segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Mingau de milho verde e Havaianas azuis

Outro dia, “conversando miolo de pote” lá no quintal da casa de meu compadre Wellington, no meio da roda de conversa alguém disse que nos Estados Unidos existe uma tradição que dá a um condenado à morte o direito de escolher sua última refeição. Pronto, Camila foi logo dizendo que o prato dela seria o pirão do meu tio Popó, Douglas disse que escolheria baião de dois com carne de sol, Roberto disse que pediria caviar com lagostas só pra não morrer sem saber o gosto que tinha, e tome risada, e tome prosa, e eu só conseguia pensar em uma coisa: o mingau de milho verde servido na merenda da Escola Urcesina Moura Cantídio.
Eu me recordo da cena: as merendeiras mexendo a colher de pau nos caldeirões da cozinha da escola, o rádio ligado, parecia até que estavam dançando com o próprio mingau, que era servido quente, pegando fogo, num copo de plástico azul, assim como a colher.
O recreio era às nove da manhã, mas oito e pouco a escola toda já estava cheirosa. Quando tocava o sino, a fila para o paraíso se formava. E aí era nossa vez de dançar a dança do assopra, esfria e come.
Sim, tenho certeza: eu escolheria o mingau da merenda da escola como última refeição.
É incrível como, às vezes sem querer, reviramos nossas lembranças e descobrimos coisas sobre nós que, de certa forma, não sabíamos. Talvez porque nunca tivéssemos tomado a iniciativa de nos perguntar, de conversar mais com as próprias lembranças. Naquela noite, fui banhado por uma enxurrada de lembranças vívidas da Urcesina Moura Cantídio e da Francisco Nonato Freire, ambas escolas públicas de Alto Santo.
O assunto da última refeição se esfarelou, de repente todos já estavam falando de outra coisa, e eu ali, lembrando dos meus tempos de escola e ainda sentindo o gosto do mingau em minha boca.
Mas uma das lembranças mais marcantes dessa época não veio da boca, e sim dos pés. Na sexta série, eu tinha apenas um par de tênis para ir à escola. Certa vez, mamãe lavou esses tênis à noite, mas choveu e eles acabaram não secando. E agora? Vai de chinela.
Como minha chinela já estava bem velhinha, mamãe correu na bodega de Nanam e comprou um par de Havaianas azuis, aquelas mais tradicionais e baratas. Vixe, na época era quase moda ir à escola usando sandálias Kenner ou Opanka, chegar lá de Havaianas era certeza de piada.
Mãe, os meninos vão tudo mangar de mim!
Mangar de você por quê?
Porque isso aqui é chinelo de pobre.
Meu filho, você vai calçar a chinela que eu tenho condições de comprar. Agora, se você quer tanto usar essa tal de Kenner e Opanka, vá pra escola nem que seja de pés descalços, porque filho de pobre, pra ter alguma coisa na vida, tem que estudar.
E lá fui eu, cheio de vergonha. No caminho da escola ficava a casa de Seu João Lima, marido de Dona Cira, que fazia o melhor dindim da cidade. Sempre que eu passava, ele estava na calçada e fazia alguma brincadeira comigo. Aliás, não só comigo, ele brincava com a meninada toda que passava.
Seu João Lima tinha diabetes e, devido a complicações causadas pela doença, um de seus pés já estava quase sem dedos e talvez precisasse ser amputado. Eu nunca tinha prestado muita atenção naquilo. A alegria dele, as brincadeiras, a gaiatice, tiravam toda a atenção do pé doente. Mas nesse dia reparei exatamente no problema e pensei: “Seu João Lima quase perdendo o pé e não está nem aí, e eu aqui com vergonha porque não estou calçando um chinelo da moda.”
Me senti tão burro. Tão ingrato. Tão injusto! Eu deveria sentir orgulho e gratidão a minha mãe pelas Havaianas, e a Deus por, simplesmente, ter os pés para calçá-las.
O tempo passou. Estudei, trabalhei, ganhei dinheiro e ainda não comprei um par de sandálias da Kenner nem da Opanka. Continuo inclusive usando Havaianas tradicionais na cor azul.
Outro dia, postei em minhas redes sociais uma foto em frente ao famoso castelo da Disney em Orlando, EUA. Fui pro parque bem à vontade, exatamente como eu me vestiria pra ir tomar uma cana no bar de Suilo em Alto Santo. E mesmo com toda a beleza do castelo, ao ler os comentários da minha postagem, vi que o que mais chamou a atenção das pessoas foi o fato de eu estar usando Havaianas na Disney.
A maioria dos comentários exaltavam minha humildade. Como se humildade estivesse estampada na parte de fora da gente. E não. Aquele par de Havaianas dizia muito mais a respeito da minha falta de humildade e gratidão quando criança.
Pode parecer coisa de doido, mas, enfim, sou artista, poeta, a doidice faz parte do pacote. Mas faço questão de sempre ter um par de Havaianas tradicionais na cor azul em casa e na mala, pra nunca esquecer a lição que mamãe, João Lima e a escola me ensinaram.
Quando pensar em reclamar da chinela, agradeça por ter os pés.

Bráulio Bessa, in Um carinho na alma

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