sexta-feira, 30 de abril de 2021

Tudo sobre minha irmã

Acordei, olhei para o celular: mensagem dela, rindo. Postei um negócio nas redes sociais ontem e ninguém entendeu direito, só ela. E eu amanheci sorrindo porque ela entendeu. Porque ela sempre entende. Porque ela existe. Porque eu sei que enquanto houver ela, sempre haverá alguém que entenda.
Ela é muito diferente de mim. Uma fala pelos cotovelos, pelos joelhos, pelos calcanhares e a outra raramente pronuncia uma sequência maior do que quatro palavras em série. Uma penteia o cabelo três vezes por hora, a outra nem sabe a cor da própria escova. Uma é profissional exemplar, técnica, objetiva, a outra se atrapalha com os e-mails, tem medo de se impor, pede socorro.
Ela é muito igual a mim. A sobrancelha tão cheia de falhas. A dependência dos óculos. O ódio por salto fino. O jeito sorridente de olhar para a vida. A firmeza, sin perder la ternura jamás. A capacidade de dizer o que precisa ser dito na hora certa, por mais difícil que isso possa ser. A capacidade de reconhecer que as nossas falhas não moram só nas sobrancelhas.
Olho para trás e é mesmo incrível: nosso amor sobreviveu a uma quantidade inacreditável de pancadarias. As brigas pelos bombons da caixa azul de especialidades Nestlé. O “Vai tomar banho você primeiro – Não, você primeiro – Não, você vai primeiro porque eu falei primeiro”. As canetas coloridas desaparecidas semeando a discórdia. As disputas por quem iria no banco da frente. Sobre o que tocaria no rádio. Sobre quem deixou o copo em cima do móvel. As polêmicas sobre os sapatos e brincos roubados na sexta à noite.
Foi ela que falou “Para de sair com esse cara que ele é um babaca” e eu respondi “Cala a boca, você nem conhece ele”. E depois que o tempo passava… É claro que ela tinha razão. Ela sempre vê tudo o que eu não consigo ver. Fui eu quem sempre disse “Não faz isso que a mamãe vai ficar brava – Vai nada” e vinha a mamãe e ficava louca da vida. E as duas ouviam o sermão juntas, cúmplices, caladas. Hoje, adultas, continua igualzinho.
Foi ela que sempre esteve. Quando eu caí de boca do balanço. Quando arrumei encrenca com uns grandalhões na escola. Quando passei no vestibular. Quando tomei um pé na bunda e fui pro fundo do poço. Fui eu que sempre estive. Quando ela enfiou o joelho em uns pregos. Quando ela ficou em recuperação em história pela quarta vez. Quando ela começou no primeiro emprego. Quando ela teve a primeira contração para dar à luz.
É ela que conhece minha história toda. Às vezes até mais do que eu mesma conheço. Sou eu que conheço a dela, até naquelas partezinhas que nem ela lembra. É ela que sabe me dizer o que preciso fazer quando me desespero. Sou eu que sei dizer como o cabelo dela fica melhor. E mesmo que ela nunca me obedeça, eu continuarei dizendo.
É o cheiro dela que é o cheiro da minha casa em qualquer lugar do mundo. É o meu abraço que é a certeza que ela pode ter a qualquer tempo. É pra ela que eu posso falar um monte de coisa sem pensar. É comigo que ela pode fazer grosseria sem que eu a ame menos por isso.
É ela, minha companheira através do tempo. Que sempre esteve de mãos dadas comigo mesmo quando a distância achava que não ia permitir. A gente ri da distância. A gente ri do tempo e das dores do passado. É ela que me defende que nem bicho. É por ela que eu rosno, eu mordo e avanço. É para ela que eu olho. É ela que olha por mim. É ela. Sou eu. Somos duas. Somos uma. Somos, sempre fomos, sempre seremos.

Ruth Manus, in Um dia ainda vamos rir de tudo isso

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