Organizou-se
uma sociedade teatral e quiseram colocá-la sob o patrocínio de João
Caetano; mas o Major Pedro Silva, senhor de engenho, ofereceu aos
amadores uma casa que se arruinava no Juazeiro, defronte da cadeia, e
a instituição recebeu em conseqüência o nome de Escola Dramática
Pedro Silva. Ladrilharam, rebocaram e caiaram o prédio; ergueram o
palco, os cenários da floresta, do palácio e da choupana; Joaquim
Correntão esmerou-se no pano de boca, vistoso, com três deusas
peitudas. E, depois de numerosos ensaios, levaram à cena O Plebeu,
que arrancou lágrimas da plateia.
Entre
os diletantes, um moço desconhecido, novo agente do correio, logo se
notabilizou pela feiura e pelos modos esquisitos. Mário Venâncio
era pobre demais: vestia brim fluminense, roupa grosseira de matuto,
preparava ele mesmo a comida e vivia numa espécie de gaiola
pendurada no morro do Pão-sem-Miolo. A peça da frente servia de
repartição, gabinete e sala de visitas.
Logo
correu que havia chegado à terra um literato. Vi-o de longe, rápido
e miúdo, o rosto fino como focinho de rato, modos de rato — um
guabiru ligeiro e cabisbaixo, a dar topadas no calçamento. E alguém
afirmou na loja que estava ali um sujeito profundo, colaborador de
jornais, autor de livros, o diabo. As maneiras esquivas e torcidas
exprimiam vida interior, desprezo ao senso comum, inspiração de
poeta. Em geral os poetas tinham aparência maluca e usavam cabelos
assim compridos, escondendo as orelhas.
Aproximei-me
desse curioso indivíduo no colégio, onde nos apareceu lecionando
geografia. Não era a especialidade dele: ajustou-se à matéria como
se ajustaria a qualquer outra, apenas para aliviar o trabalho de
Jovino Xavier. Pouco a pouco abandonou os mapas, as listas de mares e
de rios. Insinuou-nos a fundação de um periódico.
A
ideia, aceita com entusiasmo, ao cabo de uma semana esfriou, teria
morrido se eu e meu primo Cícero não a resguardássemos.
Aferramo-nos a ela e, vencendo embaraços e canseiras, tornamo-nos
diretores do Dilúculo, folha impressa em Maceió, com duzentos
exemplares de tiragem quinzenal, trazidos pelo estafeta Buriti, que
vendia revista e declamava pedaços do Moço Louro. O
desgraçado título foi escolha do nosso mentor, fecundo em palavras
raras.
Estabeleceu-se
a redação na agência do correio, logo convertida em asilo de
doidos. À tarde reuniam-se lá os membros da Escola Dramática Pedro
Silva, os da Instrutora Viçosense, sociedade que dormia o ano
inteiro, acordava na posse da diretoria e, concluídos os discursos,
tornava ao sono. Essa gente fazia um barulho que assustava os
transeuntes, afligia os vizinhos, atraía caixeiros tímidos,
emaranhados nos cipoais da concordância e da métrica. Sem apanhar
direito o sentido das conversas, apoderava-me de alguns vocábulos,
estudava-os no dicionário, empregava-os com energia.
Representado
O Plebeu, Mário Venâncio colhera no guarda-roupa do teatro
uma farpeia que utilizava em noites de inverno e por fim misturava ao
fato ordinário. De tamancos, calça de algodão esfiapada nas
bainhas, camisa de meia, fraque e chapéu duro, atravessava a rua,
dirigia-se à bodega; as mãos carregadas de embrulhos, lenha debaixo
do braço, voltava, corcunda, tropeçando, ia à cozinha, atiçava o
fogo, temperava a sentava-se à mesa coberta de jornais, cartas,
almofadas e carimbos, perto da estante:
— O
naturalismo...
Perplexo,
eu examinava as pessoas em redor, procurava distinguir nelas o efeito
da arenga difícil. Estariam compreendendo? Às vezes me assustavam
discussões embrulhadas: rapazes silenciosos animavam-se, discorriam
com exagero e ódio, religiosamente. Isso me dava tontura e enjôo.
Uma idéia clara me surgia: os romances agradáveis eram bugigangas.
Em troca, exibiam-me insipidez e obscuridade. Ali é que estava a
beleza, especialmente na prosa de Coelho Neto.
Não
me importava a beleza: queria distrair-me com aventuras, duelos,
viagens, questões em que os bons triunfavam e os malvados acabavam
presos ou mortos. Incapaz de revelar a preferência, resignei-me e
aguentei as Baladilhas, o Romanceiro, outros aparatos
elogiados, que me revolveram o estômago. Cochilei em cima deles,
devolvi-os receando que me forçassem a comentá-los. Para mim eram
chinfrins, mas esta opinião contrariava a experiência alheia.
Julguei-me insuficiente, calei-me, engoli bocejos. Enquanto o dono da
casa explanava a literatura encrencada, esforcei-me por entendê-la.
Senti
medo e preguiça. Não me arriscaria a controvérsia: acovardava-me a
presença de uma autoridade.
O
Pequeno Mendigo e várias artes minhas lançadas no Dilúculo
saíram com tantos arrebiques e interpolações que do original pouco
se salvou.
Envergonhava-me
lendo esses excessos do nosso professor: toda a gente compreenderia o
embuste.
Mário
Venâncio fabricava artigos e notícias, reduzia os diretores a
simples testas-de-ferro. Ornou de contos sérios as páginas
mesquinhas. Assim principiava um deles, admirado na Instrutora
Viçosense e na Escola Pedro Silva:
“Jerusalém,
a deicida, dormia sossegadamente à luz pálida das estrelas. Sobre
as colinas pairava uma tênue neblina, o hálito da grande cidade
adormecida. Nos casais dos cabreiros, cães de vigília ululavam
lugubremente.” Os nossos ouvidos eram insensíveis a colisões. E a
brisa do monte das Oliveiras, a torrente do Cédron, lugares
bíblicos, valorizavam o trabalho.
Mas
não ficávamos na torrente e na brisa. Descíamos o monte das
Oliveiras, caíamos na planície nacional, visitávamos a Casa de
Pensão e O Coruja. Da cópia saltávamos ao modelo,
invadíamos torpezas dos Bougon-Macquart, publicadas em
Lisboa.
Feria-me
às vezes, porém, uma saudade viva das personagens de folhetins:
abandonava a agência, chegava-me a biblioteca de Jerônimo Barreto,
regressava às leituras fáceis, reviu condes e condessas,
salteadores e mosqueteiros brigões, viajava com eles em diligência
pelos caminhos da França.
Esquecia
Zola e Victor Hugo, desanuviava-me. Havia sido ingrato com os meus
pobres heróis de capa e espada. Não me atrevia a exibi-los agora.
Disfarçava-os cuidadoso e, fortalecido por eles, submetia-me de novo
ao pesadume, ia buscar o artifício v. a substância, em geral muito
artifício e pouca substância.
O
funcionário postal facilitou-me a correspondência com livrarias:
obtive catálogos da Garnier e da Francisco Alves, escrevi cartas,
recebi faturas e pacotes. Não possuindo recursos, habituei-me a
furtar moedas na loja, guardá-las num frasco bojudo oculto sob
fronhas e toalhas no compartimento superior da cômoda. Entre níqueis
e pratas surgiram cédulas — e enchi as prateleiras da estante
larga, presente de aniversário. Esses delitos não me causavam
remorso.
Cheguei
a convencer-me de que meu pai, encolhido e avaro por natureza, os
aprovava tacitamente. Desculpava-me censurando-lhe a sovinice,
tentando agarrar esperanças absurdas.
Mário
Venâncio me pressagiava bom futuro, via em mim sinais de Coelho
Neto, de Aluísio Azevedo — e isto me ensoberbecia e alarmava.
Acanhado, as orelhas ardendo, repeli o vaticínio: os meus exercícios
eram composições tolas, não prestavam. Sem dúvida, afirmava o
adivinho. Ainda não prestavam. Mas eu faria romances. Gastei meses
para certificar-me de que o palpite não encerrava zombaria. Depois a
vaidade esmoreceu, foi substituída por uma vaga aflição.
Que
teria o homem percebido nos meus escritos? Se me decidisse a confiar
nele, amargaria a vida inteira o provável engano. Examinei-me por
dentro e julguei-me vazio. Não me achava capaz de conceber um
daqueles enredos ensanguentados, férteis em nobres valorosos e
donzelas puras. E, desatento, andava na rua aos encontrões, meio
cego, meio surdo. Nunca descreveria um candeeiro como o de metal
amarelo que iluminava, com azeite e difíceis pavios, duas páginas
das Cenas da Vida Amazônica. Os candeeiros me passavam
despercebidos. E seriam necessários? Os debates na agência não
tinham fim. Lembrava-me dos governistas e oposicionistas espalhados,
rancorosos, nas esquinas da cidadezinha e nos jornais da capital.
Assombrava-me o partidarismo exaltado, a minha colaboração no
Dilúculo era terrivelmente eclética. Mário Venâncio
continuava a animar-me, eu desviava pretensões arriscadas.
Esse
amável profeta bebeu ácido fênico. Levantei-me da espreguiçadeira,
onde me seguravam as novidades e os sofrimentos da artrite e de uma
novela russa, fui encontrar o infeliz amigo estirado no sofá, junto
à mesa coberta de papéis, brochuras, pedaços de lacre, almofadas e
carimbos. Um emissário da administração, feita a sindicância,
redigiu necrológio pomposo, enterrou o cadáver sob a folhagem de
salgueiros, entre raízes de ciprestes, vegetais desconhecidos no
lugar.
O
Dilúculo também morreu logo. Distanciei-me da crítica. E
não me entendi com o público, muito incerto. No colégio, na Escola
Pedro Silva, na Instrutora Viçosence, toleravam-me. Em casa, sem
exame, detestavam as minhas novas ocupações.
Graciliano
Ramos, in Infância
Nenhum comentário:
Postar um comentário