sábado, 26 de agosto de 2023

Cartas para minha avó

Aos trinta e seis anos, vó, depois de treze anos de casamento, eu me separei. Me mudei para São Paulo com Thulane, onde vivo desde então. Donald e eu queríamos fazer o casamento dar certo, mas era o que significava dar certo que não nos entendíamos. E foi importante libertar a nós dois. Penso que amar é ser suave com as diferenças do outro. Eu não precisava de um juiz, para esse papel já tinha o mundo. Recomeçar a vida não foi fácil, a gente se acostuma tanto a estar com alguém, a depender por anos, que praticamente esquece o que é viver só.
Enquanto eu procurava um apartamento em São Paulo, Thulane ficou com o pai. Foram meses decidindo onde ela estudaria, quais atividades eu teria condições de pagar fora da escola. Quando finalmente encontrei uma casa no final de 2016, meu trabalho como secretária-adjunta de Direitos Humanos de São Paulo estava terminando. Foi um período importante da minha vida, sabe. Trabalhei durante a gestão do prefeito Fernando Haddad. No ano seguinte, esse empenho me valeu o prêmio Cidadã São Paulo na categoria Direitos Humanos.
Como não tinha mais trabalho fixo, preferi não me endividar e comprei o necessário: fogão, geladeira, duas camas. Da minha vida pregressa, trouxe somente meus livros e minhas roupas. Sentia necessidade de começar de novo. Não tinha condições de mobiliar a casa toda, e disse a Thulane que, se quisesse, poderia ficar com o pai, cuja casa já estava estruturada, até que conseguisse me organizar. Para minha alegria, ela decidiu recomeçar junto comigo.
No início de 2017, apresentei uma temporada do programa Entrevista, no Canal Futura. As gravações aconteciam no Rio de Janeiro e foi importante contar com uma rede de apoio para me ajudar a cuidar de Thulane: algumas amigas se revezaram para que eu pudesse trabalhar. Foi uma experiência muito marcante, entrevistar pessoas cujos trabalhos eram significativos para a sociedade. Minha primeira entrevistada foi Marielle Franco, que no ano anterior havia sido uma das vereadoras mais votadas no Rio. Uma mulher combativa, admirável, que teve a vida interrompida de forma drástica, assassinada com quatros tiros poucos meses depois. Espero que esteja bem aí no Orun.
Com parte do pagamento como apresentadora, comprei uma máquina de lavar e um sofá. Thulane nunca reclamou de precisar sentar no chão por um tempo, de não ter mesa para fazer lição. Não sei se sentia falta ou não, mas ela me dizia “Mãe, está tudo bem recomeçar a vida”. Quando eu fazia algum trabalho — “agora a mamãe tem dinheiro pra gente comprar um micro-ondas!” —, ela se alegrava e ia escolher a nova aquisição comigo. Compramos nossa mesa no final de 2017 e foi uma festa. Foi bom redescobrir meus gostos, descartar coisas das quais fui condicionada a gostar.
Thulane e eu montamos um lar. É importante que você saiba que sua bisneta é incrível. Foi fundamental contar com a parceria dela naquele momento, impressionante como ela me apoiou, me compreendeu. Quando eu contei a ela sobre a separação, estava com medo de sua reação, de fazê-la sofrer. Eu a levei para caminhar na praia, na beira do mar, algo que sempre fazíamos juntas. Aos onze anos, a resposta dela foi: “Mãe, divórcio faz parte da vida. Você tem o direito de ser feliz”. Meus olhos se encheram de lágrimas e eu fiquei tocada e surpresa.
Por mais que entendamos que o fim é o único caminho possível para certas relações, quando esse momento chega não deixa de existir o luto. Quando era jovem e pensava que nunca casaria, eu dizia que o fim de um casamento significava ter de fazer outros álbuns de fotografia. Aos trinta e seis anos, entendi que a separação pode ser sentida como uma espécie de morte. Uma amiga chegou a questionar minha decisão utilizando o argumento “mas pelo menos ele não te bate”. Dói ouvir isso: as mulheres estão submetidas a relacionamentos tão violentos que se não apanham já se dão por satisfeitas, como se fosse uma benesse e não um direito fundamental. Há casamentos terríveis e muitas mulheres pagam com a morte quando se negam a aceitar imposições machistas, isso é diário no Brasil, infelizmente.
E há aquelas que são incompreendidas quando ousam se separar de homens bons. “Pelo menos ele é um homem bom”, “pelo menos é um bom pai”, “pelo menos ele não bebe até cair”, como se essas qualidades não fossem obrigações de uma pessoa minimamente decente. O parâmetro é tão baixo que quase me senti culpada por exercer meu direito de seguir minha vida. É triste observar que, para mulheres como eu, muitas vezes o casamento é visto como um prêmio, e abdicar dele pode ser encarado como desfaçatez. Foi triste observar que para as mulheres, sobretudo negras, o amor pode ser nivelado sempre por menos. Eu não podia aceitar o “pelo menos”, eu tinha o direito de querer mais, mesmo que nem soubesse o que isso significava.
Respeito o pai da minha filha e desejo que ele seja feliz, nós compartilhamos o amor por um ser lindo, mas eu precisava ser fiel a mim mesma. Você ficou viúva em 1983, vó, minha mãe se divorciou em 1999. Nossas vidas tomaram rumos diferentes, mas posso afirmar, feliz, que hoje não sonho mais com o amor. Hoje, num novo relacionamento, vivencio o amor em todas as suas possibilidades, como porto e liberdade.

Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó

Nenhum comentário:

Postar um comentário