Outro
dia, “conversando miolo de pote” lá no quintal da casa de meu
compadre Wellington, no meio da roda de conversa alguém disse que
nos Estados Unidos existe uma tradição que dá a um condenado à
morte o direito de escolher sua última refeição. Pronto, Camila
foi logo dizendo que o prato dela seria o pirão do meu tio Popó,
Douglas disse que escolheria baião de dois com carne de sol, Roberto
disse que pediria caviar com lagostas só pra não morrer sem saber o
gosto que tinha, e tome risada, e tome prosa, e eu só conseguia
pensar em uma coisa: o mingau de milho verde servido na merenda da
Escola Urcesina Moura Cantídio.
Eu
me recordo da cena: as merendeiras mexendo a colher de pau nos
caldeirões da cozinha da escola, o rádio ligado, parecia até que
estavam dançando com o próprio mingau, que era servido quente,
pegando fogo, num copo de plástico azul, assim como a colher.
O
recreio era às nove da manhã, mas oito e pouco a escola toda já
estava cheirosa. Quando tocava o sino, a fila para o paraíso se
formava. E aí era nossa vez de dançar a dança do assopra, esfria e
come.
Sim,
tenho certeza: eu escolheria o mingau da merenda da escola como
última refeição.
É
incrível como, às vezes sem querer, reviramos nossas lembranças e
descobrimos coisas sobre nós que, de certa forma, não sabíamos.
Talvez porque nunca tivéssemos tomado a iniciativa de nos perguntar,
de conversar mais com as próprias lembranças. Naquela noite, fui
banhado por uma enxurrada de lembranças vívidas da Urcesina Moura
Cantídio e da Francisco Nonato Freire, ambas escolas públicas de
Alto Santo.
O
assunto da última refeição se esfarelou, de repente todos já
estavam falando de outra coisa, e eu ali, lembrando dos meus tempos
de escola e ainda sentindo o gosto do mingau em minha boca.
Mas
uma das lembranças mais marcantes dessa época não veio da boca, e
sim dos pés. Na sexta série, eu tinha apenas um par de tênis para
ir à escola. Certa vez, mamãe lavou esses tênis à noite, mas
choveu e eles acabaram não secando. E agora? Vai de chinela.
Como
minha chinela já estava bem velhinha, mamãe correu na bodega de
Nanam e comprou um par de Havaianas azuis, aquelas mais tradicionais
e baratas. Vixe, na época era quase moda ir à escola usando
sandálias Kenner ou Opanka, chegar lá de Havaianas era certeza de
piada.
– Mãe,
os meninos vão tudo mangar de mim!
– Mangar
de você por quê?
– Porque
isso aqui é chinelo de pobre.
– Meu
filho, você vai calçar a chinela que eu tenho condições de
comprar. Agora, se você quer tanto usar essa tal de Kenner e Opanka,
vá pra escola nem que seja de pés descalços, porque filho de
pobre, pra ter alguma coisa na vida, tem que estudar.
E
lá fui eu, cheio de vergonha. No caminho da escola ficava a casa de
Seu João Lima, marido de Dona Cira, que fazia o melhor dindim da
cidade. Sempre que eu passava, ele estava na calçada e fazia alguma
brincadeira comigo. Aliás, não só comigo, ele brincava com a
meninada toda que passava.
Seu
João Lima tinha diabetes e, devido a complicações causadas pela
doença, um de seus pés já estava quase sem dedos e talvez
precisasse ser amputado. Eu nunca tinha prestado muita atenção
naquilo. A alegria dele, as brincadeiras, a gaiatice, tiravam toda a
atenção do pé doente. Mas nesse dia reparei exatamente no problema
e pensei: “Seu João Lima quase perdendo o pé e não está nem aí,
e eu aqui com vergonha porque não estou calçando um chinelo da
moda.”
Me
senti tão burro. Tão ingrato. Tão injusto! Eu deveria sentir
orgulho e gratidão a minha mãe pelas Havaianas, e a Deus por,
simplesmente, ter os pés para calçá-las.
O
tempo passou. Estudei, trabalhei, ganhei dinheiro e ainda não
comprei um par de sandálias da Kenner nem da Opanka. Continuo
inclusive usando Havaianas tradicionais na cor azul.
Outro
dia, postei em minhas redes sociais uma foto em frente ao famoso
castelo da Disney em Orlando, EUA. Fui pro parque bem à vontade,
exatamente como eu me vestiria pra ir tomar uma cana no bar de Suilo
em Alto Santo. E mesmo com toda a beleza do castelo, ao ler os
comentários da minha postagem, vi que o que mais chamou a atenção
das pessoas foi o fato de eu estar usando Havaianas na Disney.
A
maioria dos comentários exaltavam minha humildade. Como se humildade
estivesse estampada na parte de fora da gente. E não. Aquele par de
Havaianas dizia muito mais a respeito da minha falta de humildade e
gratidão quando criança.
Pode
parecer coisa de doido, mas, enfim, sou artista, poeta, a doidice faz
parte do pacote. Mas faço questão de sempre ter um par de Havaianas
tradicionais na cor azul em casa e na mala, pra nunca esquecer a
lição que mamãe, João Lima e a escola me ensinaram.
Quando
pensar em reclamar da chinela, agradeça por ter os pés.
Bráulio Bessa, in Um carinho na alma
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