quinta-feira, 29 de abril de 2021

Torto Arado / 15

Belonísia me encontrou dobrando algumas peças de roupa e guardando na mala que pertenceu a nossa avó. Vi seus olhos surpresos com a descoberta e não fui capaz de comunicar nada sobre o que estava fazendo. Nem ela. Seu olhar era inquisidor, árido como o tempo que nos cercava, e minha vergonha era suficiente para que sequer tentasse justificar o que fazia. Chorei depois que minha irmã saiu, porque tinha a certeza de que estava contribuindo para seu sofrimento. Estava tendo encontros com nosso primo, talvez ela já desconfiasse da gravidez, mas além de tudo isso, eu era sua irmã – não tínhamos segredos, ou ao menos evitávamos ter – e havia me encerrado em meu mundo naquelas últimas semanas, esquecendo-me da família e dela, principalmente, que parecia cada vez mais distante.
Não suportei recordar seu olhar, chorei distante de casa, não poderia mais continuar com a ideia de deixar Água Negra, precisava dizer a Severo que queria continuar a viver na fazenda, que enfrentaríamos nossos pais, que no fim tudo daria certo. Construiríamos nossa casa perto da casa de tio Servó e tia Hermelina. Era assim que deveria ser quando dois jovens se uniam; construíam sua casa no terreiro da casa dos pais, havia uma comunicação e a espera de uma espécie de consentimento por parte do gerente da fazenda para que começassem a erguê-la. Faríamos nossa casa como todas as outras, com o barro das várzeas, com as forquilhas que forjávamos das matas. Cobriríamos com o junco que tomou conta do leito do Utinga com a grande seca. Quando estivéssemos estabelecidos poderíamos planejar a nossa partida, ir atrás dos sonhos de Severo, que passaram a ser meus também. Não queria também viver o resto da vida ali, ter a vida de meus pais. Se algo acontecesse a eles, não teríamos direito à casa, nem mesmo à terra onde plantavam sua roça. Não teríamos direito a nada, sairíamos da fazenda carregando nossos poucos pertences. Se não pudéssemos trabalhar, seríamos convidados a deixar Água Negra, terra onde toda uma geração de filhos de trabalhadores havia nascido. Aquele sistema de exploração já estava claro para mim. Mas eu era muito nova e aquele não seria o momento, muito menos as circunstâncias adequadas para partir.
Puxei a mala de debaixo da cama e retirei tudo o que havia guardado. Não iria seguir a viagem com Severo, para um destino incerto, de fazenda em fazenda até chegar à cidade. Iria encontrá-lo naquele mesmo dia para dizer que falaria tudo aos meus pais e que permaneceríamos ali, juntos, se assim quisesse. Se quisesse deixar a fazenda, seguiria só sua vida, que se sentisse livre. Eu criaria a criança, não nos faltaria família. Não seria abandonada por meus pais. Eles eram rigorosos na nossa educação, mas até esse rigor tinha um limite. Terminariam por me ajudar, me acolheriam em casa, não haveria mágoa nem rancor. Até Belonísia se renderia ao sorriso do sobrinho e eu poderia dá-lo para que batizasse, o que significaria um gesto de aproximação e perdão pelas diferenças que haviam surgido entre nós nos últimos meses.
Havia também o que foi dito pela encantada de dona Miúda, a tal Santa Rita Pescadeira. Não me deixava impressionar pelos encantados, estava tão acostumada à sua presença que não me permitia envolver pelo mundo de obrigações e interditos da crença. A distância me protegia das bênçãos ou infortúnios, era o que esperava. Mas também não havia sido o acaso que me trouxera aquela mensagem. Ou se fosse o acaso, era fato que o que foi dito se endereçava a mim, e achava que apenas eu e Severo sabíamos. Permaneci no limite entre a crença e a descrença. Passei noites em claro, pensando no significado das palavras “vitória” e “derrota” e o que tudo aquilo poderia dizer sobre a viagem, sobre o filho, sobre minha vida com Severo. Minha ansiedade aumentou. Imaginava o porquê da encantada segurar meu braço e não o de dona Tonha que estava ao meu lado, ou o braço de Crispina de mãos dadas com o sobrinho e a irmã Crispiniana. Será que dona Miúda já havia me visto deitada com Severo no meio da mata? Sua casa não era muito próxima do lugar onde costumávamos nos encontrar, e ela parecia ser muito idosa para sair vagando pela mata e bisbilhotar dois jovens em momentos de afeto.
Encontrei Severo no mesmo lugar de sempre. A jaqueira fazia uma sombra rara, considerando a estiagem que se prolongava além do esperado. Comuniquei que havia começado a separar algumas roupas para nossa viagem, mas que Belonísia tinha me surpreendido. Gesticulei muito para expressar o quanto não estava segura da viagem. Para tentar fazê-lo compreender que eu era muito nova. Minhas mãos iam à cabeça e ao peito numa urgência que o deixou sobressaltado. Quis fazer com que soubesse que aquela fuga seria uma ruptura – e cruzei meus braços para depois separá-los – e a traição imperdoável por meus pais. Por tudo que eles haviam vivido, por tudo que fizeram por nós. Que não era certo com Tio Servó e tia Hermelina, da mesma forma. Que eles ficariam aflitos – levei a mão direita ao meu rosto – e que eu não sabia como cuidar de uma criança sem ter minha mãe por perto, apesar de ser a mais velha e de ter cuidado um pouco de todos os outros irmãos.
Severo apenas se aproximou e me acolheu em seus braços. Disse que era normal que estivesse aflita, mas que já se sentia homem e pronto para deixar a fazenda. Que não falaria de imediato aos pais porque enfrentaria resistência, mas que em breve, quando encontrasse pouso e trabalho, mandaria notícias e diria qual era o seu destino. Senti vontade de dizer que ele poderia ir só, que eu permaneceria ali, esperaria a criança nascer. Ficaria com meus pais, trabalharia em Água Negra. Quando ele estivesse estabelecido, iria encontrá-lo, com as bênçãos de Zeca e Salu. Mas me faltou coragem. Estava com o coração quebrantado com a iminência da separação, seja de Severo ou da minha família. Com muito sofrimento, nos despedimos sem decidir nossos destinos.
Na manhã seguinte, Sutério apareceu em nossa casa para dizer que meu pai precisava terminar o pequeno barramento que fazia no riacho. Que precisava organizar os trabalhadores para capinar e fazer a coivara, deixar a terra limpa, sempre, para quando a chuva chegasse. Entrou em nossa cozinha e perguntou onde havíamos colhido as batatas-doces. Meu pai respondeu que havíamos comprado na feira da cidade. Com que dinheiro, ele quis saber. Vendemos o resto de azeite de dendê que tínhamos fabricado, disse. Sutério pegou a maior parte da batata-doce com as duas mãos grandes que tinha e levou para a Rural que havia deixado em nossa porta. Pilhou também duas garrafas de dendê que guardávamos para fazer os peixes miúdos que pescávamos no rio. Lembrou a meu pai da terça parte que tinha que dar da produção do quintal. Mas as batatas não eram produção do quintal. Da terra seca não brotava nem pasto, muito menos batata. E a secura era tanta que nem as várzeas estavam sendo cultivadas. No leito do rio, onde não havia água, era possível encontrar uma lama que apodrecia as sementes, de onde também não brotava nada, apenas taboa para fazer esteira, sacola e teto de casa. Vi a vergonha de meu pai crescer em nossa frente, sem poder fazer nada. Zeca Chapéu Grande era um curador respeitado e conhecido além das cercas de Água Negra. Mas ali, nos limites da fazenda, sob o domínio da família Peixoto – que quase não colocava os pés por lá a não ser para dar ordens, pagar ao gerente e dizer que não poderíamos fazer casa de tijolo – e de Sutério, sua lealdade pela morada que havia recebido no passado, quando vagava por terra e trabalho, falava mais alto. Vi minha mãe se movimentar, seus olhos se injetaram indignados, mas se deteve ao perceber meu pai se sentindo incapaz de questionar e reclamar sobre qualquer coisa. Muito pelo contrário, ainda colaborava com sua liderança espiritual para a manutenção da ordem entre as famílias que moravam ali. Era a ele que Sutério ou qualquer um dos herdeiros se dirigia para pedir a intervenção em conflitos dos mais variados, desde animal comendo em roça alheia até construção levantada com material que descumprisse as interdições impostas aos moradores.
Não poderíamos feri-lo ainda mais em sua humilhação, pedindo que ele tomasse de volta as batatas-doces que havíamos adquirido com nosso trabalho na feira. Como foi longa aquela noite. Não dormi. A insônia havia se tornado companheira nas últimas semanas. Pensei nas palavras de Severo sobre a situação de nossas famílias na fazenda. Que a vida toda estaríamos submissos, sujeitos às humilhações, como a pilhagem do nosso alimento. Que eu tinha um papel nisso tudo, e que meus pais precisavam de mim para mudar de vida. Que poderíamos, sim, comprar nossa própria terra e vir buscá-los. Que só assim conseguiríamos ter uma vida digna.
Dei um jeito de encontrar Severo, mesmo sem ter combinado. Quando nos vimos, precisei apenas olhar para que ele soubesse que havia me decidido pela partida. Então planejamos o dia exato, a hora, até onde seguiríamos andando e de onde tentaríamos carona para deixar a Chapada Velha. Na madrugada da partida, a mala antiga de Donana estava arrumada, com a poeira espanada, para que eu pudesse levar o pouco que tinha para essa nova vida que despontava. Levantei enquanto dormiam, pedi a Deus pela saúde e vida de todos pelo tempo que passaria fora. Pedi que os encantados me ajudassem a não ser considerada uma desonra e que, quando retornasse com dinheiro, já estabelecida em nossa terra, para buscar nossas famílias, todos entendessem que aquela viagem havia sido por uma boa causa. Pedi a Deus, especialmente por Belonísia, que há pouco mais de dez anos compartilhou comigo o incidente que mudou de certa forma nossas vidas. Quando deixei a casa pela porta do quintal, no sereno da noite, não pude evitar de olhar para trás por algumas vezes, enquanto seguia pela estrada ao encontro de Severo. Enumerava as coisas que levava comigo e tudo que deixava para trás. Quase desisti nesse exato momento, deixaria Severo partir sozinho, mas a imagem de Sutério levando nosso pouco suprimento, e a fome e o improviso que se seguiram para fazermos a refeição mais tarde, me deram a firmeza necessária para prosseguir. Dentre as coisas que levava, e talvez a que mais me machucava, era a minha língua. Era a língua ferida que havia expressado em sons durante os últimos anos as palavras que Belonísia evitava dizer por vergonha dos ruídos estranhos que haviam substituído sua voz. Era a língua que a havia retirado de certa forma do mutismo que se impôs com o medo da rejeição e da zombaria das outras crianças. E que por inúmeras vezes a havia libertado da prisão que pode ser o silêncio.

Itamar Vieira Junior, in Torto Arado

Nenhum comentário:

Postar um comentário