Aos
trinta e seis anos, vó, depois de treze anos de casamento, eu me
separei. Me mudei para São Paulo com Thulane, onde vivo desde então.
Donald e eu queríamos fazer o casamento dar certo, mas era o que
significava dar certo que não nos entendíamos. E foi importante
libertar a nós dois. Penso que amar é ser suave com as diferenças
do outro. Eu não precisava de um juiz, para esse papel já tinha o
mundo. Recomeçar a vida não foi fácil, a gente se acostuma tanto a
estar com alguém, a depender por anos, que praticamente esquece o
que é viver só.
Enquanto
eu procurava um apartamento em São Paulo, Thulane ficou com o pai.
Foram meses decidindo onde ela estudaria, quais atividades eu teria
condições de pagar fora da escola. Quando finalmente encontrei uma
casa no final de 2016, meu trabalho como secretária-adjunta de
Direitos Humanos de São Paulo estava terminando. Foi um período
importante da minha vida, sabe. Trabalhei durante a gestão do
prefeito Fernando Haddad. No ano seguinte, esse empenho me valeu o
prêmio Cidadã São Paulo na categoria Direitos Humanos.
Como
não tinha mais trabalho fixo, preferi não me endividar e comprei o
necessário: fogão, geladeira, duas camas. Da minha vida pregressa,
trouxe somente meus livros e minhas roupas. Sentia necessidade de
começar de novo. Não tinha condições de mobiliar a casa toda, e
disse a Thulane que, se quisesse, poderia ficar com o pai, cuja casa
já estava estruturada, até que conseguisse me organizar. Para minha
alegria, ela decidiu recomeçar junto comigo.
No
início de 2017, apresentei uma temporada do programa Entrevista, no
Canal Futura. As gravações aconteciam no Rio de Janeiro e foi
importante contar com uma rede de apoio para me ajudar a cuidar de
Thulane: algumas amigas se revezaram para que eu pudesse trabalhar.
Foi uma experiência muito marcante, entrevistar pessoas cujos
trabalhos eram significativos para a sociedade. Minha primeira
entrevistada foi Marielle Franco, que no ano anterior havia sido uma
das vereadoras mais votadas no Rio. Uma mulher combativa, admirável,
que teve a vida interrompida de forma drástica, assassinada com
quatros tiros poucos meses depois. Espero que esteja bem aí no Orun.
Com
parte do pagamento como apresentadora, comprei uma máquina de lavar
e um sofá. Thulane nunca reclamou de precisar sentar no chão por um
tempo, de não ter mesa para fazer lição. Não sei se sentia falta
ou não, mas ela me dizia “Mãe, está tudo bem recomeçar a vida”.
Quando eu fazia algum trabalho — “agora a mamãe tem dinheiro pra
gente comprar um micro-ondas!” —, ela se alegrava e ia escolher a
nova aquisição comigo. Compramos nossa mesa no final de 2017 e foi
uma festa. Foi bom redescobrir meus gostos, descartar coisas das
quais fui condicionada a gostar.
Thulane
e eu montamos um lar. É importante que você saiba que sua bisneta é
incrível. Foi fundamental contar com a parceria dela naquele
momento, impressionante como ela me apoiou, me compreendeu. Quando eu
contei a ela sobre a separação, estava com medo de sua reação, de
fazê-la sofrer. Eu a levei para caminhar na praia, na beira do mar,
algo que sempre fazíamos juntas. Aos onze anos, a resposta dela foi:
“Mãe, divórcio faz parte da vida. Você tem o direito de ser
feliz”. Meus olhos se encheram de lágrimas e eu fiquei tocada e
surpresa.
Por
mais que entendamos que o fim é o único caminho possível para
certas relações, quando esse momento chega não deixa de existir o
luto. Quando era jovem e pensava que nunca casaria, eu dizia que o
fim de um casamento significava ter de fazer outros álbuns de
fotografia. Aos trinta e seis anos, entendi que a separação pode
ser sentida como uma espécie de morte. Uma amiga chegou a questionar
minha decisão utilizando o argumento “mas pelo menos ele não te
bate”. Dói ouvir isso: as mulheres estão submetidas a
relacionamentos tão violentos que se não apanham já se dão por
satisfeitas, como se fosse uma benesse e não um direito fundamental.
Há casamentos terríveis e muitas mulheres pagam com a morte quando
se negam a aceitar imposições machistas, isso é diário no Brasil,
infelizmente.
E
há aquelas que são incompreendidas quando ousam se separar de
homens bons. “Pelo menos ele é um homem bom”, “pelo menos é
um bom pai”, “pelo menos ele não bebe até cair”, como se
essas qualidades não fossem obrigações de uma pessoa minimamente
decente. O parâmetro é tão baixo que quase me senti culpada por
exercer meu direito de seguir minha vida. É triste observar que,
para mulheres como eu, muitas vezes o casamento é visto como um
prêmio, e abdicar dele pode ser encarado como desfaçatez. Foi
triste observar que para as mulheres, sobretudo negras, o amor pode
ser nivelado sempre por menos. Eu não podia aceitar o “pelo
menos”, eu tinha o direito de querer mais, mesmo que nem soubesse o
que isso significava.
Respeito
o pai da minha filha e desejo que ele seja feliz, nós compartilhamos
o amor por um ser lindo, mas eu precisava ser fiel a mim mesma. Você
ficou viúva em 1983, vó, minha mãe se divorciou em 1999. Nossas
vidas tomaram rumos diferentes, mas posso afirmar, feliz, que hoje
não sonho mais com o amor. Hoje, num novo relacionamento, vivencio o
amor em todas as suas possibilidades, como porto e liberdade.
Djamila Ribeiro, in Cartas para minha avó
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