segunda-feira, 25 de maio de 2020

Os versos do Capitão


Amanheci no dia seguinte na casa de um senador, com imunidade parlamentar, onde me tinha levado o pintor Renato Guttuso que, no entanto, não se fiava na palavra governamental. Foi quando me chegou um telegrama da ilha de Capri, mandado pelo ilustre historiador Erwin Cerio, a quem não conhecia pessoalmente. Manifestava-se indignado diante do que ele considerava um ultraje, um desacato à tradição e à cultura italianas. Terminava me oferecendo uma vila na própria Capri.
Tudo parecia um sonho. E quando cheguei a Capri, em companhia de Matilde Urrutia, de Matilde, a sensação irreal de sonho cresceu mais ainda.
Chegamos de noite e no inverno à ilha maravilhosa. A costa se alteava na sombra, esbranquiçada e altíssima, desconhecida e calada. Que aconteceria? Que nos aconteceria? Uma charrete nos esperava. A charrete subiu até não acabar mais pelas desertas ruas noturnas. Casas brancas e mudas, ruelas estreitas e verticais. Por fim se deteve. O cocheiro depositou nossas valises naquela casa, também branca e parecendo vazia.
Ao entrar vimos arder o fogo da grande lareira. À luz dos candelabros acesos havia um homem alto, de cabelo, barba e roupa brancos. Era D. Erwin Cerio, proprietário de meia Capri, historiador e naturalista. Na penumbra se erguia como a imagem do Papai do Céu dos contos infantis.
Tinha quase noventa anos e era o homem mais ilustre da ilha.
Disponha desta casa. Aqui estará tranquilo.
E se foi por muitos dias durante os quais, por delicadeza, não nos visitava, apenas mandando pequenos bilhetes com notícias ou conselhos delicadamente escritos à mão e com alguma folha ou flor de seu jardim. Erwin Cerio representou para nós o amplo, generoso e perfumado coração da Itália.
Depois conheci seus trabalhos, seus livros, mais verdadeiros que os de Axel Munthe, ainda que não tão famosos. O nobre e velho Cerio repetia com humor picaresco:
A obra-prima de Deus é a praça de Capri.
Matilde e eu nos recolhíamos em nosso amor. Fazíamos longas caminhadas por Anacapri. A pequena ilha, dividida em mil jardins pequenos, tem um esplendor natural por demais conhecido mas tiranicamente verídico. Entre as rochas, onde o sol e o vento mais açoitam, pela terra seca, estalam plantas e flores diminutas, crescidas com exatidão numa grande composição de jardinagem. Esta Capri recôndita, em que a gente só entra depois de longa peregrinação e quando a etiqueta de turista já caiu de nossa roupa, esta Capri popular de rochas e minúsculas vinhas, de gente modesta, trabalhadora, essencial, tem um encanto absorvente. É só estar entrouxado com as coisas e com a gente e já os cocheiros e os pescadores nos conhecem, já formamos parte da Capri oculta e pobre, sabendo onde está o bom vinho barato e onde comprar as azeitonas comidas pelos de Capri.
Provavelmente detrás das grandes muralhas palacianas ocorram todas as novelescas perversidades que se leem nos livros. Mas eu participei de uma vida feliz em plena solidão ou entre a gente mais simples do mundo. Tempo inesquecível! Trabalhava toda a manhã e pela tarde Matilde datilografava meus poemas. Pela primeira vez vivíamos juntos na mesma casa. Naquele lugar de beleza embriagadora nosso amor se enriqueceu. Já não podíamos mais nos separar.
Terminei de escrever ali um livro de amor, apaixonado e doloroso, que logo foi publicado em Nápoles anonimamente: Los versos del Capitán.

Vou contar-lhes agora a história desse livro, entre os meus um dos mais controvertidos. Foi por muito tempo um segredo, por muito tempo não levou meu nome na capa, como se eu o renegasse ou o próprio livro não soubesse quem era seu pai. Tal como há filhos naturais, filhos do amor natural, Los versos del Capitán era assim, um livro natural.
Os poemas foram escritos aqui e acolá, ao longo de meu desterro na Europa. Foi publicado anonimamente em Nápoles, em 1952. O amor a Matilde, a saudade do Chile, as paixões políticas enchem as páginas deste livro que se manteve sem o nome de seu autor durante muitas edições.
Para sua primeira edição, o pintor Paolo Ricci conseguiu um papel admirável, antigos tipos bodônis e gravuras tiradas dos vasos de Pompéia. Com dedicação fraternal Paolo organizou também a lista dos subscritores. Logo apareceu o belo volume numa tiragem de somente cinqüenta exemplares. Celebramos longamente o acontecimento com mesa florida, frutti di mare, vinho transparente como a água, filho único das vinhas de Capri. E com a alegria dos amigos que amaram o nosso amor.
Alguns críticos desconfiados atribuíram motivos políticos à aparição deste livro sem assinatura. “O partido se opôs, o partido não o aprova”, disseram. Mas não era verdade. Por sorte meu partido não se opõe a nenhuma expressão da beleza.
A verdade é que eu não quis, durante muito tempo, que esses poemas ferissem Delia, de quem me separava. Delia del Carril, passageira suavíssima, cordão de aço e de mel que atou minhas mãos nos anos sonoros, foi para mim durante dezoito anos uma companheira exemplar. Este livro, de paixão brusca e ardente, ia chegar como uma pedra lançada sobre sua delicada estrutura. Foram essas e não outras as razões profundas, pessoais, respeitáveis, de meu anonimato.
Depois o livro, mesmo sem nome e sobrenome, fez-se homem, homem natural e valoroso. Abriu caminho na vida e eu tive, por fim, de reconhecê-lo. Agora andam pelos caminhos, isto é, pelas livrarias e bibliotecas, os “versos del capitán”, assinados pelo genuíno capitão.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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