Até
agora discutimos o humanismo como se fosse uma visão única e
coerente do mundo. Na verdade, o humanismo compartilha a sina de toda
religião bem-sucedida, como o cristianismo e o budismo. Ao se
espraiar e evoluir, fragmenta-se em diversas seitas conflitantes.
Todas as seitas humanistas acreditam que a experiência humana é a
fonte suprema da autoridade e do significado, mas elas interpretam a
experiência humana de maneiras diferentes.
O
humanismo divide-se em três ramos principais. O ramo ortodoxo afirma
que todo ser humano é um indivíduo único possuidor de uma voz
interior que o distingue e de uma sequência irreproduzível de
experiências. Cada ser humano é um raio de luz singular, que
ilumina o mundo de uma perspectiva diferente e que acrescenta
colorido, profundidade e significado ao Universo. Por essa razão,
devemos dar a máxima liberdade a cada indivíduo a fim de que
experimente o mundo, siga sua voz interior e expresse sua verdade
mais íntima. Seja na política, seja na economia ou na arte, a livre
vontade individual deveria ter muito mais peso do que interesses de
Estado ou doutrinas religiosas. Quanto mais liberdade as pessoas
usufruírem, mais belo, rico e cheio de significado será o mundo.
Devido a essa ênfase na liberdade, o ramo ortodoxo do humanismo é
conhecido como “humanismo liberal” ou simplesmente “liberalismo”.
A
política liberal acredita que o eleitor é quem sabe o que é
melhor. Para a arte liberal, a beleza está no olho do observador. A
economia liberal afirma que o cliente sempre tem razão. A ética
liberal nos aconselha que, se algo faz com que nos sintamos bem,
devemos ir em frente e fazê-lo. A educação liberal nos ensina a
pensar por nós mesmos, porque é dentro de nós que vamos encontrar
todas as respostas.
Durante
os séculos XIX e XX, à medida que ganhava crescente credibilidade
social e poder político, o humanismo fazia brotar duas ramificações
muito diferentes: o humanismo socialista, que abrangia uma série de
movimentos socialistas e comunistas, e o humanismo evolucionário,
cujos mais famosos defensores foram os nazistas. As duas ramificações
concordavam com o liberalismo na ideia de que a experiência humana é
definitivamente a fonte do significado e da autoridade. Nenhuma delas
acreditava em um poder transcendente ou em um livro de lei divina.
Se, por exemplo, você perguntasse a Karl Marx o que havia de errado
no fato de crianças com dez anos de idade cumprirem turnos de doze
horas de trabalho em fábricas enfumaçadas, ele responderia que isso
fazia com que elas se sentissem mal. Deveríamos evitar a exploração,
a opressão e a desigualdade não porque Deus assim falou, mas porque
elas tornam as pessoas infelizes.
Contudo,
tanto socialistas como humanistas evolutivos ressaltaram que o
entendimento liberal da experiência humana é falho. Os liberais
pensam que a experiência humana é um fenômeno individual. Mas há
muitos indivíduos no mundo, e eles frequentemente sentem coisas
diferentes e têm vontades contraditórias. Se toda autoridade e todo
significado emanam das experiências individuais, como conciliar as
contradições entre experiências tão diferentes?
Em
17 de julho de 2015, a chanceler alemã Angela Merkel foi confrontada
por uma adolescente palestina refugiada do Líbano, cuja família
pedira asilo na Alemanha mas cuja deportação era iminente. A
garota, Reem, disse a Merkel num alemão fluente: “É realmente
muito difícil ver como outras pessoas podiam aproveitar a vida,
enquanto eu mesma não posso. Não sei o que o futuro me trará”.
Merkel respondeu que a “política pode ser dura” e explicou que
há centenas de milhares de refugiados palestinos no Líbano e que a
Alemanha não pode absorvê-los todos. Aturdida com essa resposta
pragmática, Reem começou a chorar. Merkel acariciou as costas da
menina, porém manteve sua posição.
Na
tempestade política subsequente, muitos acusaram Merkel de
insensibilidade. Para amenizar as críticas, a chanceler mudou sua
postura, e Reem e sua família conseguiram asilo. Nos meses
seguintes, Merkel abriu ainda mais as portas, ao receber na Alemanha
centenas de milhares de refugiados. Mas não se pode satisfazer a
todos. Logo ela estava sob ataque cerrado por ter se rendido ao
sentimentalismo e por não ter adotado uma posição firme. Muitos
pais alemães ficaram temerosos com a possibilidade de essa guinada
de Merkel significar que seus filhos teriam um padrão de vida
inferior e talvez acarretar uma onda de islamização. Por que
deveriam arriscar a paz e a prosperidade de suas famílias para
favorecer completos estranhos que poderiam nem mesmo acreditar nos
valores do liberalismo? Todos tinham sentimentos muito fortes quanto
a essa questão. Como conciliar as contradições entre os
sentimentos de refugiados desesperados e os de alemães angustiados?8
Os
liberais passam o tempo todo pela agonia dessas contradições. Os
melhores esforços de Locke, Jefferson, Mill e seus colegas não
conseguiram uma solução rápida e fácil para esses enigmas.
Organizar uma votação democrática não seria de grande ajuda
porque a questão seria então quem deveria participar da votação —
apenas cidadãos alemães, ou também os milhões de asiáticos e
africanos que querem imigrar para a Alemanha? Por que privilegiar os
sentimentos de um grupo em relação aos de outro? Da mesma forma,
não se pode resolver o conflito árabe-israelense fazendo com que 8
milhões de cidadãos israelenses e 350 milhões de cidadãos da Liga
Árabe votem. Por razões óbvias, os israelenses não se sentiriam
comprometidos com o resultado de tal plebiscito.
As
pessoas só se sentem ligadas a eleições democráticas quando
compartilham uma ligação básica com a maioria dos eleitores. Se a
experiência de outros votantes me é estranha, e se eu acredito que
eles não compreendem meus sentimentos e não se importam com meus
interesses vitais, então, mesmo se eu perder o voto numa razão de
um para cem, não tenho motivos para aceitar o veredicto. Eleições
democráticas em geral funcionam somente em populações que têm
alguma ligação comum anterior, tal como crenças religiosas e mitos
nacionais compartilhados. Elas constituem um método de resolver
desacordos entre pessoas que já concordam quanto ao básico.
Em
conformidade com isso, em muitos casos o liberalismo fundiu-se com
identidades coletivas e sentimentos tribais muito antigos para formar
o nacionalismo moderno. Hoje em dia muitos associam o nacionalismo
com forças antiliberais, mas pelo menos durante o século XIX o
nacionalismo foi um aliado muito próximo do liberalismo. Os liberais
celebram as experiências únicas de humanos como indivíduos. Cada
humano tem sentimentos, gostos e peculiaridades distintivos, os quais
ele deveria ser livre para expressar e explorar, contanto que com
isso não fira os de outrem. Da mesma forma, nacionalistas do século
XIX, como Giuseppe Mazzini, celebraram a singularidade de nações
individuais. Enfatizaram o fato de que muitas experiências humanas
são comunitárias. Não se pode dançar a polca sozinho, não se
pode inventar e preservar a língua alemã sozinho. Usando a palavra,
a dança, a comida e a bebida, cada nação promove experiências
diferenciadas em seus membros e desenvolve suas sensibilidades
peculiares.
Nacionalistas
liberais como Mazzini buscaram proteger essas experiências nacionais
distintivas da opressão e da obliteração impostas por impérios
intolerantes e vislumbraram uma comunidade pacífica de nações,
cada uma livre para expressar e explorar seus sentimentos
comunitários sem ferir os de seus vizinhos. Essa é ainda a
ideologia oficial da União Europeia, cuja Constituição de 2004
declara que a Europa está “unida na diversidade” e que os
diferentes povos do continente permanecem “orgulhosos de suas
identidades nacionais”. O valor da preservação das experiências
comunitárias exclusivas da nação alemã faculta a que alemães
liberais se oponham à abertura das comportas da imigração.
A
aliança com o nacionalismo dificilmente resolveu todas as charadas e
ao mesmo tempo criou uma série de novos problemas. Como comparar o
valor de experiências comunitárias com o de experiências
individuais? Será que a preservação da polca, do salsichão e da
língua alemã justifica deixar milhões de refugiados expostos à
pobreza e até à morte? E o que acontece quando dentro das nações
eclodem conflitos fundamentais quanto à própria definição de sua
identidade, como aconteceu na Alemanha em 1933, nos Estados Unidos em
1861, na Espanha em 1936 ou no Egito em 2011? Nesses casos, realizar
eleições democráticas dificilmente será uma panaceia para a cura,
porque as partes que se contrapõem não terão motivo para respeitar
resultados que lhes sejam desfavoráveis.
Por
fim, se você dança a polca nacionalista, um pequeno porém
significativo passo pode levá-lo da crença de que sua nação é
diferente de todas as outras à crença de que sua nação é melhor.
O nacionalismo liberal do século XIX exigiu que os impérios
Habsburgo e tsarista respeitassem as experiências específicas dos
alemães, italianos, poloneses e eslovenos. O ultranacionalismo do
século XX acarretou uma onda de guerras de conquistas e construiu
campos de concentração para pessoas que dançavam ao som de outra
melodia.
Yuval Noah Harari, in Homo Deus: Uma breve história do amanhã
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