sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Divórcio

Os três pediram café; um curto, um carioca e um descafeinado. Rodrigo, homem de poucas e sábias palavras, manteve-se calado na maior parte do tempo, enquanto os outros dois…
Quem é o seu melhor amigo?”, Mário perguntou.
Você?”
Quem livra a sua cara de situações embaraçosas, resgata você à meia-noite quando o carro pifa, dorme com você em hospitais, paga a sua fiança, se for necessário, vira o seu fiador, seu guarda-costas, seu para-raios?”
Você.”
Você me conhece, quem é o seu amigo mais fiel?”, insistia Mário.
Você.”
O mais contraditório?”
Você”
O mais doido, insatisfeito, incoerente?”
Você”
E o mais sedutor?”
Você. Disparado.”
Chega o café e a conta.
Mário se oferece para pagar.
E narra: “Não sou sedutor ortodoxo convicto, nem tenho o dogma como ideal de vida. Passei a praticar depois que a… vocês sabem o nome… me largou. É um comportamento dúbio: querer me vingar, sair com o maior número de mulheres, e ao mesmo tempo sofrer de escassez amorosa. Vieram muitos rancores por ter sido já largado não por uma, mas por duas mulheres que eu amo. Amava. Aquelas… Vocês sabem de quem estou falando. Agora procuro em cada mulher um novo atalho, que me tire desse estado.”
Que estado?”
De carência induzida. Procuro uma mulher que me faça esquecer. Como não encontro, testo, e me comparam a um galinha. Só existe uma pessoa que pode me salvar.”
Quem?”
A tua mulher.”
Oi?”
Você ouviu.”
Ouvi, mas…”
Mas o quê?”
A Lúcia?!”
É.”
O que tem a Lúcia?”
Tudo.”
Tudo o quê?”
Tenho pensado nela. Eu queria ter algo com ela.”
Com a Lúcia?!”
Você é meu amigo, não fique ofendido.”
Ter o quê?”
Uma história, uma relação.”
De amor?”
Sexual. Eu queria ter um caso com a sua mulher.”
Olharam o garçom passar o cartão e retirar o boleto.
Olharam a fumaça do café.
Como se nela houvesse explicações.
Eu queria ir pra cama com…”
Tá, tá, não precisa repetir, porra.”
Olha o nível…”, interrompeu Mário.
E seria a única pessoa que pode te tirar do estado de carência.”
Ah, você concorda com ele”, disse então Rodrigo.
Cala a boca! Estou chocado.”
Comigo?”, perguntou Mário.
Com a Lúcia. Não imaginava que ela tivesse este poder.”
De despertar desejos?”
De sedução.”
De curar? Não me leve a mal.”
Ele olhou para Rodrigo, que bebericava o seu carioca.
O que foi?”, perguntou Rodrigo.
Você ouviu o que ouvi?”
Lógico.”
E você não vai falar nada?”
O que eu posso fazer?”
Me ajude a esganá-lo!”
Mas é o seu melhor amigo. Se não rolar sinceridade entre amigos, não é amizade. E, ora, a Lúcia é um mulherão. Dos três, você é o mais sortudo”, disse Rodrigo.

Era o pacto.
Dos três, ele era o único casado.
E vivia desdenhando a mulher, Lúcia.
Reclamava do seu temperamento, seus temperos, suas tendências, suas crenças.
Os amigos Mário e Rodrigo chegaram antes ao restaurante e combinaram. Porque eram os seus melhores amigos, resolveram provocar e demonstrar interesse por Lúcia, para que o amigo parasse de invejar a vida dos solitários desquitados quarentões amargurados que, acreditava, tinha mais sentido do que a sua.

Rodrigo retomou: “Lúcia sempre foi a melhor e é ainda a mulher mais… desculpe… tesuda da cidade. Você não sabe o que ela provoca com aquele sorriso? Ela é interessada em tudo, conversa, faz perguntas, fala de todos os assuntos sem o menor constrangimento, tem humor, uns dentes lindos, sabe se vestir com discrição, sabe como andar, os olhos cor de mel que, quando bate o sol, ficam verdes, fora aqueles braços com pelinhos loiros, ela é maluquinha…”
Tá, tá, tá!”
É uma coisa, mesmo!”, concluiu Mário.
Não fala assim!”
Melhores amigos falam tudo.”
Ele se levantou tonto. Nunca imaginou que Mário fizesse uma proposta tão indecente.
Nem por um milhão de dólares!”, ele disse e saiu fora.
Os amigos enfim riram da provocação:
Também, não é assim uma Demi Moore.”
Nem você é o Robert Redford.”

Ele dirigiu a noite toda pela cidade.
O celular tocava, ele via, era Lúcia, não atendia.
Guiou por todas as ruas da infância e adolescência.
Depois, cruzou viadutos com nomes de militares.
Passou por floriculturas e joalherias.
Até voltar tarde para casa. Bem tarde. De mãos vazias.
Entrou na ponta dos pés, como um ladrão invadiria uma casa desconhecida.
Lúcia dormia. Que linda. Olhou para a mulher. Encanto. Ela é deslumbrante mesmo. Tesão. Tesudaça! Lembrou-se das afinidades. Tomou um banho sorrindo. Uma coisa. Que coisinha!
E se enfiou na cama sem acordá-la.
Então, em vez de abraçá-la com toda a força, se virou para o lado e começou a tremer de medo. Pânico. Uma mulher daquela, ele não conseguirá segurar, o primeiro que usar as palavras certas leva, os amigos, o chefe, o professor de meditação, um garçom do Ritz, do Spot, do Habib’s, um cineasta pernambucano, o Rodrigo Santoro, o Raí!
Eu sou um merda, um nada, e me casei com a mulher mais incrível, atraente e discreta da cidade, tesão, e nem reparava mais em tanto brilho no olhar, nem nos pelinhos loiros, nem no humor, nos dentes, ela se tornara comum, Lúcia, a patroa, a rotina, radiopatroa, estorvo e entrave de uma vida sexual variada e dinâmica, e não a divindade que inspira poesia em todos os cantos.
Ele se levantou da cama.
Olhou para os lados.
O pânico se tornou incontrolável, terror.
Suava. Falta de ar.
Você não a ama mais.
E ela o largará logo, porque é muita areia para o seu…

Sem acordá-la, abriu as gavetas e começou a fazer as malas. Deixarei o caminho livre, musa!
Quando escutou a voz meiga de Lúcia.
Mor? Que tá fazendo?”
Desculpe. É inevitável.”
O que você tá fazendo?”
Não adianta me impedir.”
Impedir o quê?”
Cedo ou tarde…”
Tá tarde, amor, vem pra cama, vem. Tá uma delicinha aqui…”
Ela abriu o lençol. Apareceu de corpo inteiro, camisetinha branca, sem roupa de baixo.
Nossa, como você é perfeita…”
Quem me dera. Vem me abraçar. Tá frio.”
Ele se sentou ao lado dela e, antes de beijá-la, ela deu um arrotinho e riu envergonhada.
Ops. Desculpe. Foi o quibe cru. Tinha muita cebola”, ela disse.
Ele sentiu o hálito forte subir. Tirou os sapatos e se deitou, para aquecer aquele corpo que era só seu.

Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz

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