quinta-feira, 2 de março de 2023

Cosmogonia | J

San Juan de Ia Sierra (12 de maio) — Puxa, como passa depressa o tempo, e a gente dentro dele!

O peripatetismo, doutrina que abracei não só por causa do peri como sobretudo do patetismo, fez-me circular nestes últimos tempos pelas ruas as mais diversas e pelos caminhos mais ínvios, sempre acompanhado da minha sombra e do meu irmão dentro de mim, e tendo por única bússola a flor do meu umbigo, pobre mas exata. Esquecia-me do meu relógio, é verdade, mais meu do que nunca, e no qual eu vejo passar os segundos como poderia, se quisesse, ver passar os dias e os anos, desde que dispusesse de uma cadeira para sentar e de uma caderneta em que fosse anotando a evolução do tempo.
Devo adiantar, aliás, que o meu peripatetismo nada tem a ver com o Aristóteles grego ou com qualquer outro Aristóteles vivo ou morto que porventura tenha chegado ao meu conhecimento; sou orgulhoso demais para seguir a doutrina de quem quer que seja, e, se eu tivesse que seguir alguma doutrina algum dia, seria certamente uma doutrina criada inteiramente à minha imagem e semelhança, e que não admitiria mestres como tampouco admitiria discípulos, a não ser eu mesmo em meus diversos momentos históricos. Fiz-me peripatético porque a palavra se ajusta como uma luva ao meu temperamento proteico e sonambúlico — da mesma forma como me considero funâmbulo, clown, sacripanta, autóctone e outras palavras igualmente belas, cujo único defeito é o de figurarem nos dicionários. E para preservar minha própria autonomia, minha plena liberdade de espírito dentro da frágil carcaça do meu esqueleto, faço questão de ignorar até o meu próprio nome de batismo — pois em verdade nunca fui batizado, nem o serei jamais — chamando-me pelo primeiro nome que me ocorra à cabeça e sempre da forma a mais estapafúrdia possível, com espanto inclusive para mim mesmo. (Estapafúrdia, aliás, não é bem o termo, pois, sendo como sou uma legião de criaturas, como o louco do Evangelho, qualquer nome que eu me dê será sempre um nome adequado a um dos mil espectros que compõem o meu EU fabuloso — ou, para ser mais modesto, o meu pobre universo.)
Mas vamos aos fatos:
1 — Vítima de insidiosa moléstia, que os mais abalizados médicos do bairro não souberam identificar qual fosse (o atestado de óbito trazia apenas um muito bem desenhado (como deveria ocorrer aliás com todos os atestados de óbito honestos) padre Balbino morreu tranquilamente nos meus braços, não sem antes ter tentado confessar-se várias vezes, em seus momentos de maior aflição e arrependimento, sem que o permitisse porém minha vigilante filosofia. Ao morrer, aliás, padre Balbino já não era mais padre Balbino, mas apenas o modesto professor de latim Pelópidas Regina Coeli, em trânsito para Saragoça, e que aceitava aulas particulares para grupos de cinco a dez alunos, à razão de 150 florins por cabeça. Não chegou a aceitá-las, porém, por muito tempo, já que os desígnios da Providência, contra os quais nada pode a humana valia, decidiram convocá-lo para lecionar gratuitamente seu latim em plenos Campos Elísios, em proveito das almas recém-desencarnadas que necessitassem urgentemente aprender a língua oficial da Eternidade.
II — Privado do meu melhor amigo, vendi-lhe as preciosas relíquias a um judeu que antes já lhe havia comprado a batina e um par de sapatos imprestáveis — e apropriei-me, como de direito, dos 25 mil rublos que ele trazia sempre guardados dentro de um cofre e que tive a agradável surpresa de constatar que não eram 25 mil e sim 120 mil. Com esse dinheiro, dos mais honestos que tenho ganho até aqui, mudei-me para um hotel de melhor qualidade — o antigo chamava-se Hotel dos Aflitos, e de fato o era — onde me registrei com um nome tcheco-eslovaco que já nem sei mais como se escreve e que, por seu comprimento, me fez imediatamente respeitado de todos os meus vizinhos de mesa e sobretudo dos garçons e do maître-d’hotel, que me julgaram um príncipe europeu disfarçado de astro do cinema americano, ou vice-versa. Graças a esse nome quilométrico consegui, em pouco tempo, dormir (não dormindo) com uma dama da alta sociedade de Castelnuovo de Vilarino, condado de Brescia, que se achava hospedada no mesmo hotel em companhia do fóssil do seu marido (102 anos) e que uma noite errou de porta e veio cair justamente em cima da minha cama, assustando-me relativamente. Não sendo propriamente uma mulher bela — muito pelo contrário, dados os seus 75 anos bem vividos — acabei enamorando-me do seu charme de ex-mulher fatal e sobretudo de uma inconfundível distinção que se irradiava de todo o seu porte de alta dama, mesmo das partes menos nobres e ditas inconfessáveis.
III — Transferindo-me para Castelnuovo etc., a convite e em companhia da minha veneranda admiradora e do seu venerandíssimo marido, ali fui desde logo acolhido pela melhor sociedade do país, sempre com o meu nome quase impronunciável e esse ar de mistério que me descubro no fundo do espelho e que talvez seja mais do meu irmão do que meu. Falando o italiano divinamente, e escrevendo-o melhor ainda, acabei — por simples diletantismo, embora regiamente pago — por assinar, com o pseudônimo de Volpone, a coluna social do jornal mais importante da cidade, o qual teve em consequência sua tiragem decuplicada em menos de uma semana. Frequentador obrigatório dos salões mais aristocráticos e mais blasés, onde quem ostentava menos títulos ostentava no mínimo uma dúzia deles, tornei-me em pouco tempo, graças ao meu arquivo secreto e ao meu serviço de cartas anônimas executado em larga escala, um dos sujeitos mais bem informados (e, por isso mesmo, mais temidos) em todo o hemisfério ocidental, com consequentes vantagens monetárias, nobiliárquicas, políticas, etc., etc. Nenhuma mulher era suficientemente honesta ou elegante a menos que eu expressamente o declarasse em minha coluna de alto custo, redigida em puro argot aristocrático, ininteligível quase aos pobres leitores comuns que se abalançassem a ler-me pelo simples fato de terem comprado o jornal; e nenhum cavalheiro, fosse ele príncipe ou simples fabricante de doces em conserva, poderia ser considerado um gentleman e usar honestamente este título, a menos que eu expressamente assim o chamasse, duas, três, quatro vezes seguidas, sobretudo ao lado de seu retraio de casaca e gravata borboleta, os olhos opacos voltados para a objetiva.
Uma bela noite, porém, após ter passado toda a tarde em companhia de minha vetusta e ardente protetora, e como me houvesse excedido um pouco em minhas doses habituais de whisky e de champagne, deu-se o imprevisto e o inevitável: em pleno salão de Mme. Martínez y Viola, descendente direta da papisa Joana, quando declamava uns versos fesceninos e grandiloquentes o laureado poeta Silvano dal Monte, eu não me contive e bradei com todas as forças do meus pulmões algumas duras verdades que, mais cedo ou mais tarde, teria mesmo que lançar no rosto de toda aquela gente reunida em torno de mim e vivendo à custa de meus elogios diários ou hebdomadários. Algo assim neste estilo, se não me falha a memória: — “Nem parece que todos vós tendes intestinos e, na ponta desses intestinos, um lamentável eu, exatamente igual ao que têm vosso açougueiro, vosso chofer, vosso camareiro, vossos cachorros e vossos cavalos de raça. Vosso eu é a melhor arma que tendes para afugentar os maus pensamentos, que são aqueles que os afastam da simplicidade humana e da humana aceitação da vida — e é para o vosso eu que vos conclamo olheis diante do espelho, se preciso de joelhos e com uma vela na mão para enxergar melhor, toda vez que vos sentirdes possuídos de um orgulho oceânico e vos julgardes tão poderosos quanto vosso Deus, que pelo menos (que eu saiba) não tinha nenhum eu à vista.”
IV — Escorraçado da mais alta sociedade como elemento pernicioso e indesejável, e com ordem para abandonar o país emanada do próprio chefe de polícia — que, no entanto, devia ter seu próprio eu, tanto quanto os outros — comprei uma bicicleta e transpus a fronteira da Venezuela em menos de cinco horas, tendo como única bagagem meus milhões de liras honestamente ganhos no jornalismo e um velho papagaio poliglota, que fora o único a aceitar sem protesto minha veemente filosofia anorretal, de origem visivelmente freudiana. Em Caracas fiz-me fabricante de esquifes de luxo, com larga exportação para todos os países da América Latina, depois me envolvi numa complicada história de petróleo com os norte-americanos, que por pouco não me custou a vida e a miséria, e finalmente deixei-me cair de amores por uma porto-riquenha muito linda e muito pura, de nome Alzira, e em cujo ventre plantei a semente de uma frondosa árvore humana, de que certamente ainda terei notícia algum dia.
V — A minha velha dor de cabeça acompanhando-me em todos os passos, e sobretudo quando me ponho a caminhar deitado, com o auxílio da imaginação. Dir-se-ia que trago um feto dentro do cérebro, algo que eu deveria ter posto no mundo há muito tempo e cujo cadáver envenena-me as paredes do crânio e ameaça-me sair um dia pelas narinas e pelos ouvidos, como a lava de um vulcão.
VI — Morte inglória do meu papagaio. Suas últimas palavras: — Et, ubicumque fueris, extraneus es et peregrinas.

Walter Campos de Carvalho, in A Lua Vem da Ásia

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