1
Eu
morava num conjunto de casas populares na Carlton Way, perto da
Western. Tinha cinquenta e oito anos e ainda tentava ser escritor
profissional e vencer na vida apenas com a máquina de escrever.
Iniciara esse curioso meio de vida aos cinquenta anos. Mas não se
pode viver sempre escrevendo, e havia muito espaço a preencher. Eu o
preenchia com uísque, cerveja e mulheres. Acabei me enchendo da
maioria das mulheres e me concentrei no uísque e na cerveja.
Na
noite em que isso aconteceu, minha namorada Sarah estava lá em casa.
Sarah tinha alguns pontos positivos. Por exemplo, me fazia mudar aos
poucos do uísque para o vinho, o que provavelmente significava mais
três anos de vida. E eu precisava desses anos extras, porque não
escrevia o bastante.
Seja
como for, eu tomava vinho com ela. A atmosfera era bastante
agradável. Aí o telefone tocou.
Atendi.
– Sim...
– Aqui
é Jon Pinchot.
– Que
é que você quer?
– Quero
que você escreva um argumento cinematográfico pra mim.
– O,
cara, vai te foder.
Bati
o telefone.
– Quem
era? – perguntou Sarah.
– Algum
maluco.
– Tem
certeza de que não era uma de suas mulheres?
– Só
se fez operação de mudança de sexo.
O
telefone tornou a tocar. Eu o peguei.
– Siiiimmm...
– Escute,
não desligue. Me escute um instante. É Jon Pinchot de novo. Eu li
tudo que você escreveu...
– Isso
é problema seu.
– Não,
espere... Quero que você escreva um argumento...
– Eu
detesto argumentos. Detesto Hollywood, detesto atores, detesto
cinema. O cinema me causa engulhos...
– Vinte
mil dólares.
– Quê?
– Te
pago vinte mil dólares pra me escrever um argumento.
– Onde
é que você está? Pode vir aqui?
– Não,
mas entro em contato dentro de um ou dois dias, e a gente se
encontra.
– Legal.
Nos
despedimos.
– Quem
era? – perguntou Sarah.
– Um
francês.
– Você
vai escrever um argumento cinematográfico?
– Vamos
ver…
2
Alguns
dias depois, Pinchot telefonou. Disse que desejava ir em frente com o
argumento para o filme. Podíamos ir até lá falar com ele?
Assim,
pegamos as indicações, nos metemos no Volks e nos mandamos pra
Marina del Rey. Território estranho.
No
porto, passávamos de carro pelos barcos. Em sua maioria, eram barcos
a vela e as pessoas se movimentavam pelos convéses. Vestiam roupas
especiais de iatismo, quepes, óculos escuros. De uma maneira ou de
outra, a maioria escapara ao ramerrão do cotidiano. Jamais haviam
sido apanhados nele, e nunca o seriam. Tais eram as recompensas dos
Escolhidos na terra dos livres. De certo modo, aquelas pessoas me
pareciam tolas. E, é claro, nem mesmo pensavam em mim.
Dobramos
à direita, descemos as docas e passamos por ruas dispostas em ordem
alfabética, com nomes extravagantes. Encontramos a rua, dobramos à
esquerda e entramos na estradinha de acesso à casa. A areia vinha
até ali, e o oceano surgia perto o bastante para ser visto e longe o
bastante para não ser uma ameaça. A areia parecia mais limpa que as
outras, a água mais azul, e a brisa mais suave.
– Veja
– eu disse a Sarah –, acabamos de pousar no posto avançado da
morte. Minha alma vomita.
– Quer
parar de se preocupar com sua alma? – respondeu Sarah.
Não
era preciso trancar o fusca. Só eu sabia ligá-lo.
Chegamos
à porta. Bati.
Abriu
um tipo alto, esguio e delicado, que tresandava a arte por todos os
poros. Via-se que nascera para criar, criar coisas boas, totalmente
desimpedido, jamais importunado por coisas mesquinhas como dor de
dente, dúvidas sobre si mesmo, azar. Era uma dessas pessoas que
parecem gênios. Como eu parecia um pano de prato, esses tipos sempre
me deixavam meio puto.
– Viemos
pegar a roupa suja – eu disse.
– Não
ligue pra ele – interveio Sarah. – Pinchot sugeriu que a gente
pintasse por aqui.
– An-han
– disse o cavalheiro –, entrem...
Seguimos
atrás dele e das suas bochechinhas de lebre. Aí o cara parou em
alguma quina especial, sujeito encantador, e falou por cima do ombro
esquerdo, como se o mundo inteiro ouvisse sua delicada proclamação:
– Vou
pegar minha VOD-CA já!
Sumiu
na cozinha.
– Jon
falou dele na outra noite – disse Sarah. – É Paul Renoir. Compõe
ópera e também trabalha numa forma conhecida como Filme-Ópera.
Muito vanguarda.
– Pode
ser um grande homem, mas não quero ele chupando os lóbulos das
minhas orelhas.
– Oh,
deixe de viver tanto na defensiva! Nem todo mundo pode ser igual a
você!
– Eu
sei. É esse o problema deles.
– Sua
maior força – disse Sarah – é que tem medo de tudo.
– Eu
gostaria que essa frase fosse minha.
Paul
retornou com seu drinque. Parecia bom. Tinha até mesmo uma rodela de
limão, e ele a mexia com um bastãozinho de vidro. Um swizzle. Muita
classe.
– Paul
– perguntei –, tem mais alguma coisa pra gente beber aqui?
– An-han,
desculpe – ele disse. – Por favor, sirvam-se!
Invadi
a cozinha nos calcanhares de Sarah. Tinha garrafa pra tudo que era
lado. Enquanto nos decidíamos, abri uma cerveja.
– É
melhor a gente ficar longe da pesada – sugeriu minha boa dama. –
Você sabe como fica quando entra isso.
– Certo.
Vamos de vinho.
Encontrei
um saca-rolhas e uma garrafa de tinto de bela aparência.
Tomamos
os dois uma boa talagada. Depois tornamos a encher os copos e saímos.
Teve uma época em que eu chamava Sarah e eu de Zelda e Scott, mas
isso a chateava, porque não gostava do modo como Zelda acabara. E eu
não gostava do que Scott escrevia. Por isso, deixamos nosso senso de
humor por aí.
Parado
diante da grande janela panorâmica, Paul Renoir checava o Pacífico.
– Jon
se atrasou – disse, para a janela panorâmica e o oceano –, mas
me mandou dizer a vocês que vai chegar logo, e que por favor
esperem.
– Legal,
baby...
Sarah
e eu nos sentamos com nossas bebidas. Virados para as bochechas de
coelho. Ele virado para o mar. Parecia mergulhado em pensamentos.
– Chinaski
– disse –, li grande parte de sua obra. É do caralho. Você é
muito bom.
– Muito
obrigado. Mas a gente sabe quem é o melhor. Você.
– Ora
– ele disse, continuando virado para o mar –, é muitíssima
bondade sua... compreender isso...
Abriu-se
a porta e uma garota de longos e negros cabelos entrou sem bater.
Antes que déssemos por isso ela já se estendia na borda do encosto
do sofá, como uma gata.
– Eu
sou Popppy – disse –, com quatro pês.
Tive
uma recaída:
– Nós
somos Zelda e Scott.
– Corta
essa! – disse Sarah.
Paul
voltou-se do mar.
– Popppy
é uma das patrocinadoras de nosso argumento.
– Eu
não escrevi uma palavra – eu disse.
– Mas
vai escrever...
– Quer
me dar outro, por favor? – Olhei para Sarah e entreguei meu copo
vazio.
Sarah
era uma boa garota. Saiu com o copo. Sabia que se eu fosse lá
dentro, ia atacar garrafas diversas e começar com meu jeito de ser
desagradável.
Eu
ia ficar sabendo depois que também chamavam Popppy de “A Princesa
do Brasil”. Para início de conversa, entrara com dez mil
bagarotes. Não muito. Mas já pagava o aluguel e parte das bebidas.
A
Princesa me olhava de sua posição de gata no encosto do sofá.
– Eu
li teus troços. Você é muito engraçado.
– Muito
obrigado.
Olhei
para Paul.
– Ei,
baby, ouviu essa? Eu sou engraçado.
– Você
merece – ele disse – um certo lugar...
Tornou
a se mandar para a cozinha, passando por Sarah, que voltava com nosso
reabastecimento. Ela se sentou a meu lado e tomei uma golada.
Ocorreu-me
então que poderia blefar sobre o argumento e ficar ali na Marina del
Rey um mês, mamando as bebidas. Antes que pudesse realmente saborear
essa ideia, a porta escancarou-se e lá estava Jon Pinchot.
– Ah,
vocês apareceram!
– An-han
– eu disse.
– Acho
que tenho um patrocinador. Você só precisa escrever.
– Pode
levar alguns meses.
– Mas,
é claro...
Paul
voltava. Trazia uma estranha bebida cor-de-rosa para a Princesa.
Pinchot
se mandou pra cozinha, pegar um para si.
Foi
o primeiro de muitos encontros que simplesmente se dissolviam em
bruta farra, especialmente da minha parte. Descobri que precisava de
um reforço de confiança, pois na verdade só me interessava pelo
poema e o conto. Escrever um argumento cinematográfico me parecia a
coisa mais estúpida que alguém podia fazer. Mas gente melhor que eu
já se vira surpreendida num ato assim ridículo.
Jon
Pinchot apareceu com seu drinque e sentou-se.
Foi
uma longa noite. Conversamos sem parar – sobre o que, não estou
muito certo. Finalmente Sarah e eu bebemos demais para poder voltar
de carro. Ofereceram-nos gentilmente um quarto.
Foi
nesse quarto, no escuro, enquanto nos servíamos um último tinto
bom, que Sarah me perguntou:
– Você
vai escrever um argumento?
– Diabos,
não.
Charles Bukowski, in Hollywood
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