Má
gente, de má paz; deles, quero distantes léguas. Mesmo de meus
filhos, os três. Livre, por velha nem revogada não me dou, idade é
a qualidade. Amo um homem, ele vive de admirar meus bons préstimos,
boca cheia d’água. Meu gosto agora é ser feliz, em uso, no sofrer
e no regalo. Quero falar alto. Lopes nenhum me venha, que às
dentadas escorraço. Para trás, o que passei, foi arremedando e
esquecendo. Ainda achei o fundo do meu coração. A maior prenda, que
há, é ser virgem.
Mas,
primeiro, os outros obram a história da gente.
Eu
era menina, me via vestida de flores. Só que o que mais cedo reponta
é a pobreza. Me valia ter pai e mãe, sendo órfã de dinheiro?
Mocinha fiquei, sem da inocência me destruir, tirava junto cantigas
de roda e modinhas de sentimento. Eu queria me chamar Maria Miss,
reprovo meu nome, de Flausina.
Deus
me deu esta pintinha preta na alvura do queixo — linda eu era até
a remirar minha cara na gamela dos porcos, na lavagem. E veio aquele,
Lopes, chapéu grandão, aba desabada. Nenhum presta; mas esse, Zé,
o pior, rompente sedutor. Me olhava: aí eu espiada e enxergada, no
ter de me estremecer.
A
cavalo ele passava, por frente de casa, meu pai e minha mãe
saudavam, soturnos de outro jeito. Esses Lopes, raça, vieram de
outra ribeira, tudo adquiriam ou tomavam; não fosse Deus, e até
hoje mandavam aqui, donos. A gente tem é de ser miúda, mansa, feito
botão de flor. Mãe e pai não deram para punir por mim.
Aos
pedacinhos, me alembro.
Mal
com dilato para chorar, eu queria enxoval, ao menos, feito as outras,
ilusão de noivado. Tive algum? Cortesias nem igreja. O homem me
pegou, com quentes mãos e curtos braços, me levou para uma casa,
para a cama dele. Mais aprendi lição de ter juízo. Calei muitos
prantos. Aguentei aquele caso corporal.
Fiz
que quis: saquei malinas lábias. Por sopro do demo, se vê, uns
homens caçam é mesmo isso, que inventam. Esses Lopes! — com eles,
nenhum capim, nenhum leite. Falei, quando dinheiro me deu, afetando
ser bondoso: — “Eu tinha três vinténs, agora tenho
quatro...” Contentado ele ficou, não sabia que eu estava
abrindo e medindo.
Para
me vigiar, botou uma preta magra em casa, Si-Ana. Entendi: a que eu
tinha de engambelar, por arte de contas; e à qual chamei de madrinha
e comadre. Regi de alisar por fora a vida. Deitada é que eu achava o
somenos do mundo, camisolas do demônio.
Ninguém
põe ideia nesses casos: de se estar noite inteira em canto de catre,
com o volume do outro cercando a gente, rombudo, o cheiro, o
ressonar, qualquer um é alheios abusos. A gente, eu, delicada moça,
cativa assim, com o abafo daquele, sempre rente, no escuro.
Daninhagem, o homem parindo os ocultos pensamentos, como um dia come
o outro, sei as perversidades que roncava? Aquilo tange as canduras
de nôiva, pega feito doença, para a gente em espírito se
traspassa. Tão certo como eu hoje estou o que nunca fui. Eu ficava
espremida mais pequena, na parede minha unha riscava rezas, o querer
outras larguras.
Tracei
as letras. Carecia de ter o bem ler e escrever, conforme escondida.
Isso principiei — minha ajuda em jornais de embrulhar e mais com as
crianças de escola.
E
dê-cá dinheiro.
O
que podendo, dele tudo eu para mim regrava. Mealhava. Fazia portar
escrituras. Sem acautelar, ele me enriquecia. Mais, enfim que o filho
dele nasceu, agora já tinha em mim a confiança toda, quase. Mandou
embora a preta Si-Ana, quando levantei o falso alegado: que ela
alcovitava eu cedesse vezes carnais a outro, Lopes igual — que da
vida logo desapareceu, em sistema de não-se-sabe.
Dito:
meio se escuta, dobro se entende. Virei cria de cobra. Na cachaça,
botava sementes da cabaceira-preta, dosezinhas; no café, cipó timbó
e saia-branca. Só para arrefecer aquela desatada vontade, nem
confirmo que seja crime. Com o tingui-capeta, um homem se esmera,
abranda. Estava já amarelinho, feito ovo que ema acabou de pôr. Sem
muito custo, morreu. Minha vida foi muito fatal. Varri casa, joguei o
cisco para a rua, depois do enterro.
E
os Lopes me davam sossego?
Dois
deles, tesos, me requerendo, o primo e o irmão do falecido. Mexi em
vão por me soltar, dessas minhas pintadas feras. Nicão, um, mau me
emprazou: — “Despois da missa de mês, me espera...” Mas
o Sertório, senhor, o outro, ouro e punhal em mão, inda antes do
sétimo dia já entrava por mim a dentro em casa. Padeci com jeito. E
o governo da vida? Anos, que me foram, de gentil sujeição, custoso
que nem guardar chuva em cabaça, picar fininho a couve.
Tanto
na bramosia os dois tendo ciúme. Tinham de ter, autorizei. Nicão a
casa rodeava. Ao Sertório dei mesmo dois filhos? Total, o quanto que
era dele, cobrei, passando ligeiro já para minhas posses; até
honra. Experimentei finuras novas — somente em jardim de mim,
sozinha. Tomei ar de mais donzela.
Sorria
debruçada em janela, no bico do beiço, negociável; justiçosa. Até
que aquela ideia endurecesse. Eu já sabia que ele era Lopes,
desatinado, fogoso, água de ferver fora de panela. Vi foi ele sair,
fulo de fulo, revestido de raiva, com os bolsos cheios de calúnias.
Ao outro eu tinha enviado os recados, embebidos em doçuras. Ri muito
útil ultimamente. Se enfrentaram, bom contra bom, meus relâmpagos,
a tiros e ferros. Nicão morreu sem demora. O Sertório durou, uns
dias. Inconsolável chorei, conforme os costumes certos, por a
piedade de todos: pobre, duas e meio três vezes viúva. Na beira do
meu terreiro.
Mas
um, mais, porém, ainda me sobrou. Sorocabano Lopes, velhoco, o das
fortes propriedades. Me viu e me botou na cabeça. Aceitei, de boa
graça, ele era o aflitinho dos consolos. Eu impondo: — “De
hoje por diante, só muito casada!” Ele, por fervor, concordou
— com o que, para homem nessa idade inferior, é abotoar botão na
casa errada. E, este, bem demais e melhor tratei, seu desejo
efetuado.
Por
isso, andei quebrando metade da cabeça: dava a ele gordas,
temperadas comidas, e sem descanso agradadas horas — o sujeito
chupado de amores, de chuchurro. Tudo o que é bom faz mal e bem.
Quem morreu mais foi ele. Daí, tudo tanto herdei, até que com
nenhum enjoo.
Entanto
que enfim, agora, desforrada. O povo ruim terminou, aqueles. Meus
filhos, Lopes, também, provi de dinheiro, para longe daqui viajarem
gado. Deixo de porfias, com o amor que achei. Duvido, discordo de
quem não goste. Amo, mesmo. Que podia ser mãe dele, menos me falem,
sou de me constar em folhinhas e datas?
Que
em meu corpo ele não mexa fácil. Mas que, por bem de mim, me venham
filhos, outros, modernos e acomodados. Quero o bom-bocado que não
fiz, quero gente sensível. De que me adianta estar remediada e
entendida, se não dou conta de questão das saudades? Eu, um dia,
fui já muito menininha... Todo o mundo vive para ter alguma
serventia. Lopes, não! — desses me arrenego.
Guimarães Rosa, in Tutameia
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