele.
A
alameda de Bobby.
A
praça Peter Pan e seus paralelepípedos.
Ela
tinha cabelo castanho-avermelhado e olhos verdes gentis, e era
aprendiz de Ennis McAndrew. Seu cavalo preferido era o El Matador.
Sua corrida preferida era sempre a de Cox Plate. Seu vencedor
preferido dessa corrida foi o poderoso Kingston Town, uns trinta anos
antes. (As melhores coisas sempre acontecem antes de nós nascermos.)
O
livro que ela lia era O marmoreiro.
Um
dos três que foram importantes para tudo.
***
Fritando
no calor da avenida Poseidon, os meninos e a cachorra continuaram
caminhando, e logo ela se revelou: a pista de atletismo.
Foram
andando e entraram por uma brecha na cerca ao lado.
Na
reta, ao sol, eles aguardaram.
Em
minutos, surgiu o grupo de sempre — meninos-abutres sobrevoando a
carcaça do campo esportivo: as raias da pista cobertas de erva
daninha, o chão vermelho todo descascado, a pista transformada em
selva.
— Olha
lá — disse Tommy, apontando.
Chegavam
mais e mais meninos, em toda a sua glória do auge da puberdade.
Mesmo de longe dava para ver os sorrisos nos rostos bronzeados e
contar as cicatrizes do subúrbio. Também dava para sentir: exalavam
o cheiro daquele estado de eternos homens-quase-feitos.
Durante
um tempo, Clay ficou na raia de fora, observando-os. Bebiam, coçavam
o sovaco. Atiravam garrafas. Alguns chutavam as escaras das pistas.
Até que, por fim, ele decidiu que já era hora.
Pôs
a mão no ombro de Tommy e foi até a sombra da arquibancada.
A
escuridão o engoliu.
Markus Zusak, in O construtor de pontes
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