San
Juan de Ia Sierra (12 de maio) — Puxa, como passa depressa o tempo,
e a gente dentro dele!
O
peripatetismo, doutrina que abracei não só por causa do peri como
sobretudo do patetismo, fez-me circular nestes últimos tempos pelas
ruas as mais diversas e pelos caminhos mais ínvios, sempre
acompanhado da minha sombra e do meu irmão dentro de mim, e tendo
por única bússola a flor do meu umbigo, pobre mas exata.
Esquecia-me do meu relógio, é verdade, mais meu do que nunca, e no
qual eu vejo passar os segundos como poderia, se quisesse, ver passar
os dias e os anos, desde que dispusesse de uma cadeira para sentar e
de uma caderneta em que fosse anotando a evolução do tempo.
Devo
adiantar, aliás, que o meu peripatetismo nada tem a ver com o
Aristóteles grego ou com qualquer outro Aristóteles vivo ou morto
que porventura tenha chegado ao meu conhecimento; sou orgulhoso
demais para seguir a doutrina de quem quer que seja, e, se eu tivesse
que seguir alguma doutrina algum dia, seria certamente uma doutrina
criada inteiramente à minha imagem e semelhança, e que não
admitiria mestres como tampouco admitiria discípulos, a não ser eu
mesmo em meus diversos momentos históricos. Fiz-me peripatético
porque a palavra se ajusta como uma luva ao meu temperamento proteico
e sonambúlico — da mesma forma como me considero funâmbulo,
clown, sacripanta, autóctone e outras palavras igualmente belas,
cujo único defeito é o de figurarem nos dicionários. E para
preservar minha própria autonomia, minha plena liberdade de espírito
dentro da frágil carcaça do meu esqueleto, faço questão de
ignorar até o meu próprio nome de batismo — pois em verdade nunca
fui batizado, nem o serei jamais — chamando-me pelo primeiro nome
que me ocorra à cabeça e sempre da forma a mais estapafúrdia
possível, com espanto inclusive para mim mesmo. (Estapafúrdia,
aliás, não é bem o termo, pois, sendo como sou uma legião de
criaturas, como o louco do Evangelho, qualquer nome que eu me dê
será sempre um nome adequado a um dos mil espectros que compõem o
meu EU fabuloso — ou, para ser mais modesto, o meu pobre universo.)
Mas
vamos aos fatos:
1
— Vítima de insidiosa moléstia, que os mais abalizados médicos
do bairro não souberam identificar qual fosse (o atestado de óbito
trazia apenas um muito bem desenhado (como deveria ocorrer aliás com
todos os atestados de óbito honestos) padre Balbino morreu
tranquilamente nos meus braços, não sem antes ter tentado
confessar-se várias vezes, em seus momentos de maior aflição e
arrependimento, sem que o permitisse porém minha vigilante
filosofia. Ao morrer, aliás, padre Balbino já não era mais padre
Balbino, mas apenas o modesto professor de latim Pelópidas Regina
Coeli, em trânsito para Saragoça, e que aceitava aulas particulares
para grupos de cinco a dez alunos, à razão de 150 florins por
cabeça. Não chegou a aceitá-las, porém, por muito tempo, já que
os desígnios da Providência, contra os quais nada pode a humana
valia, decidiram convocá-lo para lecionar gratuitamente seu latim em
plenos Campos Elísios, em proveito das almas recém-desencarnadas
que necessitassem urgentemente aprender a língua oficial da
Eternidade.
II
— Privado do meu melhor amigo, vendi-lhe as preciosas relíquias a
um judeu que antes já lhe havia comprado a batina e um par de
sapatos imprestáveis — e apropriei-me, como de direito, dos 25 mil
rublos que ele trazia sempre guardados dentro de um cofre e que tive
a agradável surpresa de constatar que não eram 25 mil e sim 120
mil. Com esse dinheiro, dos mais honestos que tenho ganho até aqui,
mudei-me para um hotel de melhor qualidade — o antigo chamava-se
Hotel dos Aflitos, e de fato o era — onde me registrei com um nome
tcheco-eslovaco que já nem sei mais como se escreve e que, por seu
comprimento, me fez imediatamente respeitado de todos os meus
vizinhos de mesa e sobretudo dos garçons e do maître-d’hotel, que
me julgaram um príncipe europeu disfarçado de astro do cinema
americano, ou vice-versa. Graças a esse nome quilométrico consegui,
em pouco tempo, dormir (não dormindo) com uma dama da alta sociedade
de Castelnuovo de Vilarino, condado de Brescia, que se achava
hospedada no mesmo hotel em companhia do fóssil do seu marido (102
anos) e que uma noite errou de porta e veio cair justamente em cima
da minha cama, assustando-me relativamente. Não sendo propriamente
uma mulher bela — muito pelo contrário, dados os seus 75 anos bem
vividos — acabei enamorando-me do seu charme de ex-mulher fatal e
sobretudo de uma inconfundível distinção que se irradiava de todo
o seu porte de alta dama, mesmo das partes menos nobres e ditas
inconfessáveis.
III
— Transferindo-me para Castelnuovo etc., a convite e em companhia
da minha veneranda admiradora e do seu venerandíssimo marido, ali
fui desde logo acolhido pela melhor sociedade do país, sempre com o
meu nome quase impronunciável e esse ar de mistério que me descubro
no fundo do espelho e que talvez seja mais do meu irmão do que meu.
Falando o italiano divinamente, e escrevendo-o melhor ainda, acabei —
por simples diletantismo, embora regiamente pago — por assinar, com
o pseudônimo de Volpone, a coluna social do jornal mais importante
da cidade, o qual teve em consequência sua tiragem decuplicada em
menos de uma semana. Frequentador obrigatório dos salões mais
aristocráticos e mais blasés, onde quem ostentava menos títulos
ostentava no mínimo uma dúzia deles, tornei-me em pouco tempo,
graças ao meu arquivo secreto e ao meu serviço de cartas anônimas
executado em larga escala, um dos sujeitos mais bem informados (e,
por isso mesmo, mais temidos) em todo o hemisfério ocidental, com
consequentes vantagens monetárias, nobiliárquicas, políticas,
etc., etc. Nenhuma mulher era suficientemente honesta ou elegante a
menos que eu expressamente o declarasse em minha coluna de alto
custo, redigida em puro argot aristocrático, ininteligível quase
aos pobres leitores comuns que se abalançassem a ler-me pelo simples
fato de terem comprado o jornal; e nenhum cavalheiro, fosse ele
príncipe ou simples fabricante de doces em conserva, poderia ser
considerado um gentleman e usar honestamente este título, a menos
que eu expressamente assim o chamasse, duas, três, quatro vezes
seguidas, sobretudo ao lado de seu retraio de casaca e gravata
borboleta, os olhos opacos voltados para a objetiva.
Uma
bela noite, porém, após ter passado toda a tarde em companhia de
minha vetusta e ardente protetora, e como me houvesse excedido um
pouco em minhas doses habituais de whisky e de champagne, deu-se o
imprevisto e o inevitável: em pleno salão de Mme. Martínez y
Viola, descendente direta da papisa Joana, quando declamava uns
versos fesceninos e grandiloquentes o laureado poeta Silvano dal
Monte, eu não me contive e bradei com todas as forças do meus
pulmões algumas duras verdades que, mais cedo ou mais tarde, teria
mesmo que lançar no rosto de toda aquela gente reunida em torno de
mim e vivendo à custa de meus elogios diários ou hebdomadários.
Algo assim neste estilo, se não me falha a memória: — “Nem
parece que todos vós tendes intestinos e, na ponta desses
intestinos, um lamentável eu, exatamente igual ao que têm vosso
açougueiro, vosso chofer, vosso camareiro, vossos cachorros e vossos
cavalos de raça. Vosso eu é a melhor arma que tendes para afugentar
os maus pensamentos, que são aqueles que os afastam da simplicidade
humana e da humana aceitação da vida — e é para o vosso eu que
vos conclamo olheis diante do espelho, se preciso de joelhos e com
uma vela na mão para enxergar melhor, toda vez que vos sentirdes
possuídos de um orgulho oceânico e vos julgardes tão poderosos
quanto vosso Deus, que pelo menos (que eu saiba) não tinha nenhum eu
à vista.”
IV
— Escorraçado da mais alta sociedade como elemento pernicioso e
indesejável, e com ordem para abandonar o país emanada do próprio
chefe de polícia — que, no entanto, devia ter seu próprio eu,
tanto quanto os outros — comprei uma bicicleta e transpus a
fronteira da Venezuela em menos de cinco horas, tendo como única
bagagem meus milhões de liras honestamente ganhos no jornalismo e um
velho papagaio poliglota, que fora o único a aceitar sem protesto
minha veemente filosofia anorretal, de origem visivelmente freudiana.
Em Caracas fiz-me fabricante de esquifes de luxo, com larga
exportação para todos os países da América Latina, depois me
envolvi numa complicada história de petróleo com os
norte-americanos, que por pouco não me custou a vida e a miséria, e
finalmente deixei-me cair de amores por uma porto-riquenha muito
linda e muito pura, de nome Alzira, e em cujo ventre plantei a
semente de uma frondosa árvore humana, de que certamente ainda terei
notícia algum dia.
V
— A minha velha dor de cabeça acompanhando-me em todos os passos,
e sobretudo quando me ponho a caminhar deitado, com o auxílio da
imaginação. Dir-se-ia que trago um feto dentro do cérebro, algo
que eu deveria ter posto no mundo há muito tempo e cujo cadáver
envenena-me as paredes do crânio e ameaça-me sair um dia pelas
narinas e pelos ouvidos, como a lava de um vulcão.
VI
— Morte inglória do meu papagaio. Suas últimas palavras: — Et,
ubicumque fueris, extraneus es et peregrinas.
Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia
Nenhum comentário:
Postar um comentário