quinta-feira, 2 de março de 2023

A verdade acerca do Zito | 3


A verdade acerca do Zito | 3
Quando foi então, como começou? Como é esse menino estava na cabeça, não saía das mãos? Sukuama! Uma tarde inteira, calor já, assim de janela fechada, porta fechada, ouvindo os pássaros, sentindo o sol para entrar e o barulho vagaroso dos passos de vavó, na casa, no quintal, as falas sozinhas, o riso das pessoas na rua. E sempre a virar na cama, levantando, sentando, vestindo, despindo. E como passou os casos dos frascos de remédio? Porquê estavam só assim os cacos no canto do quarto, a mancha gorda no chão?...
Eu gosto de ti...
No antigamente também era um menino forte, um menino bom, que ela estava esperar sempre, que ela deitava sempre e que foi embora. E como então? Quando então? Antes de sô Amaral, muito longe já, custa lembrar. Só a tosse do homem quase velho, aquele cheiro a remédio do corpo amarelo, os gritos parecia era mulher velha e a respiração de pacaça que lhe assustava, julgando ele ia morrer... Toneta vê o nojo da boca dele a rir os dentes estragados do tabaco:
Tonetinha, então? Estou a pedir, não gosto pedir...
Tanto tempo já que não dormia com um homem!
Mas os vestidos que você queria, Toneta, os sapatos na loja do mestre, o dinheiro para a cubata, o dinheiro para comida, vavó Xica sempre a lamentar que sô Antunes estava pedir caro? E por tudo isso, vem Toneta, senta Toneta, fica de pé Toneta, abaixa Toneta. Podre! Tudo assim? E o resto, Toneta, o mais podre mesmo daquela conversa no emprego, o chefe, o chefe das telefonistas gozando:
Hem, Toneta! Qualquer dia matas o velhote... E eu lá estou... No cemitério, claro.
E o Zito?
Aquele menino bom que apareceu com a chuva, menino forte que não deixa tirar os calções, ainda cheio de vergonha e atrevido para lhe espreitar todas as tardes, chorar com coragem:
Eu gosto de ti...
Zito, como ele disse o nome dele. Ia ser bom lhe deitar, esconder a cabeça dele, deixar ele chorar tudo, lhe fazer festas nas costas, nos braços fortes, na barriga do menino. Como um filho grande, mais velho...
O corpo mexe, a cama faz barulho.Tapa as orelhas, não aceita ouvir esse barulho lhe estragar a lembrança na cabeça. Menino bom, menino forte, seus olhos muito quietos, gulosos da combinação quase nua, cor-de-rosa, desbotada…
Toneta se levanta descalça e abre a janela. O cheiro fresco da terra molhada entrou no sol das seis, mergulhava atrás do Balão; na mandioqueira do quintal as folhas riam, os pássaros cantavam o fim da tarde, nos paus. Espreitou, procurou atrás das aduelas, queria ver aqueles olhos de onça a rondar galinhas; mas nada, ninguém, nada que se ouvia. Só debaixo da mandioqueira vavó Xica cochilava na esteira, o velho cachimbo tinha-lhe caído dentro da quinda do macunde que a mais-velha começou escolher nessa tarde.
Porquê então o menino hoje não aparecia? Mas porquê tinha então aparecer, Toneta? Você, Zito, não percebe, não sabe a vida, o podre da vida, você cai no rio sujo e mesmo que pode nadar, vem o jacaré não deixa você chegar na terra. E não lhe mata logo, não. Mergulha contigo, te amarra no lodo para morreres devagar. Por isso quer embora o menino forte, o menino dos calções molhados.
Zito, não é como ele disse nome dele? Aposto estava lá no dia do Santo António!...
Toneta chega na janela mas se cala, vavó pode acordar e se o menino vai vir...
O sol brincava ainda nas folhas da mandioqueira e, depois, ia pintar na cara enrugada de vavó Xica, enxotar as moscas da tarde, deixando-lhe sonhar, o macunde espalhado na esteira, na quinda...
Pensa só, Toneta! Você é mais velha, gostava o Zito, você lhe apalpam na repartição, cambulam, Toneta, os homens para você, Toneta, são o lixo e você é o lixo para os homens; você sabe, Toneta, não pode esquecer as palavras podres dos dentes de tabaco desse branco velho que só sabe tossir. Pensa ainda, Toneta! Como é seu coração está bater assim, se vê de fora da combinação, só porque pelo capim abaixo, devagarinho, desconfiado e medroso, vem um menino descalço esquivando os últimos bocados do sol das seis e meia? Você é mulher mais velha, Toneta, não é mais miúda de cabaço para tremer assim, Toneta!
A janela está aberta, vavó Xica dorme e sonha. Zito, está esperar o quê então? Toneta é um riso muito branco no desenho escuro do quarto, a janela mostra. E seus olhos estão a ver aquela mão a lhe chamar, seus pés descalços viram pés de onça para passar pertinho de vavó Xica, deixar-lhe sonhar na sombra da mandioqueira. E o riso da Toneta, na hora de abrir a porta, é aquele riso da manhã, o calor das mãos macias empurrando o sangue dentro de todo o corpo dele, a voz sussurrando:
Menino bom, menino forte…
Vai enxotar o vermelho e azul do céu que ainda espreita na janela, e no andar dela, descalço, dança o mataco rijo debaixo da combinação. As mamas afastam as alças, quando a Toneta volta, Zito fecha os olhos.
Não passa choro como o menino de manhã, nem ri como se limpasse a chuva. Se agarram só, e o sangue quente, as palavras do primo Chefe, as macias falas da Toneta se juntam, se misturam, despem sua camisa, os calções e depois os lençóis são o sol no buraco da janela mal fechada, vermelho e azul do céu em seus corpos transpirados e brilhantes, quieto e rijo menino bom, menino forte, malandro menino, malcriado menino do musseque e Toneta, a sem-vergonha, quitata de sô Amaral, raiva de todas as mulheres e doce de todos os homens do nosso musseque.
Diz ainda, Toneta, você gostas de mim?
Muito, Zito. Tu és um homem!
Zito ri, duvida:
Verdade mesmo?
Toneta não responde. Passa o silêncio, o ar, o tempo.
Sabe uma coisa, Zito? Tanto tempo já que não deitava com um homem!
E sô Amaral, então?
Sô Amaral?...
A pergunta é mesmo só um eco ou lembra sô Amaral, ele foi no Caxito, serviço dele?
Sô Amaral não é homem...
Porquê? Só porque está assim velho?...
Não é isso, Zito. Você ainda não pode saber...
E as mãos de Toneta no cabelo suado, nos músculos descansando, parece é mamã Sessá quando era monandengue. Só que agora é ramo de mulemba, é pau de guico, Zito, você não é mais aquele menino da mamã Sessá...
Toneta, você acha a gente tem culpa se fala as palavras podres?...
Como então?
A voz é outra, vem de longe, do outro Zito, ela não lhe conhecia.
Não sei, Zito. Mas se os mais-velhos dizem…
Pois é...
A mão brinca na orelha dele, sente a cabeça do menino nas suas mamas e se deixa ficar estendida no corpo quieto.
Toneta, você me gosta mesmo?
Porquê?
Zito não sabe responder, quer explicar não pode, o melhor mesmo é dar a prenda. Mas a boca teimosa fala ainda:
Toneta! Se você gosta de mim, é capaz de me bater?
Nunca, Zito. Haka!... Não podia!
Porquê esta conversa deste menino?
Vai ’mbora, Zito?
Ih! Não! Nunca vou ir embora!
Toneta ri. Menino bom...
Zito, mamã Sessá te bate muito?
Não fala só estas coisas, Toneta! Favor!...
Toneta vê-lhe procurar o bolso da camisa, o menino está segurar pequeno embrulho, quase amachucado.
Toneta, lembra o Santo António? Então fecha ainda teus olhos!...
Um riso grande, muitos beijos e obedece: fecha os olhos, sente umas mãos atrapalhadas e o barulho do papel de seda desembrulhando. A voz do menino outra vez:
Já pode abrir, Toneta!
Ela vê a palma da mão clara do menino em cima de suas mamas quietas, e nessa palma duas pequeninas flores amarelas, dois brincos. As florzinhas cor de sol fazem o coração bater depressa, a garganta ficar tapada, não pode falar. Não é mais uma miúda, Toneta, é uma mais-velha. Vai deixar mesmo correr essa água parece é da chuva da manhã, tanto tempo já que você não chora?...
Menino bom, menino forte...
As mãos quentes e macias, o calor da noite, o cheiro de seus corpos suados, fazem esquecer aquela alegria das florzinhas amarelas de capim, os brincos para Toneta. Deixa o sono adormecer seu sangue quieto, devagar, o coração batuca debaixo da mão de Toneta, o peito...
Zito, menino malandro de musseque, adormece nos braços de sua mãe Sessá e Toneta deixa correr a água limpa que guardava muito tempo na cacimba funda de sua vida e fica mirando as florzinhas de capim, amarelas, sobre o peito:
Meu filho, menino bom, menino forte…

José Luantino Vieira, in Nosso Musseque

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