Mais
e mais me assemelho ao caranguejo: olhos fora do colpo, vou sonhando
de lado hesitante entre duas almas: a da água e a da terra.
– Curozero
Muando –
Eis
o que sonhei: que o coveiro Curozero Muando tinha escavado em terras
fora do cemitério, longe da vila. Procurara as mais distantes
paragens, nas bermas das lagoas, nos outeiros de Zipene, nos vales de
Xitulundo. Em todos os lugares sucedia o mesmo: não era possível
penetrar no solo. Tentou-se mesmo até. na secreta sombra de
Ximhambanine, a sagrada floresta dos anciãos. O coveiro desabara,
joelhos na areia: os deuses nos acudissem e amolecessem o chão. Mas
nem reza nem lamento resultaram. Invariavelmente, a pá chocava com
um duro manto de pedra. Era como se, em todo o lado, a terra inteira
tivesse fechado.
Chegaram
amigos da cidade e disseram-me que o mesmo fenômeno estava ocorrendo
noutros lugares. Em todo o país, a terra negava abrir o seu ventre
aos humanos desígnios. Enviei mensagem para o exterior. E o mesmo se
passava também por lá. Em todos os continentes o chão endurecera,
intransponível. O assunto tornara-se uma catástrofe de proporções
mundiais. Não era apenas a impossibilidade de enterrar os cadáveres.
A agricultura paralisara. Os trabalhos de construção, as minas, as
dragagens nos portos, tudo estava parado.
Dirigentes
internacionais procuravam apressadamente explicações, cientistas de
reputação pesquisavam motivos, multiplicavam-se comissões, viagens
e expedições. Ninguém fazia ideia que a raiz de tão grave
desequilíbrio se localizava, afinal, na nossa pequena Ilha. Ninguém
sabia que tudo começara na pessoa do Avô Mariano.
No
sonho, eu regressava ao cemitério. Não encontrava o coveiro
Curozero. Mas lá estava a sua irmã, Nyembeti, mais convidativa que
nunca, trajando a movediça capulana que mostrava mais que cobria.
Instigando-me
com gestos e assobios a moça me conduziu para um local que só ela
conhecia, no sopé de um monte. Escolheu entre fragas e cavernas e se
meteu por um esconso recanto. Ali onde a luz mal chegava, ela se
deitou na terra escura e me chamou. Era uma gruta sombria e o cheiro
me era familiar. Hesitei antes de me estender no chão. Me fazia
temor o não ver onde me pendia.
– Deite-se
em cima de mim! Afinal, Nyembeti falava? E falava português? Meu
corpo cobriu o dela, os braços me suportaram para não pesar sobre
ela. Mas ela me puxou os pulsos e levou as minhas mãos a que lhe
cobrissem os seios. E depois visitassem o seu corpo, seus húmidos
segredos. Ali no escuro fizemos amor. Nossos gemidos se amplificavam,
ecoando nos redondos da caverna. No final, uma ave se soltou do
tecto, esbranquiçando as penumbras.
Só
quando me recompunha, arfante, é que reparei: aquele cheiro da gruta
era o mesmo do quarto de arrumos. E o gosto daquela mulher, a voz, o
perfume, tudo era o mesmo. Podia Nyembeti ter estado naquele dia em
Nyumba-Kaya? Podia ser ela a incógnita amante que antes me
assaltara? – Se admira de eu falar português? Me espantava ela
falar. Mas a moça explicou: queria escapar aos vários Ultímios que
lhe apareciam, com ares citadinos. Se fazia assim, tonta e indígena,
para os afastar de intentos.
– Com
você posso falar qualquer língua. E mesmo em nenhuma língua.
Beijámo-nos.
De novo, me veio a sensação de regressar ao escuro do quarto de
arrumos. O braço dela me afasta, com doçura mas sem vacilar.
– Agora,
venha comigo. Eu trouxe-lhe aqui para lhe mostrar.
As
mãos, em concha, escavaram a terra. E o assombro me catapultou o
peito. O solo ali era fofo, minhocável, esfarelento. Nyembeti
descobrira onde se podia cavar a sepultura do Avô.
– Como
é que você encontrou este lugar? Mas ela negou. Os lugares não se
encontram, constroem-se. A diferença daquele chão não estava na
geografia. Apontou para nós dois e embrulhou as mãos para, em
seguida, as levar ao coração. Ela queria dizer que a terra ficou
assim porque nela nos amáramos? Seria o amor que reparara a terra?
Fazer do chão um leito nupcial, seria isso que amoleceria a terra e
nos punha de bem com a nossa mais antiga morada? Talvez. Talvez fosse
tudo tão simples como o lençol do velho Mariano, esse onde ele
agora repousa. É esse lençol, quem sabe, com todos os cheiros de
antigos amores, é esse lençol que vai prendendo o velho à vida.
Nyembeti
me olhou, curiosa de me ver ausente. Sorriu e com um gesto sugeriu
que eu regressasse à vila. Ela ficaria na gruta. Ainda me dirigiu um
pedido, à despedida: – Sei que você irá para a cidade. Mas
quando voltar deve trazer-me uma prenda de lembrança.
Estranho
o que ela queria que eu trouxesse: saliva de cobra, cuspo de lagarto.
Ou antes, caso eu pudesse: seivas de arbusto maligno, gosma de cacto.
Qualquer coisa desde que fosse da ordem dos venenos, das mortais
peçonhas que certos bichos e plantas confeccionam em seus interiores
infernos. Isso eu sonhei, naquela noite quente.
Manhã
cedo me ergo e vou à deriva. Preciso separar-me das visões do sonho
anterior. Pretendo apenas visitar o passado. Dirijo-me às encostas
onde, em menino, eu pastoreara os rebanhos da família. As cabras
ainda ali estão, transmalhadas. Parecem as mesmas, esquecidas de
morrer. Se afastam, sem pressa, dando passagem. Para elas, todo o
homem deve ser pastor. Alguma razão têm. Em Luar-do-Chão não
conheço quem não tenha pastoreado cabra.
Ao
pastoreio devo a habilidade de sonhar. Foi um pastor quem inventou o
primeiro sonho. Ali, face ao nada, esperando apenas o tempo, todo o
pastor entreteceu fantasias com o fio da solidão.
As
cabras me atiram para lembranças antigas. E o rosto de Mariavilhosa,
minha doce mãe, vai neblinando o meu olhar. Porque naquelas
pastagens muitas vezes aquele rosto me visitara proéurando refúgio
em minha pequena alma. Minha mãe tinha engravidado, antes de mim.
Mas alguma coisa não correra bem. Diz-se que abortara, mas a
história se distorcia no tempo. O médico, sempre o mesmo
Mascarenha, tinha assegurado que Dona Mariavilhosa jamais poderia
voltar a conceber. A medicina se engana e eu sou prova viva disso.
Depois de mim, a mãe ainda voltou a engravidar. Mas a velha profecia
desta vez se confirmou. Aquele meu irmãozito, dentro do ventre dela,
não se abraçara à vida. Para Mariavilhosa aquilo foi motivo de
loucura. Podia ser estranho, mas o parto – chamemos parto àquele
acto vazio – se deu na noite da Independência. Naquela noite,
enquanto a vila celebrava o deflagrar de todo o futuro, minha mãe
morria de um passado: o corpo frio daquele que seria o seu último
filho. Meu pai me levou para dentro de casa enquanto Mariavilhosa,
com o recém-falecido ao colo, se arrastou pelo pátio. Ainda a vimos
erguer o corpo do bebé para o apresentar à lua nova. Como se faz
com os meninos recém-nascidos. Meu pai lhe entregou um pedaço de
lenha ardendo. E ela atirou o tição para a lua enquanto gritava: –
Leva-o, lua, leva o teu marido! Aquele fogo riscando o escuro me
ficou gravado como se fosse um astro subindo alto para depois tombar
em mil cadências de luzes. Anos mais tarde, já minha mãe falecida,
eu olhava a lua enquanto pastoreava no escuro e via Mariavilhosa com
o menino em suas costas. E escutava o seu pranto aflito, aferroado
pela fome. Então eu acorria à fogueira e apagava o lume. Matando o
fogo eu me expunha aos bichos e ao frio. Mas isso não tinha
importância. Eram as trevas que eu necessitava. Só no escuro minha
mãe encontrava conforto e guarida. Nesse recanto ela calava meu
falecido irmão, esse que, por nunca ter vivido, não haveria nunca
de morrer.
Mia Couto, in Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
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