segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

O cisma humanista

Até agora discutimos o humanismo como se fosse uma visão única e coerente do mundo. Na verdade, o humanismo compartilha a sina de toda religião bem-sucedida, como o cristianismo e o budismo. Ao se espraiar e evoluir, fragmenta-se em diversas seitas conflitantes. Todas as seitas humanistas acreditam que a experiência humana é a fonte suprema da autoridade e do significado, mas elas interpretam a experiência humana de maneiras diferentes.
O humanismo divide-se em três ramos principais. O ramo ortodoxo afirma que todo ser humano é um indivíduo único possuidor de uma voz interior que o distingue e de uma sequência irreproduzível de experiências. Cada ser humano é um raio de luz singular, que ilumina o mundo de uma perspectiva diferente e que acrescenta colorido, profundidade e significado ao Universo. Por essa razão, devemos dar a máxima liberdade a cada indivíduo a fim de que experimente o mundo, siga sua voz interior e expresse sua verdade mais íntima. Seja na política, seja na economia ou na arte, a livre vontade individual deveria ter muito mais peso do que interesses de Estado ou doutrinas religiosas. Quanto mais liberdade as pessoas usufruírem, mais belo, rico e cheio de significado será o mundo. Devido a essa ênfase na liberdade, o ramo ortodoxo do humanismo é conhecido como “humanismo liberal” ou simplesmente “liberalismo”.
A política liberal acredita que o eleitor é quem sabe o que é melhor. Para a arte liberal, a beleza está no olho do observador. A economia liberal afirma que o cliente sempre tem razão. A ética liberal nos aconselha que, se algo faz com que nos sintamos bem, devemos ir em frente e fazê-lo. A educação liberal nos ensina a pensar por nós mesmos, porque é dentro de nós que vamos encontrar todas as respostas.
Durante os séculos XIX e XX, à medida que ganhava crescente credibilidade social e poder político, o humanismo fazia brotar duas ramificações muito diferentes: o humanismo socialista, que abrangia uma série de movimentos socialistas e comunistas, e o humanismo evolucionário, cujos mais famosos defensores foram os nazistas. As duas ramificações concordavam com o liberalismo na ideia de que a experiência humana é definitivamente a fonte do significado e da autoridade. Nenhuma delas acreditava em um poder transcendente ou em um livro de lei divina. Se, por exemplo, você perguntasse a Karl Marx o que havia de errado no fato de crianças com dez anos de idade cumprirem turnos de doze horas de trabalho em fábricas enfumaçadas, ele responderia que isso fazia com que elas se sentissem mal. Deveríamos evitar a exploração, a opressão e a desigualdade não porque Deus assim falou, mas porque elas tornam as pessoas infelizes.
Contudo, tanto socialistas como humanistas evolutivos ressaltaram que o entendimento liberal da experiência humana é falho. Os liberais pensam que a experiência humana é um fenômeno individual. Mas há muitos indivíduos no mundo, e eles frequentemente sentem coisas diferentes e têm vontades contraditórias. Se toda autoridade e todo significado emanam das experiências individuais, como conciliar as contradições entre experiências tão diferentes?
Em 17 de julho de 2015, a chanceler alemã Angela Merkel foi confrontada por uma adolescente palestina refugiada do Líbano, cuja família pedira asilo na Alemanha mas cuja deportação era iminente. A garota, Reem, disse a Merkel num alemão fluente: “É realmente muito difícil ver como outras pessoas podiam aproveitar a vida, enquanto eu mesma não posso. Não sei o que o futuro me trará”. Merkel respondeu que a “política pode ser dura” e explicou que há centenas de milhares de refugiados palestinos no Líbano e que a Alemanha não pode absorvê-los todos. Aturdida com essa resposta pragmática, Reem começou a chorar. Merkel acariciou as costas da menina, porém manteve sua posição.
Na tempestade política subsequente, muitos acusaram Merkel de insensibilidade. Para amenizar as críticas, a chanceler mudou sua postura, e Reem e sua família conseguiram asilo. Nos meses seguintes, Merkel abriu ainda mais as portas, ao receber na Alemanha centenas de milhares de refugiados. Mas não se pode satisfazer a todos. Logo ela estava sob ataque cerrado por ter se rendido ao sentimentalismo e por não ter adotado uma posição firme. Muitos pais alemães ficaram temerosos com a possibilidade de essa guinada de Merkel significar que seus filhos teriam um padrão de vida inferior e talvez acarretar uma onda de islamização. Por que deveriam arriscar a paz e a prosperidade de suas famílias para favorecer completos estranhos que poderiam nem mesmo acreditar nos valores do liberalismo? Todos tinham sentimentos muito fortes quanto a essa questão. Como conciliar as contradições entre os sentimentos de refugiados desesperados e os de alemães angustiados?8
Os liberais passam o tempo todo pela agonia dessas contradições. Os melhores esforços de Locke, Jefferson, Mill e seus colegas não conseguiram uma solução rápida e fácil para esses enigmas. Organizar uma votação democrática não seria de grande ajuda porque a questão seria então quem deveria participar da votação — apenas cidadãos alemães, ou também os milhões de asiáticos e africanos que querem imigrar para a Alemanha? Por que privilegiar os sentimentos de um grupo em relação aos de outro? Da mesma forma, não se pode resolver o conflito árabe-israelense fazendo com que 8 milhões de cidadãos israelenses e 350 milhões de cidadãos da Liga Árabe votem. Por razões óbvias, os israelenses não se sentiriam comprometidos com o resultado de tal plebiscito.
As pessoas só se sentem ligadas a eleições democráticas quando compartilham uma ligação básica com a maioria dos eleitores. Se a experiência de outros votantes me é estranha, e se eu acredito que eles não compreendem meus sentimentos e não se importam com meus interesses vitais, então, mesmo se eu perder o voto numa razão de um para cem, não tenho motivos para aceitar o veredicto. Eleições democráticas em geral funcionam somente em populações que têm alguma ligação comum anterior, tal como crenças religiosas e mitos nacionais compartilhados. Elas constituem um método de resolver desacordos entre pessoas que já concordam quanto ao básico.
Em conformidade com isso, em muitos casos o liberalismo fundiu-se com identidades coletivas e sentimentos tribais muito antigos para formar o nacionalismo moderno. Hoje em dia muitos associam o nacionalismo com forças antiliberais, mas pelo menos durante o século XIX o nacionalismo foi um aliado muito próximo do liberalismo. Os liberais celebram as experiências únicas de humanos como indivíduos. Cada humano tem sentimentos, gostos e peculiaridades distintivos, os quais ele deveria ser livre para expressar e explorar, contanto que com isso não fira os de outrem. Da mesma forma, nacionalistas do século XIX, como Giuseppe Mazzini, celebraram a singularidade de nações individuais. Enfatizaram o fato de que muitas experiências humanas são comunitárias. Não se pode dançar a polca sozinho, não se pode inventar e preservar a língua alemã sozinho. Usando a palavra, a dança, a comida e a bebida, cada nação promove experiências diferenciadas em seus membros e desenvolve suas sensibilidades peculiares.
Nacionalistas liberais como Mazzini buscaram proteger essas experiências nacionais distintivas da opressão e da obliteração impostas por impérios intolerantes e vislumbraram uma comunidade pacífica de nações, cada uma livre para expressar e explorar seus sentimentos comunitários sem ferir os de seus vizinhos. Essa é ainda a ideologia oficial da União Europeia, cuja Constituição de 2004 declara que a Europa está “unida na diversidade” e que os diferentes povos do continente permanecem “orgulhosos de suas identidades nacionais”. O valor da preservação das experiências comunitárias exclusivas da nação alemã faculta a que alemães liberais se oponham à abertura das comportas da imigração.
A aliança com o nacionalismo dificilmente resolveu todas as charadas e ao mesmo tempo criou uma série de novos problemas. Como comparar o valor de experiências comunitárias com o de experiências individuais? Será que a preservação da polca, do salsichão e da língua alemã justifica deixar milhões de refugiados expostos à pobreza e até à morte? E o que acontece quando dentro das nações eclodem conflitos fundamentais quanto à própria definição de sua identidade, como aconteceu na Alemanha em 1933, nos Estados Unidos em 1861, na Espanha em 1936 ou no Egito em 2011? Nesses casos, realizar eleições democráticas dificilmente será uma panaceia para a cura, porque as partes que se contrapõem não terão motivo para respeitar resultados que lhes sejam desfavoráveis.
Por fim, se você dança a polca nacionalista, um pequeno porém significativo passo pode levá-lo da crença de que sua nação é diferente de todas as outras à crença de que sua nação é melhor. O nacionalismo liberal do século XIX exigiu que os impérios Habsburgo e tsarista respeitassem as experiências específicas dos alemães, italianos, poloneses e eslovenos. O ultranacionalismo do século XX acarretou uma onda de guerras de conquistas e construiu campos de concentração para pessoas que dançavam ao som de outra melodia.

Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã

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