quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Peças que não se encaixam

Talvez você tenha reparado que nossa narrativa se concentrou de forma quase obsessiva num único complexo pré-histórico brasileiro. Em parte, este escriba escolheu esse caminho porque o interior mineiro é, de longe, o lugar que traz mais informações diretas sobre os primeiros brasileiros (dezenas de restos de seus corpos, para começo de conversa). Também resolvi me concentrar nos dados que são mais ou menos consensuais. O principal deles é a chegada dos primeiros americanos via Beríngia, pouco antes do final da Era do Gelo, como vimos. Não posso me despedir desta fase de nossa história sem ao menos mencionar algumas peças de formato intrigante que são ainda mais difíceis de encaixar no quebra-cabeças do que a morfologia peculiar de Luzia e companhia.
A mais importante dessas peças envolve, muito provavelmente, os dados que têm sido obtidos há décadas pela equipe da arqueóloga franco-brasileira Niède Guidon, da Fumdham (Fundação Museu do Homem Americano), no Parque Nacional Serra da Capivara, no Piauí. Guidon e seus colaboradores estudaram tanto restos humanos quanto artefatos nos abrigos rochosos da caatinga, além de registrar e catalogar a arte rupestre fabulosa produzida pelos habitantes pré-históricos da região, com recriações estilizadas da fauna, de danças, cenas de caça, de combate e de sexo. Não restam dúvidas de que a ocupação humana na área do parque é muito antiga, possivelmente rivalizando com os demais sítios arqueológicos mais antigos do Brasil e da América do Sul. O problema é determinar até onde vai essa antiguidade. Com base em datações indiretas de instrumentos de pedra, a equipe da fundação, em colaboração com colegas europeus, já propôs diversas vezes que a chegada do ser humano à Serra da Capivara remontaria a dezenas de milhares de anos atrás — talvez 50 mil anos, ou mesmo antes.
A comunidade científica internacional ainda reluta muito em dar seu aval a essas datas muito remotas. Em parte, os motivos são técnicos: os instrumentos de pedra mais antigos possuem aparência tão rudimentar que não é fácil distingui-los de seixos alterados por forças naturais (como fenômenos erosivos ou simples quedas de barrancos, por exemplo). Além disso, a associação entre datas de carbono-14 (obtidas de carvão que pode proceder de fogueiras ou de incêndios naturais) e supostas ferramentas também é, para muita gente, meio dúbia. Além desses fatores, há a dificuldade de conciliar uma chegada tão antiga da nossa espécie ao continente com os fatores já conhecidos a respeito de sua expansão inicial no Velho Mundo. Daria mesmo tempo de chegar aqui há 50 mil anos? E quanto à ligação clara dos habitantes atuais do continente com a Beríngia e a Sibéria?
A equipe de Guidon tem avançado na tentativa de substanciar sua defesa das datas mais antigas. Um trabalho recente na revista científica Antiquity fez uma análise detalhada do padrão de desgaste de artefatos com idade estimada em 20 mil anos (bem menos do que a datação máxima na região, mas significativamente mais antigos que os de Monte Verde, hoje os mais velhos das Américas), sugerindo que esse desgaste só poderia ter acontecido durante tarefas como cortar carne ou desbastar madeira. Em outras palavras, só ocorreria se tais artefatos fossem mesmo instrumentos de pedra usados por gente como eu e você. O trabalho recebeu elogios cautelosos de Tom Dillehay, o americano que coordenou os trabalhos em Monte Verde — mas ele o considera um primeiro passo, e não uma confirmação definitiva. Por enquanto, portanto, é preciso esperar antes de coroar a Serra da Capivara como o marco zero da nossa espécie no continente.
O último fragmento misterioso de evidências sobre as origens dos primeiros americanos nos faz voltar à genética. O responsável pelas análises é Sergio Danilo Pena, da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que conseguiu extrair DNA de crânios de botocudos, designação genérica de grupos indígenas de língua jê do interior de Minas Gerais que foram alguns dos inimigos mais renitentes dos invasores europeus até serem subjugados por ordem de Dom João VI no começo do século XIX. Após analisar o DNA de 14 dos crânios, Pena identificou em dois deles marcadores típicos das populações da Polinésia. Seria um reforço à tese de Neves ou um indício, ainda mais maluco, de que habitantes das ilhas do Pacífico atravessaram o oceano e chegaram até aqui depois do povoamento inicial do continente? O próprio grupo do bioantropólogo da USP, ao analisar as características cranianas dos famigerados botocudos, afirma ter encontrado afinidades entre eles e o povo de Luzia. Por outro lado, muita gente estranhou os resultados das análises de Pena, e não se pode descartar a possibilidade de um erro de classificação no museu onde os ossos se encontravam — crânios polinésios etiquetados como de botocudos, por exemplo. De novo, ainda é cedo para ter certeza.

Reinaldo José Lopes, in 1499: O Brasil antes de Cabral

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