segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

Foi isso que matou Dylan Thomas

Foi isso que matou Dylan Thomas.
Entro no avião com minha namorada, o técnico de som, o câmera e o produtor. A câmera está ligada. O técnico de som tinha prendido microfones de lapela em minha namorada e em mim. Estou a caminho de São Francisco para fazer uma leitura de poesia. Sou Henry Chinaski, poeta. Sou profundo, sou magnífico. Caralho. Bem, sim, sou um cara do caralho.
O Canal Quinze está pensando em fazer um documentário sobre mim. Estou vestindo uma camisa nova e limpa, e minha namorada está vibrante, magnífica, recém-entrada nos trinta. Ela esculpe, escreve e faz amor maravilhosamente bem. A câmera esbarra em meu rosto. Finjo que não está ali. Os passageiros observam, a aeromoça sorri, a terra é roubada dos índios, Tom Mix está morto e eu tive um belo café da manhã.
Mas não consigo deixar de pensar nos anos em quartos solitários, quando as únicas pessoas que batiam à minha porta eram as senhorias cobrando o aluguel atrasado ou o FBI. Vivia com ratos e camundongos e vinho, meu sangue escorria pelas paredes em um mundo que não conseguia compreender e ainda não compreendo. Em vez de levar a vida que eles levavam, eu passava fome. Fugia para dentro de minha própria mente e me escondia. Fechava todas as cortinas e ficava olhando para o teto. Quando saía, era para ir a um bar onde eu mendigava por bebida, andava a esmo, apanhava nos becos de homens bem-alimentados e confiantes, de homens idiotas e com vidas confortáveis. Bem, ganhei algumas lutas, mas só porque era louco. Fiquei anos sem mulher, vivia de manteiga de amendoim e pão amanhecido e batatas cozidas. Eu era o idiota, o estúpido, o louco. Queria escrever, mas a máquina de escrever estava sempre penhorada. Então eu desistia e bebia...

O avião decolou e a câmera continuou gravando. Minha namorada e eu conversávamos. As bebidas chegavam. Eu tinha poesia e uma bela mulher. A vida estava melhorando. Mas as armadilhas, Chinaski, cuidado com as armadilhas. Você lutou uma longa batalha para submeter o mundo à sua vontade. Não deixe que um pouco de adulação e uma câmera de cinema o derrubem dessa posição. Lembre-se do que disse Jeffers: “Até mesmo os homens mais fortes podem ser pegos em armadilhas, como Deus, na vez em que caminhou sobre a Terra”.
Bem, você não é Deus, Chinaski, relaxe e beba outro copo. Talvez deva dizer algo profundo para o técnico de som? Não, deixe-o trabalhar. Deixe todos trabalharem. Eles que estão fazendo o filme.
Veja o tamanho das nuvens. Você está voando com executivos da IBM, da Texaco, da...
Está andando com o inimigo.
No elevador do aeroporto um homem me pergunta:
O que são todas essas câmeras? O que está acontecendo?
Sou um poeta – eu lhe digo.
Um poeta? – ele pergunta. – Qual o seu nome?
Garcia Lorca – respondo…

Bem, em North Beach as coisas são diferentes. Eles são jovens e vestem jeans e ficam por ali, apenas esperando. Sou velho. Onde estão os jovens de vinte anos atrás? Onde está Joltin’ Joe? Essa coisa toda. Bem, eu estava em São Francisco trinta anos atrás e evitava North Beach. Agora estou caminhando justamente por aqui. Vejo minha cara nos pôsteres por toda a parte. Cuidado, velho, a armadilha está pronta. Eles querem seu sangue.
Minha namorada e eu caminhamos com Marionetti. Bem, aqui estamos nós caminhando por aí com Marionetti. É bom estar com Marionetti, ele tem olhos muito gentis e as jovens o param na rua para falar com ele. Agora, creio, poderia ficar em São Francisco... mas sou muito inteligente para isso, para mim, é melhor voltar para Los Angeles, a metralhadora já está montada na janela da frente do casarão. Eles podem ter conquistado Deus, mas Chinaski recebe seus conselhos do diabo.
Marionetti vai embora e lá está uma cafeteria beatnick. Nunca estive em uma. Estou em uma cafeteria beatnick. Minha namorada e eu pedimos o melhor... a xícara de sessenta centavos. Grande coisa. Não vale o preço. Os garotos ficam sentados, bebericando seus cafés e esperando que a vida aconteça. Não vai acontecer.
Atravessamos a rua e entramos em uma cafeteria italiana. Marionetti está de volta com o seu amigo do San Francisco Chronicle, que escreveu, em sua coluna, que eu era o melhor contista que tinha surgido desde Hemingway. Digo-lhe que está errado. Não sei quem é o melhor contista desde Hemingway, mas não é Henry Chinaski. Sou muito descuidado. Não me esforço tanto quanto deveria. Estou cansado.
O vinho sobe a cabeça. Vinho ruim. A atendente traz uma sopa, salada, uma tigela de raviólis. Outra garrafa de vinho ruim. Estamos já muito estufados para comer o prato principal. A conversa está solta. Não nos esforçamos para ser brilhantes. Talvez não possamos ser. Saímos.
Caminho atrás deles enquanto seguimos colina acima. Caminho com minha bela namorada. Começo a vomitar. Vinho tinto ruim. Salada. Sopa. Raviólis. Sempre vomito antes de uma leitura. É um bom sinal. A lâmina está afiada. A faca está em meu estômago enquanto subo a colina.
Eles nos colocam em uma sala, nos deixam algumas garrafas de cerveja. Olho para os meus poemas. Estou apavorado. Vomito na pia, vomito no banheiro, vomito no chão. Estou pronto.

O maior público desde Yevtushenko... Caminho pelo palco. Fodão. Chinaski é fodão. Há uma geladeira cheia de cervejas atrás de mim. Espicho o braço e pego uma. Sento e começo a ler. Eles pagaram dois dólares pelo ingresso. Pessoas bacanas, essas daí. Alguns, no entanto, são bastante hostis desde o começo. Um terço deles me odeia, um terço me ama, o outro terço não sabe por que, raios, está ali. Tenho alguns poemas que sei que aumentarão o ódio. É bom ter hostilidade, mantém a cabeça relaxada.
Laura Day poderia se levantar? Poderia o meu amor ficar de pé, por favor?
Ela se levanta acenando com os braços.
Começo a ficar mais interessado na cerveja do que na poesia. Falo entre os poemas, palavras banais e secas, monótonas. Sou Humphrey Bogart. Sou Hemingway. Sou foda.
Leia os poemas, Chinaski! – gritam eles.
Eles estão certos, vocês sabem. Tento me ater aos poemas. Mas passo também bastante tempo abrindo e fechando a porta da geladeira atrás de mim. Isso facilita o trabalho e eles já pagaram. Certa vez me contaram que John Cage subiu no palco, comeu uma maçã e saiu, ele recebeu mil dólares por isso. Imaginei que tinha ainda algumas cervejas para beber.
Bem, por fim terminou. Eles deram a volta. Autógrafos. Vieram de Oregon, Los Angeles, Washington. Algumas garotinhas bem bonitas também. Foi isso que matou Dylan Thomas.
Voltei lá para cima, para minha sala, bebendo cerveja e falando com Laura e Joe Krysiak. Lá embaixo, eles batem à porta.
Chinaski! Chinaski!
Joe desce para mandá-los embora. Sou um astro de rock. Finalmente desço e deixo uns poucos entrarem. Conheço alguns deles. Poetas famintos. Editores de pequenas revistas. Alguns dos que entram, eu não conheço. Tudo bem, tudo bem... tranque a porta!
Bebemos. Bebemos. Bebemos. Al Masantic cai no banheiro e abre o topo da cabeça. Um poeta muito bom, aquele Al.
Bem, todos estão falando. Não passa de outra bebedeira. Então o editor de uma pequena revista começa a bater em um veado. Não gosto disso. Tento separá-los. Uma janela está quebrada. Empurro-os escada abaixo. Empurro todo mundo pela escada, exceto Laura. A festa acabou. Bem, não exatamente. Laura e eu discutimos. Meu amor e eu estamos discutindo. Ela tem um temperamento forte e eu não fico atrás. Só para variar, estamos brigando por nada. Digo a ela que suma dali. Ela some.
Acordo horas depois e ela está em pé no meio do quarto. Salto da cama e a xingo. Ela está partindo pra cima de mim.
Vou matar você, seu filho da puta!
Estou bêbado. Ela está em cima de mim no chão da cozinha. Minha cara está sangrando. Ela morde o meu braço e abre um buraco. Não quero morrer. Não quero morrer! Foda-se a paixão! Corro para a cozinha e derramo meia garrafa de iodo sobre meu braço. Ela está jogando minhas bermudas e camisas para fora de sua mala, pegando sua passagem de avião. Ela está seguindo o seu rumo outra vez. Terminamos tudo para sempre, outra vez. Volto para a cama e escuto seus saltos descendo a colina.

No avião de volta, a câmera está gravando. Aqueles sujeitos do Canal Quinze vão descobrir sobre a minha vida. A câmera dá um zoom no buraco em meu braço. Na minha mão, trago um copo de uísque. Dose dupla.
Senhores – digo –, não há como acertar as coisas com as mulheres. Absolutamente não há como.
Todos balançam a cabeça em consentimento. O técnico de som assente com a cabeça, o câmera assente com a cabeça, o produtor assente com a cabeça. Alguns dos passageiros assentem com a cabeça. Bebo muito durante todo o trajeto de volta, saboreando meu pesar, como dizem. O que pode um poeta sem o sofrimento? O poeta precisa de sofrimento tanto quanto de sua máquina de escrever.
Claro, vou para o bar do aeroporto. Teria ido para lá de qualquer maneira. A câmera me segue. Os sujeitos no bar olham ao redor, erguem suas bebidas e falam de como é impossível fazer as coisas funcionarem com as mulheres.
Pela leitura, recebi quatrocentos dólares.
Para que esse negócio da câmera? – pergunta o sujeito ao meu lado.
Sou um poeta – respondo.
Um poeta? – ele pergunta. – Qual o seu nome?
Dylan Thomas.
Ergo meu copo, esvazio-o de uma só vez, olho diretamente em frente. Estou de partida.

Charles Bukowski, in Ao Sul de Lugar Nenhum

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