terça-feira, 2 de junho de 2020

In dog we trust ou Mundo cão do truste




Minha vontade é a de colocar cada vez mais poesia neste meu espaço, para encher de beleza e de justa ferocidade o coração do outro, do outro que é você, leitor. Porque tudo o que me vem às mãos através dos jornais, tudo o que me vem aos olhos através da televisão, tudo o que me vem aos ouvidos através do rádio é tão pré-apocalipse, tão pútrido, tão devastador que fico me perguntando: por que ainda insistimos em colocar palavras nas páginas em branco?
Alguns amigos venezuelanos telefonam: você anda tão amarga… tão triste… Pois bem, vejamos as notícias recentes: no Rio (e dizem que ainda continua lindo) esquadrões de extermínio são contratados (por quem?) para matar sistematicamente prostitutas, débeis mentais, mendigos e supostos ladrões, meninos e adolescentes. Ouvi esta notícia na CBN, de madrugada. A miséria grassa adoidada, a crueldade também, os homens políticos continuam com suas mesmices, um dizendo ingenuamente que com uma só “penada” vai dar terra a todos, outro comendo buchada de bode, mas arrotando “tripe à la mode” e um dia desses disse que se saiu bem com a “dívida externa”, quando qualquer um bem informado sabe que nunca nos sairemos bem com a nossa dívida externa, porque (devo citar novamente os especialistas): “O FMI foi criado para institucionalizar o predomínio financeiro de Wall Street sobre o planeta inteiro quando, em fins da Segunda Guerra Mundial, o dólar inaugurou sua hegemonia como moeda internacional. Nunca foi infiel ao amo”.
A esperança para os países da América Latina é e será sempre uma grande ilusão, porque “no mundo dos grandes negócios” só pulhas e vilões é que se saem bem, e a América Latina é e sempre será um grande negócio” para todos os do “Primeiro Mundo”. Enquanto não forem feitas reformas políticas e econômicas essenciais e, principalmente, leitor, um ardente coração, um dilatar-se da alma do Homem, tudo ficará como está. Podem me chamar de louca, de fantasista, de gling-glang, de utopista, ingênua, chamem do que vocês quiserem, até de… Não sei se vocês sabem, mas “Puta” foi uma grande deusa da mitologia grega. Vem do verbo “putare”, que quer dizer podar, pôr em ordem, pensar. Era a deusa que presidia à podadura. Só depois é que a palavra degringolou na propriamente dita, e em “deputado”, “putativo” etc. Se eu, de alguma forma com os meus textos, ando ceifando vossas ilusões, é para fazer nascer em ti, leitor, o ato de pensar. Não sou deusa, não. Sou apenas poeta. Mas o poeta é aquele que é quase profeta:

Olhando o meu passeio
Há um louco sobre o muro
Balançando os pés.
Mostra-me o peito estufado de pelos
E tem entre as coxas um lixo de papéis:
Procura Deus, senhora? Procura Deus?
E simétrico de zelos, balouçante
Dobra-se num salto e desnuda o traseiro.

E há indivíduos e povos iludidos que ainda acreditam que o traseiro do louco possa ser o retrato do divino. “Voilà.” Ilusões de cegos e de moucos. Bom domingo, fofos.
Hilda Hilst, in Correio Popular (25/06/1995)

Nenhum comentário:

Postar um comentário