sexta-feira, 1 de maio de 2020

Um caramanchão nas Arsácidas

Até aqui, neste descritivo discorrer sobre o Cachalote, prolonguei-me sobretudo nas maravilhas de seu aspecto exterior; ou então, à parte e detalhadamente, em certas especificidades de sua estrutura interna. Mas, para uma compreensão mais ampla e cabal, compete a mim agora desabotoá-lo ainda mais, e desatando-lhe os laços do calção, e desafivelando-lhe as ligas, e soltando-lhe os ganchos e colchetes das juntas de seus ossos mais íntimos, mostrá-lo em seu estado final; o que significa dizer, em seu esqueleto indefectível.
Mas como assim, Ishmael? Como você, um mero remador na pesca, pretende saber alguma coisa a respeito das partes subterrâneas da baleia? Teria o erudito Stubb, montado no cabrestante, ministrado palestras sobre a anatomia dos Cetáceos; e, com a ajuda do molinete, exibido um exemplar de costela como demonstração? Explica-te, Ishmael. Pode você arriar uma baleia adulta sobre o convés para examiná-la, como um cozinheiro ajeita um porco assado numa travessa? Claro que não. Até aqui você foi uma testemunha confiável, Ishmael; mas tome cuidado ao apoderar-se do privilégio exclusivo de Jonas; o privilégio de discorrer sobre as vigas e traves; os caibros, as vigas mestras, os dormentes e os esteios que constituem a estrutura do Leviatã; e igualmente os tonéis de gordura, as leiterias, as manteigarias e as queijarias de suas entranhas.
Confesso que poucos baleeiros depois de Jonas penetraram muito para além da pele da baleia adulta; não obstante, fui abençoado com a oportunidade de dissecá-la em miniatura. Em um navio em que estive engajado, certa feita içou-se ao convés um filhote de cachalote para lhe extraírem o saco, ou bolsa, que serve para fazer as bainhas dos arpões e as pontas das lanças. Você acha que deixaria a oportunidade escapar, sem me servir da machadinha e do canivete e quebrar o lacre e decifrar o conteúdo daquele filhote?
E, no que se refere a meu conhecimento exato sobre os ossos do Leviatã em seu desenvolvimento pleno e gigantesco, devo tal raro conhecimento a meu finado e nobre amigo Tranquo, rei de Tranque, uma das Arsácidas. Quando estive em Tranque, há alguns anos, pertencendo à tripulação do navio mercante Dei de Argel, fui convidado a passar uma parte dos feriados Arsacianos com o senhor de Tranque, em sua afastada vila de palmeiras, em Pupella; um vale perto da costa e não muito distante daquilo a que nossos marinheiros chamam Cidade Bambu, sua capital.
Dentre muitas outras qualidades benfazejas, meu nobre amigo Tranquo, sendo dotado de um amor fervoroso pela arte bárbara, havia reunido em Pupella todas as raridades que o engenho de seu povo houvesse inventado; principalmente madeiras entalhadas com magníficos desenhos, conchas esculpidas, lanças marchetadas, remos suntuosos, canoas aromáticas; e tudo isso distribuído junto às maravilhas naturais que as ondas carregadas de maravilhas ofereciam às suas praias à guisa de tributo.
Mais importante dentre tais oferendas era um imenso Cachalote que, depois de uma tempestade inusitadamente longa e violenta, fora encontrado morto e encalhado, com a cabeça contra um coqueiro, cujos pendores tufados como plumas pareciam ser seu jato verdejante. Quando por fim se despojou o imenso corpo de seu invólucro espesso de várias braças e seus ossos se verteram em restos secos ao sol, o esqueleto então foi cuidadosamente transportado para a ravina de Pupella, onde um magnífico templo de palmeiras majestosas o abrigava.
As costelas foram cobertas de troféus; as vértebras foram entalhadas com os anais Arsacianos, em estranhos hieróglifos; no crânio, os sacerdotes mantinham uma inextinguível chama aromática, de tal modo que a cabeça mística de novo expelia seu jato vaporoso; enquanto, suspensa num galho, a terrível mandíbula inferior vibrava sobre todos os devotos, como a espada presa a um fio de cabelo que tanto assustou Dâmocles.
Era um espetáculo assombroso. O bosque era verde como o musgo de Icy Glen; as árvores erguiam-se altas e desdenhosas, sentindo a força de sua seiva; a terra laboriosa embaixo era como o tear de um tecelão, e nele um tapete formoso, do qual as gavinhas das videiras formavam a trama e a textura, e as flores vivas as imagens. Todas as árvores, com seus galhos colmados; todos os arbustos, e a relva, e as samambaias; o ar carregado de recados; tudo estava em atividade incessante. Através do entrelaçamento das folhas, o sol imenso parecia uma lançadeira voadora, tecendo a vegetação incansável. Ó, tecelão ativo! Tecelão invisível! – pára! – uma palavra! – para onde corre a urdidura? Que palácio irá decorar? Para que toda essa faina incessante? Fala, tecelão! – Detém a tua mão! – Só uma simples palavra contigo! Não – a lançadeira voa – flanam figuras faceiras no teu tear; o incontrolável tapete da inundação desliza para sempre. O deus tecelão, ele tece; e ao tecer, ensurdece, não escuta voz humana; por esse zunido, nós, que olhamos para o tear, ensurdecemos também; e apenas quando nos afastarmos ouviremos milhares de vozes que falam através dele. O mesmo sucede em todas as fábricas existentes. As palavras pronunciadas que são inaudíveis entre as rocas desenfreadas; essas mesmas palavras são ouvidas com nitidez do lado de fora das paredes, transbordando pelos batentes abertos. Assim foram descobertas as infâmias. Ah, mortal! Sê, pois, cuidadoso; no meio do rumor do grande tear do mundo, teus pensamentos mais sutis podem ser ouvidos a distância.
Ora, em meio ao tear verde e incansável do bosque Arsacídeo, o imenso e venerado esqueleto branco jazia indolente – um gigantesco desocupado! No entanto, enquanto a trama e a textura verdejantes se mesclavam, zunindo à sua volta, o indolente portentoso parecia ser o tecelão habilidoso; todo entrelaçado de videiras; a cada mês ostentando mais verde e fresca verdura; e, no entanto, um esqueleto. A Vida envolvia a Morte; a Morte entrelaçava a Vida; o deus feroz desposava a Vida jovial e gerava glórias de cabelos cacheados.
Ora, quando em companhia do régio Tranquo visitei essa baleia maravilhosa, e vi o crânio feito altar, e a fumaça artificial que ascendia de onde outrora subira o jato verdadeiro, fiquei maravilhado de saber que o rei considerasse uma capela um objeto de arte. Ele riu. Ainda mais me espantou que os sacerdotes jurassem que o jato de fumaça era autêntico. E de um lado para o outro caminhei diante do esqueleto – afastei as videiras – abri as costelas – e com um rolo de barbante Arsaciano vaguei, corri em torvelinhos por muito tempo, dando voltas por entre as colunatas sombrias e caramanchões sinuosos. Mas depressa meu barbante se acabou; e, seguindo-o de volta, cheguei à abertura pela qual havia entrado. Não vi nenhum ser vivo lá dentro; nada além de ossos.
Cortando uma vara verde para medida, mergulhei no esqueleto de novo. Pelo buraco fino do crânio, os sacerdotes perceberam que eu media a altura da última costela. “Como ousas?”, gritaram; “Medir o nosso deus! Isso cabe a nós.” “Sim, sacerdotes – quanto ele mede, então?” Mas isso suscitou entre eles uma feroz controvérsia em relação a pés e polegadas; bateram na cabeça uns dos outros com seus bordões de medida – a caveira enorme ecoou – e, aproveitando a oportunidade, terminei depressa minhas medições.
Tais medidas são as que proponho apresentar agora. Porém, primeiro, fique registrado que neste caso não tenho liberdade para estabelecer nenhuma medida fantasiosa. Pois existem autoridades em esqueletos a quem você pode recorrer para avaliar minha precisão. Há um Museu Leviatânico, dizem-me elas, em Hull, na Inglaterra, um dos portos baleeiros do país, com magníficos exemplares de baleias de barbatana dorsal, entre outras. Igualmente, ouvi dizer que no museu de Manchester, em New Hampshire, existe o que os proprietários designam o “único espécime perfeito da Baleia da Groenlândia ou Baleia de Rio nos Estados Unidos”. Além disso, num lugar de Yorkshire, na Inglaterra, de nome Burton Constable, um certo Sir Clifford Constable tem em seu poder o esqueleto de um Cachalote, mas de tamanho médio, que não se compara de maneira nenhuma com a magnitude do Leviatã adulto de meu amigo, o Rei Tranquo.
Em ambos os casos, as baleias encalhadas às quais os dois esqueletos pertenceram foram originalmente reclamadas por seus proprietários sob circunstâncias semelhantes. O rei Tranquo apoderou-se da sua porque assim o quis; e Sir Clifford, porque era o senhor daquelas cercanias. A baleia de Sir Clifford foi inteiramente articulada; de tal modo que, como um enorme gaveteiro, era possível abri-la e fechá-la em todas as cavidades ósseas – abrir-lhe as costelas como um gigantesco leque – e balançar-se um dia inteiro em sua mandíbula. Fechaduras serão colocadas em alguns alçapões e postigos; e um serviçal apresentará as dependências aos futuros visitantes com um molho de chaves à cinta. Sir Clifford pensa em cobrar dois pence por uma olhadela na abóbada acústica da coluna vertebral; três pence para escutar o eco na cavidade do cerebelo; e seis pence pela vista sem par que se tem de sua fronte.
As dimensões do esqueleto que agora divulgarei foram fidedignamente copiadas do meu braço direito, onde as tenho tatuadas; uma vez que, em minhas andanças sem rumo daquele período, não havia outro meio seguro de preservar estatísticas tão valiosas. Como não dispunha de muito espaço e pretendia que outras partes de meu corpo permanecessem páginas em branco para o poema que então estava compondo – pelo menos as partes não tatuadas que pudessem restar –, não me preocupei com as frações de polegadas; nem, de fato, as polegadas deveriam constar da medição de uma baleia.
Herman Melville, in Moby Dick

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