quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Maria-Fumaça

Por que lhe deram esse nome de maria-fumaça não sei. Nome de mulher, Maria. Certamente quem assim a batizou deveria ser casado com uma Maria que tinha fogo nas entranhas.
Por mais que eu explique, quem não ouviu o seu apito rouco no meio da noite não entenderá. O apito rouco de uma maria-fumaça é um punhal que atravessa a alma. Mas isso é coisa que está além das palavras. É preciso ter ouvido para entender. Os poetas bem que tentam. Pode ser que coisa dita não seja entendida, mas o sentimento que mora nos vãos das palavras, esse sentimento é sentido. A Adélia sentiu: “Um trem de ferro é uma coisa mecânica mas atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessou minha vida, virou só sentimento”. Mário Quintana sentiu: “Nasci na Era da Fumaça trenzinho vagaroso com vagarosas paradas em cada estaçãozinha pobre para comprar pastéis, pés-de-moleque, sonhos — principalmente sonhos...” .
A maria-fumaça faz sofrer aqueles que dela se lembram. Agora ela é só saudade de um tempo, o tempo quando o seu apito era um choro solitário no meio da noite. As noites de antigamente choravam. Agora os barulhos da noite são outros. O Milton sentiu: “Maria-fumaça já não canta mais para nossas casas, praças e quintais”.
O apito rouco da locomotiva era um grito de despedida. Ela sabia... Apito triste. Pode um apito ser triste? “Não há nada mais triste que o grito de um trem no silêncio noturno”, disse Mário Quintana. “É a queixa de um estranho animal perdido, único sobrevivente de alguma espécie extinta, e que corre, corre, desesperado, noite afora, como para escapar à sua orfandade e solidão de monstro...” O apito começa grave e ia oitavando em gritos finos. Olhando para o porto, Fernando Pessoa escreveu: “Todo cais é uma saudade de pedra”. Digo eu: “Toda maria-fumaça é uma saudade de ferro e fogo”.
Pena que Villa-Lobos, de cuja música eu muito gosto, não tenha entendido. Fez uma música sobre o trem e deu a ela o nome de “O trenzinho do caipira”. Mas não era “trenzinho”. Era enorme, negro, imponente, assustador. Depois, não era do caipira. Era de todo mundo.
Manoel de Barros louvou “as latrinas desprezadas que servem para ter grilos dentro” porque “elas podem um dia milagrar violetas”. Pois eu louvo as marias-fumaça abandonadas — elas podem um dia milagrar sabedoria. A maria-fumaça ensina a sabedoria de Minas.
Meu pai, viajante, ficava feliz só de estar viajando, sem pensar no destino. Ia baforando o seu cachimbo, olhando para fora e imaginando grandes coisas que nunca aconteceriam. Ele se alimentava dos seus sonhos. Depois dormia embalado pelo sacolejo do trem.

Rubem Alves, in O velho que acordou menino

Um comentário:

  1. Boa noite. Lamentando só agora ter tomado conhecimento da "RAPADURA CULT". Parabenizo pela página. FERROVIA É A ESTRADA DOS SONHOS, As coisas do passado tem gosto de saudade. Viagem de trem... Gostinho de lembranças! GRATIDÃO PELO SEU REGISTRO SEMPRE.

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