quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Torto Arado | 18

Donana temeu muitas vezes que adentrassem sua porta para dizer que haviam encontrado o filho morto. Meu pai sumiu sem deixar rastros e já tinham se passado muitos dias desde que minha avó havia chegado à casa e encontrado a porta arrebentada.
Foi difícil continuar a roçar naqueles dias. Minha avó encerrava o trabalho e espalhava os outros filhos pelas veredas na estrada, para procurarem pelo irmão. Ela própria avançava na mata com o facão, abrindo picadas, chamando por Zeca – José Alcino, quando queria repetir seu nome todo – ou prendendo a respiração, para que do seu silêncio viesse uma mensagem de onde se encontrava. Voltavam a se encontrar à noite, em casa, à luz de vela e lampião, para dizer que viram pegadas próximo à margem do rio, ou que uma mulher na lonjura das cercas da fazenda havia dito que viu Zeca, que não tinha certeza porque já não enxergava muito bem, mas, se não estava enganada, era ele andando feito doido. Ou que alguns haviam dito que tinha onça agitada na mata, por onde poderia estar escondido. Ou que tinham roubado ovos e frutas nos seus quintais ou tinha sumido roupa no varal.
O tempo parecia não se movimentar naqueles dias, as notícias chegavam de forma lenta. O sol não fazia o caminho nos mesmos passos no céu e a noite parecia longa. Foi quando um dos meninos de Donana chegou correndo em casa dizendo que um vaqueiro da Fazenda Piedade, a muitas léguas de distância, avistou um homem jovem, preto, sem roupas que lhe tapassem a vergonha, vivendo num pé de jatobá no meio da mata, nos limites com outra fazenda que não sabia o nome. Minha avó deixou Carmelita com as crianças menores, avisou ao capataz que precisava saber se era o filho e rumou com os maiores para o tal lugar. Levou farinha, rapadura e beiju para matar a fome das crianças. Não sabia por quanto tempo caminharia.
Seguiram pela estrada até chegar à Piedade. O vaqueiro disse que já tinha alguns dias que não via o homem, mas “aquilo não era coisa certa não, dona, ele dorme no pé de jatobá e junto de uma onça mansa, que não faz mal a ele”. A onça, disse, parecia estar enfeitiçada porque o rondava e protegia como se cria fosse. O homem não falava, ficava em silêncio, encolhido naquele canto. A mesma onça que Donana mais tarde viu nos olhos de Fusco.
Minha avó pedia também um pouco de farinha para alimentar as crianças quando nas suas andanças encontrava alguém usando uma casa de preparo. Acampou com os meninos perto do pé de jatobá. Colheu frutos caídos. Colheu a semente de jatobá para fazer beiju. O beiju que matou a fome de seus ancestrais e mataria a fome de sua descendência. Mal dormia sob a palhoça que ergueu para abrigar os filhos do sereno, temerosa das histórias sobre a onça.
Numa das madrugadas de vigília, ouviu um sacudir de folhas não muito distante, indicando que o filho poderia estar à espreita. Donana se ergueu da esteira, chamou o maior dos meninos, todos dormiam, e deixou que o som a guiasse pelas trilhas da mata. Avistou barreiro e vagalumes em grande quantidade se movimentando em alvoroço próximo a um espelho d’água. Um animal apoiado nas quatro patas bebia água afundando a cabeça na lama. Mas, à medida que a noite se dissipava, minha avó percebeu que aquele animal selvagem apoiado nos quatro membros era o filho desaparecido há meses. Chamou por “José Alcino”, “Zeca”, mas ele desapareceu se embrenhando pela parte mais fechada da caatinga, se arrastando entre espinhos e galhos secos. Donana, que aprendeu a andar devagarinho, sem assustar capataz e vizinho, que roçava com a força que muitos homens não teriam para roçar, se embrenhou na mata e encontrou Zeca de olhos arregalados, mostrando os dentes, acuado. Donana fez reza, pediu licença aos encantados da mata e laçou o filho, como se laçasse um bezerro para derrubá-lo. Seu corpo nu e sujo estava coberto de grandes feridas. Seu cheiro era mais forte que o cheiro de um caititu. Cobriu sua nudez com uma manta, amarrou suas mãos com força enquanto ele gritava e chamou os meninos para rumarem juntos para Caxangá. Deixou palhoça sem derrubar e sobras de beiju de jatobá.
No meio do caminho estava a casa do compadre João do Lajedo. “Ele que carrega o meu fardo”, disse quando o velho abriu a porta, “ele leva por mim porque fui desobediente, não me dobrei. Resisti. Os santos me castigaram”. Os vizinhos do velho João do Lajedo se aproximaram porque Zeca gritava acuado, ganindo como um cão querendo fugir. “Cura meu filho, compadre. Cura meu filho. E se tiver de ser ele o curador que levará meu carrego, então que seja”, disse, dando as costas e seguindo com as crianças para casa.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

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