sexta-feira, 28 de abril de 2023

Em Roma, durante a guerra

Se algum dia eu partir para a guerra..” Pois aconteceu, meus netinhos, que um dia eu parti para a guerra. Não, não farei como esses veteranos de cinema que, sentados em suas cadeiras de rodas, contam lances terríveis e arrasam o inimigo a bengaladas. Também não vou afirmar que foi minha presença no teatro de operações que motivou a ruína de Hitler e Mussolini; deixo isso ao julgamento da Posteridade, ou, como dizia o nosso finado imperador, à Justiça de Deus na Voz da História. O zíper da modéstia me fecha a boca.
Contarei hoje apenas uma aventura minha de retaguarda. Um dia, num bar de Roma, havia uma elegante senhora loura que tinha cigarro mas não tinhas fósforos. Um galante correspondente de guerra que estava na mesa ao lado sacou de seu isqueiro e pediu-lhe licença para acender seu cigarro. Depois, com muita delicadeza e timidez, disse que havia chegado aquele dia em Roma, e não conhecia ninguém; queria saber se ela não levaria a mal sua ousadia de convidá-la para sua mesa. Assim eu (que outro não era, como já adivinhastes, o galante correspondente) travei relações com uma espiã, pois é evidente que mulher loura com cigarro e sem fósforo só pode ser espiã. Ela falava um italiano perfeito, o que também faz parte de seu ofício; mas apesar disso perguntei-lhe se era italiana. Disse que era e não era. Bonita resposta, pensei eu, reparando em seus olhos de um azul cinzento, e brinquei: “não vai me dizer que é da Abissínia!” Ela riu; era de Trieste; confessei-lhe que eu era de Cachoeiro de Itapemirim, ela repetiu o nome de minha cidade com tanta graça que me apaixonei.
Dois ou três dias nos encontramos, até que certa noite eu a convidei a jantar no hotel em que eu estava alojado, com os demais correspondentes de guerra — um pequeno e simpático hotel de Via Sistina, perto da Igreja de Trinita del Monti. Estávamos ainda no aperitivo — se lembra, Squeff, daquele rum com limone? — quando ela deixou a mesa um momento para ir ao toalete. Imediatamente aproximou-se de mim um major inglês de grandes bigodes e muito polidamente me pediu que o procurasse mais tarde em seu apartamento no mesmo hotel. Adiantou que trabalhava na contra-espionagem, e que a senhora que estava em minha companhia era suspeita; mas que eu não a deixasse perceber que fora informado disso.
No dia seguinte o major me esclareceu: a minha amiga era tcheca de raça alemã, filha de um industrial ligado aos nazistas.
Prometi ao major transmitir-lhe qualquer pergunta ou pedido suspeito que ela me fizesse; mas eu devia voltar logo para a linha de frente e a minha encantadora mata-harizinha não havia meio de me tentar extorquir o segredo da futura bomba atômica nem o esquema da próxima ofensiva aliada.
No dia seguinte almoçamos num restaurante e tomamos três garrafas de tinto; depois, num bar fiquei a alisar ternamente a sua mão fina, de veias azuis. Mão de espiã — pensava eu —, e senti uma ternura especial, uma fraqueza dentro de mim. Aquele dia mesmo eu ia voltar para a frente, para aquele mundo desagradável de homens, lama e explosões; senti que ia ter saudades dela, e lhe disse isso.
Mão de espiã... Mas além, ou antes de ser uma espiã, ela era também mulher; não tinha nascido espiã; teria tido algum prazer verdadeiro em minha companhia? Foi então que ela me pediu um favor: que através de minha correspondência eu mandasse um recado para um seu tio, que morava em São Paulo, dizendo que ela estava em Roma e pedindo que lhe enviasse, em meu nome, através de meu jornal e do Banco do Brasil, uma determinada importância em dinheiro. Escreveu o nome do tio em um papelzinho e me entregou.
Beijamo-nos na Piazza di Spagna; subi a escadaria lentamente.
Se eu entregasse aquele papelzinho ao major inglês, um homem seria preso em São Paulo; pensei em nossa polícia, nos seus “hábeis interrogatórios”; e se o homem fosse inocente?
Na portaria do hotel liguei para o P. R. O. pedindo um jipe que me levasse ao aeroporto; depois, num impulso, pedi à telefonista que me desse o apartamento do major inglês. Não atendia; mas o porteiro me informou que ele estava no hotel, provavelmente no salão de chá que ficava no terceiro andar. Tomei o elevador, mas então resolvi ir até o meu apartamento arrumar a rriala. Tirei o papelzinho do bolso e fiquei um instante na janela a olhar a paisagem de Roma lá embaixo. O vento ainda era frio, naquele começo de primavera. Fiz uma bolinha com o papelucho e o joguei fora; acompanhei-o com os olhos até que o vi cair num toldo, e depois na rua. E acabou-se a história.

Rubem Braga, in A traição das elegantes

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