segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Bernborough


Para dias como esse, Henry tinha regras.
Primeiro, cerveja.
Segundo, tinha que ser gelada.
Por isso, deixou Tommy, Clay e Aurora no cemitério e ficou de encontrá-los mais tarde, no parque Bernborough.
(O parque Bernborough, para quem não conhece a região, é uma velha pista de atletismo. Na época, tinha uma arquibancada caindo aos pedaços e um estacionamento que mais parecia uma zona de guerra. Também foi palco dos mais famigerados treinos de Clay.)
No entanto, antes de entrar no carro, Henry sentiu necessidade de passar algumas instruções de última hora para Tommy. Aurora também estava prestando atenção.
Se eu me atrasar, fala pro pessoal esperar um pouco, entendeu?
Entendi, Henry.
E manda eles já separarem o dinheiro.
Entendi, Henry.
Essa merda de “Entendi, Henry” significa que você entendeu mesmo?
Sim.
Continua assim que eu coloco você para correr com ele. É isso que você quer?
Não, Henry, obrigado.
Isso aí, garoto esperto.
Um sorriso breve despontava de uma mente zombeteira e treinada. Deu um tapinha leve certeiro na orelha de Tommy e então agarrou Clay, dizendo:
E você... vê se me faz um favor. — Segurou o rosto do irmão. — Não deixa esses dois moleques para trás.

***

Na nuvem de poeira que o carro deixou, a cachorra olhou para Tommy.
Tommy olhou para Clay.
Clay não olhou para nenhum dos dois.
Pôs a mão no bolso e sentiu, e dentro de si havia tanto querer — queria sair dali, sair correndo de novo —, mas, com a cidade se derramando à frente deles e o cemitério atrás, ele deu dois passos e enfiou Aurora debaixo do braço.
Clay se levantou, e a cachorrinha sorria.
Os olhos dela eram como trigo e ouro.
Aurora ria para o mundo sob suas patas.

***

Eles já estavam na avenida Entreaty, no topo da grande colina que tinham acabado de subir, quando, por fim, Clay botou a cachorrinha no chão. Passaram por cima das árvores de jasmim-manga mortas no caminho para a avenida Poseidon, que era a principal sede do turfe naquela área. Um quilômetro e meio de lojas enferrujadas.
Enquanto Tommy estava doido para ir à pet shop, Clay trocaria tudo por outros lugares; pelas ruas e pelos monumentos a ela.
Lonhro, pensou ele.
A alameda de Bobby.
A praça Peter Pan e seus paralelepípedos.
Ela tinha cabelo castanho-avermelhado e olhos verdes gentis, e era aprendiz de Ennis McAndrew. Seu cavalo preferido era o El Matador. Sua corrida preferida era sempre a de Cox Plate. Seu vencedor preferido dessa corrida foi o poderoso Kingston Town, uns trinta anos antes. (As melhores coisas sempre acontecem antes de nós nascermos.)
O livro que ela lia era O marmoreiro.
Um dos três que foram importantes para tudo.

***

Fritando no calor da avenida Poseidon, os meninos e a cachorra continuaram caminhando, e logo ela se revelou: a pista de atletismo.
Foram andando e entraram por uma brecha na cerca ao lado.
Na reta, ao sol, eles aguardaram.
Em minutos, surgiu o grupo de sempre — meninos-abutres sobrevoando a carcaça do campo esportivo: as raias da pista cobertas de erva daninha, o chão vermelho todo descascado, a pista transformada em selva.

Olha lá — disse Tommy, apontando.
Chegavam mais e mais meninos, em toda a sua glória do auge da puberdade. Mesmo de longe dava para ver os sorrisos nos rostos bronzeados e contar as cicatrizes do subúrbio. Também dava para sentir: exalavam o cheiro daquele estado de eternos homens-quase-feitos.
Durante um tempo, Clay ficou na raia de fora, observando-os. Bebiam, coçavam o sovaco. Atiravam garrafas. Alguns chutavam as escaras das pistas. Até que, por fim, ele decidiu que já era hora.
Pôs a mão no ombro de Tommy e foi até a sombra da arquibancada.
A escuridão o engoliu.

Markus Zusak, in O construtor de pontes

Nenhum comentário:

Postar um comentário