quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Encontro com Elisa

Para se abrigar da chuva, o herói entrou no botequim e, entre dois conhaques, admirava-se de relance no espelho. Seguindo a indicação do garçom, afastou a cortina viscosa de franja, atravessou a cozinha, saiu no quintal: a primeira porta à direita.
De volta, deparou à porta com a mulher embalando uma criança no colo. Ia passar, quando ela falou:
Seu mascarado, hein?
Rosto na sombra, de costas para a luz, quem seria?
Poxa, Elisa! Que fazendo aqui? Está mais gorda.
E pensou: De quantos meses, hein?
Eu cumprimento. O senhor nem olha, não é?
Desculpe. Não ouvi.
Havia meses trabalhava no botequim. Louca por voltar, e o dinheiro da passagem? Saudosa do filhinho que deixou com a mãe.
Um senhor me convidou. Fazer vida com ele em Curitiba.
Você dá o filho para sua mãe. E cuida de outro?
O bebê entendeu, abriu o berreiro.
Espere aí. Vou pôr na cama.
Elisa cobriu a criança, atravessou correndo o pátio. Cruzou por ela uma menina de uns nove anos, sem se apressar na chuva. Passou de cabeça baixa por Nelsinho, entrou na cozinha.
A bruta fera que, embora domesticada, lambendo a mão ferida do dono, não resiste ao grito do sangue: Elisa vinha para ele, olhava duro e sem piedade.
Como vai de amores?
Ninguém me quer.
Atraiu-a pelo braço e beijou-a. Elisa tinha um dente partido, onde a pontinha da língua foi se alojar. A mão empolgava o seio da moça ofegante.
Só por que eu disse que ninguém me quer? Olhava sem responder, já não tinha voz. Ela foi ver se havia alguém na cozinha.
Nelsinho observou ao lado da casa mesas e bancos ao ar livre, engradados de garrafas vazias.
A um canto, a mesa escondida pelo biombo. E a cabeça louca trabalhando: Onde é que vai ser? Enxugou o óculo na camisa.
Assim que a bela voltou, agarrou-a debaixo da garoa.
Vamos sentar, meu bem.
Não vê que o banco está molhado?
Então ache um lugar.
Frias réstias por entre as frinchas de duas janelas iluminavam as poças. Elisa descobriu um saco enxuto de estopa. Esfregou-o com força no banco, sentaram-se atrás do biombo. Ele desabotoou-lhe a blusa, fez saltar o seio. A garoa umedecia a nuca e a moça arrepiava-lhe os cabelos com dedo gorduroso.
Podem dar pela minha falta.
A que hora você sai?
Moro aqui, seu bobo.
Em desespero o herói roía as unhas.
A criança dormindo. Lá no quarto?
Engraçadinho. E minha filha?
Que filha?
Ora, a que passou por aqui.
Não sabia.
Acho que ela desconfiou. Preciso entrar, volto logo.
Quanto tempo?
Dez minutos.
O rapaz mordia-lhe a pontinha da orelha.
Paciência, meu amor.
Elisa fechou a blusa, mas não se ergueu. Tanto o marido a fizera infeliz, depois abrira asas. A falta do filho, obrigada a deixá-lo com a mãe: ele chorava muito, era despedida. Quem dera alguém a levasse para Curitiba. Nem carecia levar, bastava pagar a passagem, dela e da filha.
Olhe para lá.
Nelsinho virou o rosto, ela saiu correndo. Ficou só onde é que podia ser? Entre as pilhas de engradados lugar para duas pessoas em pé – ao abrigo, apesar da lama.
O clarão de uma vela no pátio. Alguém que buscava uma bebida qualquer? Encolheu-se atrás das caixas. A menina – era a menina – passou, a mão em concha defendendo a vela do vento. Sondou entre as mesas, foi até o portão e voltou – sem apanhar garrafa nenhuma. Nelsinho girava à medida que ela avançava ou se afastava.
Tão assustado, mordeu os berros do coração. Não conseguiu abrir o portão: encurralado. Entre o muro e a casa dois varais de pontas ameaçadoras. Ia ver o que era e novamente a luz da vela.
Desta vez a menina dava a mão a uma mulher, seria a patroa? Em pânico, o herói desejou sumir na lama. Quem olhasse, enxergaria apenas uma barata, encolhida sob o pé que a vai esmagar. Colou-se ao muro, invisível pelo milagre do seu delírio.
Deixou-se ficar, a perna direita dobrada, com o pé na parede, sem voltar a cabeça. Ela vê que estou bem vestido, sou rapaz de família. Imóvel, debaixo da garoa, enquanto as duas iam e vinham, espiando entre as pilhas de garrafas. A vela iluminava todo o terreno, não podiam deixar de vê-lo – a não ser que a mão do Senhor lhes apagasse os olhos. Fixando duro em frente podia distinguir, ao clarão da vela, que as duas varas eram os pés de um carrinho, voltado contra a parede.
Nem um reflexo bulia no óculo, agachou-se no canto escuro, chorou baixinho - ah, com essa eu não contava. Deus do céu, foi a última vez: gotas de vergonha escorriam do queixo na preciosa gravata de bolinha.
Ouviu o chinelinho, mais que depressa enxugou os olhos. A bela não o descobriu no esconderijo até que ele se ergueu.
O que está fazendo aí?
Puxa, veio um mundo de gente.
Quem é que veio? Alguém te viu?
Tua filha e uma velha desgraçada. Acho que tua patroa.
Ela te viu ou não?
É bem capaz.
Pobrezinho. O coração pulando... Sai da chuva, amor.
Outra vez procurando um lugar. Abraçados cambalearam afundando os pés na poça. Debaixo do beirai, ela coube entre os pés do carrinho sem a roda. A ponta da língua rolou no céu da boca, recolheu-se na falha do dente.
Depois de se pentear, Nelsinho ajeitou a onda na testa.
Por onde eu saio? Ele na frente, ela atrás.
Fechado.
Sei abrir.
O herói assobiava todo lampeiro. Elisa gritou aflita:
Quando te vejo? Acudiu sem se voltar:
Em Curitiba.

Dalton Trevisan, in O vampiro de Curitiba

Nenhum comentário:

Postar um comentário