Amanheci
no dia seguinte na casa de um senador, com imunidade parlamentar,
onde me tinha levado o pintor Renato Guttuso que, no entanto, não se
fiava na palavra governamental. Foi quando me chegou um telegrama da
ilha de Capri, mandado pelo ilustre historiador Erwin Cerio, a quem
não conhecia pessoalmente. Manifestava-se indignado diante do que
ele considerava um ultraje, um desacato à tradição e à cultura
italianas. Terminava me oferecendo uma vila na própria Capri.
Tudo
parecia um sonho. E quando cheguei a Capri, em companhia de Matilde
Urrutia, de Matilde, a sensação irreal de sonho cresceu mais ainda.
Chegamos
de noite e no inverno à ilha maravilhosa. A costa se alteava na
sombra, esbranquiçada e altíssima, desconhecida e calada. Que
aconteceria? Que nos aconteceria? Uma charrete nos esperava. A
charrete subiu até não acabar mais pelas desertas ruas noturnas.
Casas brancas e mudas, ruelas estreitas e verticais. Por fim se
deteve. O cocheiro depositou nossas valises naquela casa, também
branca e parecendo vazia.
Ao
entrar vimos arder o fogo da grande lareira. À luz dos candelabros
acesos havia um homem alto, de cabelo, barba e roupa brancos. Era D.
Erwin Cerio, proprietário de meia Capri, historiador e naturalista.
Na penumbra se erguia como a imagem do Papai do Céu dos contos
infantis.
Tinha
quase noventa anos e era o homem mais ilustre da ilha.
– Disponha
desta casa. Aqui estará tranquilo.
E
se foi por muitos dias durante os quais, por delicadeza, não nos
visitava, apenas mandando pequenos bilhetes com notícias ou
conselhos delicadamente escritos à mão e com alguma folha ou flor
de seu jardim. Erwin Cerio representou para nós o amplo, generoso e
perfumado coração da Itália.
Depois
conheci seus trabalhos, seus livros, mais verdadeiros que os de Axel
Munthe, ainda que não tão famosos. O nobre e velho Cerio repetia
com humor picaresco:
– A
obra-prima de Deus é a praça de Capri.
Matilde
e eu nos recolhíamos em nosso amor. Fazíamos longas caminhadas por
Anacapri. A pequena ilha, dividida em mil jardins pequenos, tem um
esplendor natural por demais conhecido mas tiranicamente verídico.
Entre as rochas, onde o sol e o vento mais açoitam, pela terra seca,
estalam plantas e flores diminutas, crescidas com exatidão numa
grande composição de jardinagem. Esta Capri recôndita, em que a
gente só entra depois de longa peregrinação e quando a etiqueta de
turista já caiu de nossa roupa, esta Capri popular de rochas e
minúsculas vinhas, de gente modesta, trabalhadora, essencial, tem um
encanto absorvente. É só estar entrouxado com as coisas e com a
gente e já os cocheiros e os pescadores nos conhecem, já formamos
parte da Capri oculta e pobre, sabendo onde está o bom vinho barato
e onde comprar as azeitonas comidas pelos de Capri.
Provavelmente
detrás das grandes muralhas palacianas ocorram todas as novelescas
perversidades que se leem nos livros. Mas eu participei de uma vida
feliz em plena solidão ou entre a gente mais simples do mundo. Tempo
inesquecível! Trabalhava toda a manhã e pela tarde Matilde
datilografava meus poemas. Pela primeira vez vivíamos juntos na
mesma casa. Naquele lugar de beleza embriagadora nosso amor se
enriqueceu. Já não podíamos mais nos separar.
Terminei
de escrever ali um livro de amor, apaixonado e doloroso, que logo foi
publicado em Nápoles anonimamente: Los versos del Capitán.
Vou
contar-lhes agora a história desse livro, entre os meus um dos mais
controvertidos. Foi por muito tempo um segredo, por muito tempo não
levou meu nome na capa, como se eu o renegasse ou o próprio livro
não soubesse quem era seu pai. Tal como há filhos naturais, filhos
do amor natural, Los versos del Capitán era assim, um livro natural.
Os
poemas foram escritos aqui e acolá, ao longo de meu desterro na
Europa. Foi publicado anonimamente em Nápoles, em 1952. O amor a
Matilde, a saudade do Chile, as paixões políticas enchem as páginas
deste livro que se manteve sem o nome de seu autor durante muitas
edições.
Para
sua primeira edição, o pintor Paolo Ricci conseguiu um papel
admirável, antigos tipos bodônis e gravuras tiradas dos vasos de
Pompéia. Com dedicação fraternal Paolo organizou também a lista
dos subscritores. Logo apareceu o belo volume numa tiragem de somente
cinqüenta exemplares. Celebramos longamente o acontecimento com mesa
florida, frutti di mare, vinho transparente como a água, filho único
das vinhas de Capri. E com a alegria dos amigos que amaram o nosso
amor.
Alguns
críticos desconfiados atribuíram motivos políticos à aparição
deste livro sem assinatura. “O partido se opôs, o partido não o
aprova”, disseram. Mas não era verdade. Por sorte meu partido não
se opõe a nenhuma expressão da beleza.
A
verdade é que eu não quis, durante muito tempo, que esses poemas
ferissem Delia, de quem me separava. Delia del Carril, passageira
suavíssima, cordão de aço e de mel que atou minhas mãos nos anos
sonoros, foi para mim durante dezoito anos uma companheira exemplar.
Este livro, de paixão brusca e ardente, ia chegar como uma pedra
lançada sobre sua delicada estrutura. Foram essas e não outras as
razões profundas, pessoais, respeitáveis, de meu anonimato.
Depois
o livro, mesmo sem nome e sobrenome, fez-se homem, homem natural e
valoroso. Abriu caminho na vida e eu tive, por fim, de reconhecê-lo.
Agora andam pelos caminhos, isto é, pelas livrarias e bibliotecas,
os “versos del capitán”, assinados pelo genuíno capitão.
Pablo
Neruda, in Confesso que vivi
Nenhum comentário:
Postar um comentário