Os
três pediram café; um curto, um carioca e um descafeinado. Rodrigo,
homem de poucas e sábias palavras, manteve-se calado na maior parte
do tempo, enquanto os outros dois…
“Quem
é o seu melhor amigo?”, Mário perguntou.
“Você?”
“Quem
livra a sua cara de situações embaraçosas, resgata você à
meia-noite quando o carro pifa, dorme com você em hospitais, paga a
sua fiança, se for necessário, vira o seu fiador, seu
guarda-costas, seu para-raios?”
“Você.”
“Você
me conhece, quem é o seu amigo mais fiel?”, insistia Mário.
“Você.”
“O
mais contraditório?”
“Você”
“O
mais doido, insatisfeito, incoerente?”
“Você”
“E
o mais sedutor?”
“Você.
Disparado.”
Chega
o café e a conta.
Mário
se oferece para pagar.
E
narra: “Não sou sedutor ortodoxo convicto, nem tenho o dogma como
ideal de vida. Passei a praticar depois que a… vocês sabem o nome…
me largou. É um comportamento dúbio: querer me vingar, sair com o
maior número de mulheres, e ao mesmo tempo sofrer de escassez
amorosa. Vieram muitos rancores por ter sido já largado não por
uma, mas por duas mulheres que eu amo. Amava. Aquelas… Vocês sabem
de quem estou falando. Agora procuro em cada mulher um novo atalho,
que me tire desse estado.”
“Que
estado?”
“De
carência induzida. Procuro uma mulher que me faça esquecer. Como
não encontro, testo, e me comparam a um galinha. Só existe uma
pessoa que pode me salvar.”
“Quem?”
“A
tua mulher.”
“Oi?”
“Você
ouviu.”
“Ouvi,
mas…”
“Mas
o quê?”
“A
Lúcia?!”
“É.”
“O
que tem a Lúcia?”
“Tudo.”
“Tudo
o quê?”
“Tenho
pensado nela. Eu queria ter algo com ela.”
“Com
a Lúcia?!”
“Você
é meu amigo, não fique ofendido.”
“Ter
o quê?”
“Uma
história, uma relação.”
“De
amor?”
“Sexual.
Eu queria ter um caso com a sua mulher.”
Olharam
o garçom passar o cartão e retirar o boleto.
Olharam
a fumaça do café.
Como
se nela houvesse explicações.
“Eu
queria ir pra cama com…”
“Tá,
tá, não precisa repetir, porra.”
“Olha
o nível…”, interrompeu Mário.
“E
seria a única pessoa que pode te tirar do estado de carência.”
“Ah,
você concorda com ele”, disse então Rodrigo.
“Cala
a boca! Estou chocado.”
“Comigo?”,
perguntou Mário.
“Com
a Lúcia. Não imaginava que ela tivesse este poder.”
“De
despertar desejos?”
“De
sedução.”
“De
curar? Não me leve a mal.”
Ele
olhou para Rodrigo, que bebericava o seu carioca.
“O
que foi?”, perguntou Rodrigo.
“Você
ouviu o que ouvi?”
“Lógico.”
“E
você não vai falar nada?”
“O
que eu posso fazer?”
“Me
ajude a esganá-lo!”
“Mas
é o seu melhor amigo. Se não rolar sinceridade entre amigos, não é
amizade. E, ora, a Lúcia é um mulherão. Dos três, você é o mais
sortudo”, disse Rodrigo.
Era
o pacto.
Dos
três, ele era o único casado.
E
vivia desdenhando a mulher, Lúcia.
Reclamava
do seu temperamento, seus temperos, suas tendências, suas crenças.
Os
amigos Mário e Rodrigo chegaram antes ao restaurante e combinaram.
Porque eram os seus melhores amigos, resolveram provocar e demonstrar
interesse por Lúcia, para que o amigo parasse de invejar a vida dos
solitários desquitados quarentões amargurados que, acreditava,
tinha mais sentido do que a sua.
Rodrigo
retomou: “Lúcia sempre foi a melhor e é ainda a mulher mais…
desculpe… tesuda da cidade. Você não sabe o que ela provoca com
aquele sorriso? Ela é interessada em tudo, conversa, faz perguntas,
fala de todos os assuntos sem o menor constrangimento, tem humor, uns
dentes lindos, sabe se vestir com discrição, sabe como andar, os
olhos cor de mel que, quando bate o sol, ficam verdes, fora aqueles
braços com pelinhos loiros, ela é maluquinha…”
“Tá,
tá, tá!”
“É
uma coisa, mesmo!”, concluiu Mário.
“Não
fala assim!”
“Melhores
amigos falam tudo.”
Ele
se levantou tonto. Nunca imaginou que Mário fizesse uma proposta tão
indecente.
“Nem
por um milhão de dólares!”, ele disse e saiu fora.
Os
amigos enfim riram da provocação:
“Também,
não é assim uma Demi Moore.”
“Nem
você é o Robert Redford.”
Ele
dirigiu a noite toda pela cidade.
O
celular tocava, ele via, era Lúcia, não atendia.
Guiou
por todas as ruas da infância e adolescência.
Depois,
cruzou viadutos com nomes de militares.
Passou
por floriculturas e joalherias.
Até
voltar tarde para casa. Bem tarde. De mãos vazias.
Entrou
na ponta dos pés, como um ladrão invadiria uma casa desconhecida.
Lúcia
dormia. Que linda. Olhou para a mulher. Encanto. Ela é deslumbrante
mesmo. Tesão. Tesudaça! Lembrou-se das afinidades. Tomou um banho
sorrindo. Uma coisa. Que coisinha!
E
se enfiou na cama sem acordá-la.
Então,
em vez de abraçá-la com toda a força, se virou para o lado e
começou a tremer de medo. Pânico. Uma mulher daquela, ele não
conseguirá segurar, o primeiro que usar as palavras certas leva, os
amigos, o chefe, o professor de meditação, um garçom do Ritz, do
Spot, do Habib’s, um cineasta pernambucano, o Rodrigo Santoro, o
Raí!
Eu
sou um merda, um nada, e me casei com a mulher mais incrível,
atraente e discreta da cidade, tesão, e nem reparava mais em tanto
brilho no olhar, nem nos pelinhos loiros, nem no humor, nos dentes,
ela se tornara comum, Lúcia, a patroa, a rotina, radiopatroa,
estorvo e entrave de uma vida sexual variada e dinâmica, e não a
divindade que inspira poesia em todos os cantos.
Ele
se levantou da cama.
Olhou
para os lados.
O
pânico se tornou incontrolável, terror.
Suava.
Falta de ar.
Você
não a ama mais.
E
ela o largará logo, porque é muita areia para o seu…
Sem
acordá-la, abriu as gavetas e começou a fazer as malas. Deixarei o
caminho livre, musa!
Quando
escutou a voz meiga de Lúcia.
“Mor?
Que tá fazendo?”
“Desculpe.
É inevitável.”
“O
que você tá fazendo?”
“Não
adianta me impedir.”
“Impedir
o quê?”
“Cedo
ou tarde…”
“Tá
tarde, amor, vem pra cama, vem. Tá uma delicinha aqui…”
Ela
abriu o lençol. Apareceu de corpo inteiro, camisetinha branca, sem
roupa de baixo.
“Nossa,
como você é perfeita…”
“Quem
me dera. Vem me abraçar. Tá frio.”
Ele
se sentou ao lado dela e, antes de beijá-la, ela deu um arrotinho e
riu envergonhada.
“Ops.
Desculpe. Foi o quibe cru. Tinha muita cebola”, ela disse.
Ele
sentiu o hálito forte subir. Tirou os sapatos e se deitou, para
aquecer aquele corpo que era só seu.
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz
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