Os
professores me chamavam de estrábico. Mas os meus colegas da escola
me chamavam — pelas costas, é claro — de caolho, zarolho,
mirolho.
Certa
ocasião eu fui falar com uma garota e ela olhou para mim e caiu na
gargalhada. Sofri muito com aquilo. E passei a andar à sorrelfa,
para que não percebessem o meu defeito. Nunca mais olhei o meu rosto
num espelho. Fazia a barba no chuveiro, o que aliás era uma boa
ideia, água quente — eu tomo banho com a água fervendo — amacia
os pelos do rosto e a raspagem é fácil e perfeita.
Fui
ao oftalmologista, o doutor Cobra. O nome dele era Cobra. Não estou
inventando. E qual o problema do sujeito se chamar Cobra? Não tem
gente que se chama Barata, Leitão, Pinto, Camarão, Aranha,
Carneiro, Café? Eu podia arrolar aqui dezenas de nomes estranhos.
Ele me examinou longamente e disse:
“O
seu caso é raro, a sua síndrome é dificilmente encontrada em outra
pessoa. E não tem cura.”
“E
uma cirurgia, doutor?”
“Qualquer
cirurgia deixaria você irremediavelmente cego.”
“E
o que o senhor me aconselha para diminuir esse meu sofrimento?”
“Usar
óculos escuros. Bem escuros. Assim ninguém percebe a sua anomalia
ótica.”
Nesta
mesma ocasião os meus pais faleceram, num desastre de automóvel.
Meu
pai, que também era estrábico, estava dirigindo.
“O
estrabismo”, o doutor Cobra me disse, “não é genético, você e
o seu pai sofrerem do mesmo problema é uma mera coincidência”.
Herdei
dos meus pais bens suficientes para uma vida inteira.
Comprei
os óculos escuros, saí da escola, nunca mais procurei o doutor
Cobra.
Eu
não tirava os óculos escuros para nada. À noite, quando ia dormir,
apagava a luz e colocava os óculos na mesinha de cabeceira. Eu tinha
oito pares de óculos, não queria correr o risco de ficar sem um
deles. Eu nunca mais, repito, nunca mais olhei o meu rosto no espelho
sem os óculos.
Eu
gostava de andar pelo parque, próximo da minha casa, e costumava
sentar-me num dos bancos para ficar olhando as pessoas passarem.
Confesso que os óculos estavam me fazendo bem, eu já não via mais
as coisas como antes, de maneira distorcida.
Entre
os transeuntes da praça um chamava a minha atenção. Era uma jovem
muito bonita, elegante, a quem eu contemplava, sem que ela
percebesse, pois os óculos escuros o permitiam.
Chegando
em casa ficava pensando nela, principalmente ao deitar. Eu a via com
nitidez caminhando pela praça, e quando o sono me dominava eu
sonhava com ela.
Um
dia eu estava sentado no banco quando vi, feliz, ela se aproximando.
Para
minha surpresa ela se sentou ao meu lado.
“Nós
sempre nos encontramos e nunca nos falamos. O meu nome é Helena.”
Disse
isso estendo a mão para mim.
Eu
a cumprimentei dizendo:
“O
meu é José, mas os meus pais me chamavam de Zé.”
“Então
também vou chamá-lo de Zé. Posso?”
“Claro.”
“Felizmente
o sol já se pôs. Eu adoro o pôr do sol, você também? E quando
vai tirar esses óculos escuros?”
Fiquei
trêmulo, escondi as mãos enfiando-as no bolso.
“Tenho
que ir embora, lembrei agora que estou atrasado para um encontro
importante.”
Saí
apressado, creio mesmo que corri esbaforido.
Nunca
mais fui passear na praça.
Passaram-se
uns meses, e um dia eu estava tomando um cafezinho — confesso que
sou um viciado em café, o meu único vício —, quando senti um
toque no meu ombro.
Era
Helena.
“Você
sumiu. Tenho ido todos os dias à praça para ver se o encontro, mas
não tenho tido esse prazer. Pensei que você gostasse de mim.”
“Eu
gosto... muito...”, gaguejei.
“E
por que desapareceu? Isso me deixou muito triste.”
Criei
coragem e decidi falar a verdade.
“Por
quê? Por quê? Por isso!”
Tirei
os óculos e olhei Helena de frente.
“Você
tem olhos lindos.”
Ela
devia estar escarnecendo, nada se iguala à maldade das mulheres!
Havia
vários espelhos no botequim. Olhei num deles. O meu estrabismo
desaparecera! Se eu fosse uma pessoa religiosa acreditaria num
milagre.
Bem,
devo confessar que nada disso ocorreu. Foi mais um sonho. Eu
encontrar a moça na praça foi um sonho. E qual é o problema?
O
sonho, para a ciência, é uma experiência de imaginação do
inconsciente durante nosso período de sono. Em diversas tradições
culturais e religiosas, o sonho aparece revestido de poderes
premonitórios ou até mesmo de uma expansão da consciência.
Aquele
sonho era um presságio? Iria ocorrer o que eu sonhei?
Rubem
Fonseca, in Histórias curtas
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