domingo, 27 de setembro de 2020

(3) Capítulo sobre qual é a necessidade do dotado de mérito em lisonjear os colaboradores do rei, contendo ainda admoestação ao inteligente para que não deixe a confiança no próprio mérito levá-lo a desprezar quem lhe é inferior

Disse-lhe o amigo: “Os sábios disseram: O amigo tem por obrigação aconselhar o amigo quando este lhe obedece, e ajudá-lo quando lhe desobedece. Eu já te aconselhei, e, se for mesmo imperioso me desobedecer, guarda minhas recomendações e fica sabendo que todas as pessoas vão ao encontro dos reis humilhando-se em excesso, considerando acertados os erros deles e concordando com as suas paixões. As posições das pessoas diante dos reis mudam de nível à medida que mudam os níveis dessas atitudes diante deles. Os dotados de mérito são os mais distantes de tais características, e os dotados de vício são delas os mais próximos, devendo-se a isso a existência, em sua corte e séquito, de grande número de viciosos, com os quais, acercando-se dos reis, tu serás obrigado a tratar e conviver, e pelos quais jamais deverás manifestar teu desprezo, devido ao que já sabes das débeis opiniões deles, pois entre as mais débeis criaturas estão os percevejos, os quais, reunidos, liquidam as feras mais potentes. Fica sabendo que todas as coisas têm o seu flagelo, e o flagelo do inteligente é ter de suportar o ignorante, tal como o diamante que tudo corta, mas ao qual o chumbo, posto a seu lado, reduz a migalhas; assim é o inteligente, a quem nada resiste, mas que, ao lado do ignorante, não lhe resiste. Se quiseres calar um inteligente, banca o ignorante diante dele. E fica sabendo que as principais questões são a lisonja e a modéstia. Já se disse: A boa alegria é evitar ninharias ao menor custo. E se disse: O modesto dentre os sábios é o que tem mais saber, tal como as terras baixas são as que contêm mais água. E disse certo sábio: Quem se coloca na posição de inteligente é colocado pelos outros na posição de ignorante, e quem fica consigo mesmo satisfeito carreará contra si a cólera de Deus e dos outros. Não julgues que os reis só tenham necessidade dos dotados de sagacidade e perspicácia: muitas vezes o jumento e o burro, os mais estúpidos dentre os animais, servem como montaria aos reis e são por eles dignificados, enquanto o macaco, que dos animais é o mais inteligente e perspicaz, é desprezado e humilhado, pois nem sempre as coisas do mundo correm por conta da sagacidade e da perspicácia, ou da inteligência e do conhecimento; para cada situação existe um modo de dizer, e para cada coisa há um lugar; algumas pessoas prestam-se à seriedade, e outras, à jocosidade, mediando entre ambas níveis diversos. A diversidade da sorte das pessoas perante os reis é como a diversidade da sorte dos alimentos perante as pessoas, pois às vezes o homem se entedia dos alimentos doces e suculentos, inclinando-se para os picantes e salgados, ainda que saiba que os primeiros são superiores aos segundos e mais benéficos que eles. Não obstante o doce seja mais agradável ao paladar, o salgado detém uma posição que dificilmente o fará ser dispensado em prol daquilo que tem sabor mais agradável. O homem se inclina para a cor que corresponde a seus humores, com a qual sua alma se deleita e que sua natureza aceita, mas o seu manter-se nisso provoca-lhe uma espécie de tédio que chega ao ponto de fazê-lo não se deleitar com essa cor senão depois que sua alma dela se esvazia. Este é o paradigma de quem — dentre os dotados de mérito, conhecimento, saber e sapiência — pretende que os reis se limitem à sua companhia. Fica sabendo que quem mais se vende perante os reis é aquele que mistura o sério ao jocoso, e a realização ao quase, pois o doce mais saboroso é aquele cujo sabor é contrastado com um pouco de pão, e todo o benéfico que ultrapassa os seus limites é nocivo para quem o utiliza: a dieta é benéfica, mas, exagerada, leva ao esgotamento; a luz do sol ilumina, mas, encarada longamente, danifica a visão; a água, na qual está a vida do ser humano, se for demasiada fá-lo-á afogar-se; o remédio, do qual o pouco é benéfico, e o muito, mortal; o alimento, que tomado em quantidade suficiente mantém a vida, mas que em excesso pode matar. Tal como o deslize do avaro se dá na parcimônia, o do pródigo se dá no desperdício; tal como o do ignaro se dá na pressa, o do sábio se dá na lentidão. Não entres na disputa pelas posições mais próximas ao rei, pois destarte serás um desses dois homens: ou alguém distante de seu coração, e nesse caso tua busca de proximidade te tornará mais desagradável ao rei e, logo, mais distante ainda dele; ou então alguém próximo ao coração do rei, e nesse caso terás como dever mínimo para servi-lo o procurar aproximar dele quem necessite conhecê-lo. Lembro-te da fala de certo sábio: Tudo tem um limite, além do qual será dilapidação, e aquém do qual será inépcia. Que o aconselhamento ao rei não te leve a inimizar-te com os cortesãos de sua família e os de sua intimidade, pois isso não consiste em obrigação tua diante dele, sendo mais satisfatório para as prerrogativas do rei e melhor para teu bem-estar que lhe tornes úteis os teus esforços; se acaso assim procederes, agradecer-lhe-ás as benesses, colocar-te-ás a salvo de seus argumentos e farás minguar o número de teus inimigos diante dele. Alguém disse: Zela por fazer minguar o número dos inimigos do soberano com o qual privas: o inimigo do soberano é mais perigoso para ti do que para ele, pois o ataca trapaceando contra os mais íntimos de seus atendentes e servidores, cujos defeitos ele recenseia e cujos rastros persegue, atiçando suspeitas no rei em relação a eles. Essa é a mais terrível artimanha contra os reis: guarda isso tal como guardas a ti próprio. E já se disse: Guarda o soberano por meio da prevenção, o amigo por meio da humildade, o inimigo por meio do argumento e o vulgo por meio do sorriso. Não tomes liberdades mesmo que passes a te fiar nele, pois a familiaridade corrompe o respeito mais sólido. E lembra-te da fala de certo sábio: Se acaso o rei pedir opinião a um grupo no meio do qual estiveres, evita responder com presteza, pois a opinião emitida ao fim é a que com maior propriedade revela sua preciosidade: se já tiveres ouvido a opinião dos outros poderás mais convenientemente avaliá-las e compará-las com o que trazes contigo, e quando a vez de responder chegar a ti, responderás tendo já te certificado e orientado com base na opinião dos outros sobre o assunto. Acautela-te contra elas, quer aconselhando-o a respeito, pois é mediante essa parte que muita vez os mais íntimos do rei são destruídos por seus mais vis servidores. Acautela-te de ser o fiador de seus servidores, pois o soberano não se lembrará de tal fiança quando esses servidores acertarem, mas sim quando errarem, e não será mais implacável com quem comete erros contra si do que com seus vizires. E a súmula de tuas relações com ele está em algo que não será alcançado senão combatendo-se a paixão e obedecendo-se ao bom parecer, e que consiste em tratar com complacência os colaboradores dele nas situações de entretenimento — as quais se encerram rapidamente, mas que podem levar o participante à morte —, e competir com quem for equivalente a ti nas situações em que se administram as coisas importantes, cuja glória é mais permanente e cujos fundamentos são mais sólidos. Existe outro dizer: Que o soberano te conheça pela administração de que o provéns, e não pelo que fazes contra ele, bem como por afastar dele a negligência, e não por dela provê-lo; coloca-o na posição de mandante e coloca-te na posição de executivo, e, se acaso ele demonstrar algo de bom, deves atribuí-lo à sua boa administração, mas, se acaso ele demonstrar alguma incompetência, deves reivindicá-la para ti, com o que conquistarás duas partes: o mérito da boa posição perante o rei, e o da lealdade perante as pessoas. Se acaso contenderes, diante do soberano, com algum semelhante que te equivalha, que seja tua contenda por meio da argumentação, ainda que ele te agrida, e com sutileza, ainda que ele te ofenda. Acautela-te para que a cólera não te domine e inflame, pois ela não deixa enxergar o momento azado e interrompe a argumentação, permitindo que o adversário te derrote. E se acaso alguma opinião tua for louvada, ou algum acerto teu apareça, não o menciones com a demasia dos fanfarrões, pois isso provoca a fúria do rei e atiça seus ciúmes por quem o cerca, a tal ponto que o faz esquecer os bens que lhe fizeste. Fica sabendo que o alardear [a realização de] favores leva à sua negação, fazendo com que o favorecedor seja deslocado do louvor à censura, passando da posição de benfeitor à de malfeitor. Disse certo sábio: Se acaso notares que o soberano faz de ti um irmão, faze dele um senhor; e se ele intensificar o tratamento de irmão, intensifica tu o tratamento de senhor. E disse outro: Quem acompanha o soberano é como quem monta o leão, pois quem o vê em tal montaria o teme, embora ele próprio esteja dela mais temeroso. Que tua busca pelo que o soberano tem seja por meio da escolha dele, não de teu pedido, e por meio da capacidade, não do rogo. Não lhe imponhas o que não é de sua natureza, pois se ele não o faz para si por que o faria para outrem? Não te pese se acaso ele em algum momento menoscabar-te os direitos, pois decerto te dará em outro momento algo além deles; as questões mundanas se assemelham, ora indo além dos direitos das coisas, ora ficando aquém deles. Não te fies de modo algum, quando servires ao soberano, em tua primeira boa ação, pois ela poderá não te valer no futuro, tal como não te podes fiar, quando plantares uma planta, em regá-la num ano e deixá-la a seco pelo resto do tempo”.

Mamede Mustafa Jarouche, in O leão e o chacal mergulhador

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