A
verdade acerca do Zito | 3
Quando
foi então, como começou? Como é esse menino estava na cabeça, não
saía das mãos? Sukuama! Uma tarde inteira, calor já, assim de
janela fechada, porta fechada, ouvindo os pássaros, sentindo o sol
para entrar e o barulho vagaroso dos passos de vavó, na casa, no
quintal, as falas sozinhas, o riso das pessoas na rua. E sempre a
virar na cama, levantando, sentando, vestindo, despindo. E como
passou os casos dos frascos de remédio? Porquê estavam só assim os
cacos no canto do quarto, a mancha gorda no chão?...
— Eu
gosto de ti...
No
antigamente também era um menino forte, um menino bom, que ela
estava esperar sempre, que ela deitava sempre e que foi embora. E
como então? Quando então? Antes de sô Amaral, muito longe já,
custa lembrar. Só a tosse do homem quase velho, aquele cheiro a
remédio do corpo amarelo, os gritos parecia era mulher velha e a
respiração de pacaça que lhe assustava, julgando ele ia morrer...
Toneta vê o nojo da boca dele a rir os dentes estragados do tabaco:
— Tonetinha,
então? Estou a pedir, não gosto pedir...
Tanto
tempo já que não dormia com um homem!
Mas
os vestidos que você queria, Toneta, os sapatos na loja do mestre, o
dinheiro para a cubata, o dinheiro para comida, vavó Xica sempre a
lamentar que sô Antunes estava pedir caro? E por tudo isso, vem
Toneta, senta Toneta, fica de pé Toneta, abaixa Toneta. Podre! Tudo
assim? E o resto, Toneta, o mais podre mesmo daquela conversa no
emprego, o chefe, o chefe das telefonistas gozando:
— Hem,
Toneta! Qualquer dia matas o velhote... E eu lá estou... No
cemitério, claro.
E
o Zito?
Aquele
menino bom que apareceu com a chuva, menino forte que não deixa
tirar os calções, ainda cheio de vergonha e atrevido para lhe
espreitar todas as tardes, chorar com coragem:
— Eu
gosto de ti...
Zito,
como ele disse o nome dele. Ia ser bom lhe deitar, esconder a cabeça
dele, deixar ele chorar tudo, lhe fazer festas nas costas, nos braços
fortes, na barriga do menino. Como um filho grande, mais velho...
O
corpo mexe, a cama faz barulho.Tapa as orelhas, não aceita ouvir
esse barulho lhe estragar a lembrança na cabeça. Menino bom, menino
forte, seus olhos muito quietos, gulosos da combinação quase nua,
cor-de-rosa, desbotada…
Toneta
se levanta descalça e abre a janela. O cheiro fresco da terra
molhada entrou no sol das seis, mergulhava atrás do Balão; na
mandioqueira do quintal as folhas riam, os pássaros cantavam o fim
da tarde, nos paus. Espreitou, procurou atrás das aduelas, queria
ver aqueles olhos de onça a rondar galinhas; mas nada, ninguém,
nada que se ouvia. Só debaixo da mandioqueira vavó Xica cochilava
na esteira, o velho cachimbo tinha-lhe caído dentro da quinda do
macunde que a mais-velha começou escolher nessa tarde.
Porquê
então o menino hoje não aparecia? Mas porquê tinha então
aparecer, Toneta? Você, Zito, não percebe, não sabe a vida, o
podre da vida, você cai no rio sujo e mesmo que pode nadar, vem o
jacaré não deixa você chegar na terra. E não lhe mata logo, não.
Mergulha contigo, te amarra no lodo para morreres devagar. Por isso
quer embora o menino forte, o menino dos calções molhados.
— Zito,
não é como ele disse nome dele? Aposto estava lá no dia do Santo
António!...
Toneta
chega na janela mas se cala, vavó pode acordar e se o menino vai
vir...
O
sol brincava ainda nas folhas da mandioqueira e, depois, ia pintar na
cara enrugada de vavó Xica, enxotar as moscas da tarde, deixando-lhe
sonhar, o macunde espalhado na esteira, na quinda...
Pensa
só, Toneta! Você é mais velha, gostava o Zito, você lhe apalpam
na repartição, cambulam, Toneta, os homens para você, Toneta, são
o lixo e você é o lixo para os homens; você sabe, Toneta, não
pode esquecer as palavras podres dos dentes de tabaco desse branco
velho que só sabe tossir. Pensa ainda, Toneta! Como é seu coração
está bater assim, se vê de fora da combinação, só porque pelo
capim abaixo, devagarinho, desconfiado e medroso, vem um menino
descalço esquivando os últimos bocados do sol das seis e meia? Você
é mulher mais velha, Toneta, não é mais miúda de cabaço para
tremer assim, Toneta!
A
janela está aberta, vavó Xica dorme e sonha. Zito, está esperar o
quê então? Toneta é um riso muito branco no desenho escuro do
quarto, a janela mostra. E seus olhos estão a ver aquela mão a lhe
chamar, seus pés descalços viram pés de onça para passar pertinho
de vavó Xica, deixar-lhe sonhar na sombra da mandioqueira. E o riso
da Toneta, na hora de abrir a porta, é aquele riso da manhã, o
calor das mãos macias empurrando o sangue dentro de todo o corpo
dele, a voz sussurrando:
— Menino
bom, menino forte…
Vai
enxotar o vermelho e azul do céu que ainda espreita na janela, e no
andar dela, descalço, dança o mataco rijo debaixo da combinação.
As mamas afastam as alças, quando a Toneta volta, Zito fecha os
olhos.
Não
passa choro como o menino de manhã, nem ri como se limpasse a chuva.
Se agarram só, e o sangue quente, as palavras do primo Chefe, as
macias falas da Toneta se juntam, se misturam, despem sua camisa, os
calções e depois os lençóis são o sol no buraco da janela mal
fechada, vermelho e azul do céu em seus corpos transpirados e
brilhantes, quieto e rijo menino bom, menino forte, malandro menino,
malcriado menino do musseque e Toneta, a sem-vergonha, quitata de sô
Amaral, raiva de todas as mulheres e doce de todos os homens do nosso
musseque.
— Diz
ainda, Toneta, você gostas de mim?
— Muito,
Zito. Tu és um homem!
Zito
ri, duvida:
— Verdade
mesmo?
Toneta
não responde. Passa o silêncio, o ar, o tempo.
— Sabe
uma coisa, Zito? Tanto tempo já que não deitava com um homem!
— E
sô Amaral, então?
— Sô
Amaral?...
A
pergunta é mesmo só um eco ou lembra sô Amaral, ele foi no Caxito,
serviço dele?
— Sô
Amaral não é homem...
— Porquê?
Só porque está assim velho?...
— Não
é isso, Zito. Você ainda não pode saber...
E
as mãos de Toneta no cabelo suado, nos músculos descansando, parece
é mamã Sessá quando era monandengue. Só que agora é ramo de
mulemba, é pau de guico, Zito, você não é mais aquele menino da
mamã Sessá...
— Toneta,
você acha a gente tem culpa se fala as palavras podres?...
— Como
então?
A
voz é outra, vem de longe, do outro Zito, ela não lhe conhecia.
— Não
sei, Zito. Mas se os mais-velhos dizem…
— Pois
é...
A
mão brinca na orelha dele, sente a cabeça do menino nas suas mamas
e se deixa ficar estendida no corpo quieto.
— Toneta,
você me gosta mesmo?
— Porquê?
Zito
não sabe responder, quer explicar não pode, o melhor mesmo é dar a
prenda. Mas a boca teimosa fala ainda:
— Toneta!
Se você gosta de mim, é capaz de me bater?
— Nunca,
Zito. Haka!... Não podia!
Porquê
esta conversa deste menino?
— Vai
’mbora, Zito?
— Ih!
Não! Nunca vou ir embora!
Toneta
ri. Menino bom...
— Zito,
mamã Sessá te bate muito?
— Não
fala só estas coisas, Toneta! Favor!...
Toneta
vê-lhe procurar o bolso da camisa, o menino está segurar pequeno
embrulho, quase amachucado.
— Toneta,
lembra o Santo António? Então fecha ainda teus olhos!...
Um
riso grande, muitos beijos e obedece: fecha os olhos, sente umas mãos
atrapalhadas e o barulho do papel de seda desembrulhando. A voz do
menino outra vez:
— Já
pode abrir, Toneta!
Ela
vê a palma da mão clara do menino em cima de suas mamas quietas, e
nessa palma duas pequeninas flores amarelas, dois brincos. As
florzinhas cor de sol fazem o coração bater depressa, a garganta
ficar tapada, não pode falar. Não é mais uma miúda, Toneta, é
uma mais-velha. Vai deixar mesmo correr essa água parece é da chuva
da manhã, tanto tempo já que você não chora?...
— Menino
bom, menino forte...
As
mãos quentes e macias, o calor da noite, o cheiro de seus corpos
suados, fazem esquecer aquela alegria das florzinhas amarelas de
capim, os brincos para Toneta. Deixa o sono adormecer seu sangue
quieto, devagar, o coração batuca debaixo da mão de Toneta, o
peito...
Zito,
menino malandro de musseque, adormece nos braços de sua mãe Sessá
e Toneta deixa correr a água limpa que guardava muito tempo na
cacimba funda de sua vida e fica mirando as florzinhas de capim,
amarelas, sobre o peito:
— Meu
filho, menino bom, menino forte…
José Luantino Vieira, in Nosso Musseque
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