quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

Fingimento de estar infeliz

          Para alimentar a saudade do meu primeiro amor, comia retratos, rezava sem fé, mastigava hóstia, subtraía-me, entregava-me às amoras e seus aromas. Não havia mundo lá fora. Só amor, dentro e fora de mim. Virei dois, como a mulher de duas almas que visitava a minha rua. Faltavam-me rédeas para frear meu amor. Ele me roubava para o fundo do quintal, afogava-me nos rios, transportava-me para os pastos, subia-me nos galhos das árvores, mesmo sem fruto para colher. Eu amava, ou melhor, por inteiro, eu só era amor.
        Tranquei minha boca, não por falta da palavra. A felicidade abraçava-me, embaraçava-se em meu corpo, salgava-me com o sal de sua saliva. A felicidade se escondia no porão da casa, e cabia a mim visitá-la. Ser feliz era estar em pecado, eu me culpava e negociava o fingimento de estar infeliz. Caminhar por sobre o pecado demandava muitas pernas. Mentir-me em tristeza preservava a felicidade que me assaltara, eu suspeitava.
Ela decapitava um tomate para cada refeição. Isso, depois de tomar do martelo e espancar, com a força dos seus músculos, os bifes. Sofrer amaciava, talvez ela pensasse. Batia forte tornando possível escutar o ruído na rua. O martelar violento avisava aos vizinhos que comeríamos carne no almoço. Eu padecia pelo medo do martelo e a violência da mulher ao açoitar a carne.
Depois, com o sal na ponta dos dedos, ela salgava os bifes, lentamente, dos dois lados, como o rio da cidade. O sal agia sobre a carne morta e uma água ensanguentada se empossava no fundo da travessa de louça. O gato da minha irmã suspirava diante da sangrenta água. Os bifes eram finos — magros como eu — pelo amargor dos espancamentos. Ao depois de muita tortura, a carne se transfigurava em pedaços de rendas esgarçadas.

Bartolomeu Campos de Queirós, in Vermelho Amargo

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