sábado, 25 de fevereiro de 2023

Hollywood | 1 e 2


1

Eu morava num conjunto de casas populares na Carlton Way, perto da Western. Tinha cinquenta e oito anos e ainda tentava ser escritor profissional e vencer na vida apenas com a máquina de escrever. Iniciara esse curioso meio de vida aos cinquenta anos. Mas não se pode viver sempre escrevendo, e havia muito espaço a preencher. Eu o preenchia com uísque, cerveja e mulheres. Acabei me enchendo da maioria das mulheres e me concentrei no uísque e na cerveja.
Na noite em que isso aconteceu, minha namorada Sarah estava lá em casa. Sarah tinha alguns pontos positivos. Por exemplo, me fazia mudar aos poucos do uísque para o vinho, o que provavelmente significava mais três anos de vida. E eu precisava desses anos extras, porque não escrevia o bastante.
Seja como for, eu tomava vinho com ela. A atmosfera era bastante agradável. Aí o telefone tocou.
Atendi.
Sim...
Aqui é Jon Pinchot.
Que é que você quer?
Quero que você escreva um argumento cinematográfico pra mim.
O, cara, vai te foder.
Bati o telefone.
Quem era? – perguntou Sarah.
Algum maluco.
Tem certeza de que não era uma de suas mulheres?
Só se fez operação de mudança de sexo.
O telefone tornou a tocar. Eu o peguei.
Siiiimmm...
Escute, não desligue. Me escute um instante. É Jon Pinchot de novo. Eu li tudo que você escreveu...
Isso é problema seu.
Não, espere... Quero que você escreva um argumento...
Eu detesto argumentos. Detesto Hollywood, detesto atores, detesto cinema. O cinema me causa engulhos...
Vinte mil dólares.
Quê?
Te pago vinte mil dólares pra me escrever um argumento.
Onde é que você está? Pode vir aqui?
Não, mas entro em contato dentro de um ou dois dias, e a gente se encontra.
Legal.
Nos despedimos.
Quem era? – perguntou Sarah.
Um francês.
Você vai escrever um argumento cinematográfico?
Vamos ver…

2

Alguns dias depois, Pinchot telefonou. Disse que desejava ir em frente com o argumento para o filme. Podíamos ir até lá falar com ele?
Assim, pegamos as indicações, nos metemos no Volks e nos mandamos pra Marina del Rey. Território estranho.
No porto, passávamos de carro pelos barcos. Em sua maioria, eram barcos a vela e as pessoas se movimentavam pelos convéses. Vestiam roupas especiais de iatismo, quepes, óculos escuros. De uma maneira ou de outra, a maioria escapara ao ramerrão do cotidiano. Jamais haviam sido apanhados nele, e nunca o seriam. Tais eram as recompensas dos Escolhidos na terra dos livres. De certo modo, aquelas pessoas me pareciam tolas. E, é claro, nem mesmo pensavam em mim.
Dobramos à direita, descemos as docas e passamos por ruas dispostas em ordem alfabética, com nomes extravagantes. Encontramos a rua, dobramos à esquerda e entramos na estradinha de acesso à casa. A areia vinha até ali, e o oceano surgia perto o bastante para ser visto e longe o bastante para não ser uma ameaça. A areia parecia mais limpa que as outras, a água mais azul, e a brisa mais suave.
Veja – eu disse a Sarah –, acabamos de pousar no posto avançado da morte. Minha alma vomita.
Quer parar de se preocupar com sua alma? – respondeu Sarah.
Não era preciso trancar o fusca. Só eu sabia ligá-lo.
Chegamos à porta. Bati.
Abriu um tipo alto, esguio e delicado, que tresandava a arte por todos os poros. Via-se que nascera para criar, criar coisas boas, totalmente desimpedido, jamais importunado por coisas mesquinhas como dor de dente, dúvidas sobre si mesmo, azar. Era uma dessas pessoas que parecem gênios. Como eu parecia um pano de prato, esses tipos sempre me deixavam meio puto.
Viemos pegar a roupa suja – eu disse.
Não ligue pra ele – interveio Sarah. – Pinchot sugeriu que a gente pintasse por aqui.
An-han – disse o cavalheiro –, entrem...
Seguimos atrás dele e das suas bochechinhas de lebre. Aí o cara parou em alguma quina especial, sujeito encantador, e falou por cima do ombro esquerdo, como se o mundo inteiro ouvisse sua delicada proclamação:
Vou pegar minha VOD-CA já!
Sumiu na cozinha.
Jon falou dele na outra noite – disse Sarah. – É Paul Renoir. Compõe ópera e também trabalha numa forma conhecida como Filme-Ópera. Muito vanguarda.
Pode ser um grande homem, mas não quero ele chupando os lóbulos das minhas orelhas.
Oh, deixe de viver tanto na defensiva! Nem todo mundo pode ser igual a você!
Eu sei. É esse o problema deles.
Sua maior força – disse Sarah – é que tem medo de tudo.
Eu gostaria que essa frase fosse minha.
Paul retornou com seu drinque. Parecia bom. Tinha até mesmo uma rodela de limão, e ele a mexia com um bastãozinho de vidro. Um swizzle. Muita classe.
Paul – perguntei –, tem mais alguma coisa pra gente beber aqui?
An-han, desculpe – ele disse. – Por favor, sirvam-se!
Invadi a cozinha nos calcanhares de Sarah. Tinha garrafa pra tudo que era lado. Enquanto nos decidíamos, abri uma cerveja.
É melhor a gente ficar longe da pesada – sugeriu minha boa dama. – Você sabe como fica quando entra isso.
Certo. Vamos de vinho.
Encontrei um saca-rolhas e uma garrafa de tinto de bela aparência.
Tomamos os dois uma boa talagada. Depois tornamos a encher os copos e saímos. Teve uma época em que eu chamava Sarah e eu de Zelda e Scott, mas isso a chateava, porque não gostava do modo como Zelda acabara. E eu não gostava do que Scott escrevia. Por isso, deixamos nosso senso de humor por aí.
Parado diante da grande janela panorâmica, Paul Renoir checava o Pacífico.
Jon se atrasou – disse, para a janela panorâmica e o oceano –, mas me mandou dizer a vocês que vai chegar logo, e que por favor esperem.
Legal, baby...
Sarah e eu nos sentamos com nossas bebidas. Virados para as bochechas de coelho. Ele virado para o mar. Parecia mergulhado em pensamentos.
Chinaski – disse –, li grande parte de sua obra. É do caralho. Você é muito bom.
Muito obrigado. Mas a gente sabe quem é o melhor. Você.
Ora – ele disse, continuando virado para o mar –, é muitíssima bondade sua... compreender isso...
Abriu-se a porta e uma garota de longos e negros cabelos entrou sem bater. Antes que déssemos por isso ela já se estendia na borda do encosto do sofá, como uma gata.
Eu sou Popppy – disse –, com quatro pês.
Tive uma recaída:
Nós somos Zelda e Scott.
Corta essa! – disse Sarah.
Paul voltou-se do mar.
Popppy é uma das patrocinadoras de nosso argumento.
Eu não escrevi uma palavra – eu disse.
Mas vai escrever...
Quer me dar outro, por favor? – Olhei para Sarah e entreguei meu copo vazio.
Sarah era uma boa garota. Saiu com o copo. Sabia que se eu fosse lá dentro, ia atacar garrafas diversas e começar com meu jeito de ser desagradável.
Eu ia ficar sabendo depois que também chamavam Popppy de “A Princesa do Brasil”. Para início de conversa, entrara com dez mil bagarotes. Não muito. Mas já pagava o aluguel e parte das bebidas.
A Princesa me olhava de sua posição de gata no encosto do sofá.
Eu li teus troços. Você é muito engraçado.
Muito obrigado.
Olhei para Paul.
Ei, baby, ouviu essa? Eu sou engraçado.
Você merece – ele disse – um certo lugar...
Tornou a se mandar para a cozinha, passando por Sarah, que voltava com nosso reabastecimento. Ela se sentou a meu lado e tomei uma golada.
Ocorreu-me então que poderia blefar sobre o argumento e ficar ali na Marina del Rey um mês, mamando as bebidas. Antes que pudesse realmente saborear essa ideia, a porta escancarou-se e lá estava Jon Pinchot.
Ah, vocês apareceram!
An-han – eu disse.
Acho que tenho um patrocinador. Você só precisa escrever.
Pode levar alguns meses.
Mas, é claro...
Paul voltava. Trazia uma estranha bebida cor-de-rosa para a Princesa.
Pinchot se mandou pra cozinha, pegar um para si.
Foi o primeiro de muitos encontros que simplesmente se dissolviam em bruta farra, especialmente da minha parte. Descobri que precisava de um reforço de confiança, pois na verdade só me interessava pelo poema e o conto. Escrever um argumento cinematográfico me parecia a coisa mais estúpida que alguém podia fazer. Mas gente melhor que eu já se vira surpreendida num ato assim ridículo.
Jon Pinchot apareceu com seu drinque e sentou-se.
Foi uma longa noite. Conversamos sem parar – sobre o que, não estou muito certo. Finalmente Sarah e eu bebemos demais para poder voltar de carro. Ofereceram-nos gentilmente um quarto.
Foi nesse quarto, no escuro, enquanto nos servíamos um último tinto bom, que Sarah me perguntou:
Você vai escrever um argumento?
Diabos, não.

Charles Bukowski, in Hollywood

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