Era
uma vez um meninozinho, que tinha muito medo. Era só soprar um vento
forte, desses de levantar poeira no fundo do quintal e bater com os
postigos da janela; era só haver uma nuvem escura, uma única, que
tampasse o sol; era só esbarrar com a pipa d’água e ouvir o rico
e pesado sacolejar da água dentro, para que o menino se encolhesse
bem no centro de seu ventre, orelhas retesas, olhos muito abertos ou
obstinadamente fechados. Depois, o menino levantava, limpava o pó do
fundilho das calças e ia para o quintal.
Conhecia
as galinhas, os porcos, mas nenhum lhe pertencia. Achava mesmo
engraçado quando via os irmãos abraçarem um leitãozinho, a irmã
mais nova tentando, por força, enfiar uma de suas saias no bicho.
Bicho é bicho, sabia ele. Bicho tem vida sua, diferente da de gente.
Os irmãos não sabiam. Fingiam que eram bonecas, criancinhas
pequenas e, nos dias de matança, todos já eram petiscos, brinquedo
esquecido.
O
menino preferia olhá-los de longe. Tremia, quando a velha porca
gorda fuçava por entre as tábuas do chiqueiro; corria, se ela
estava solta, com sua gorda barriga pendente, seu gordo cachaço
lanhado.
A
mãe também era gorda. Rachando lenha, carregando água, enorme e
pesada bolota de carne. Tinha um rosto comprido, sulcado de rugas,
boca sempre aberta, gritando com alguém. A porca não gritava, só
roncava, mesmo quando o pai passava e lhe dava um pontapé. Um dia
botou sangue — disseram que ia abortar. Ele teve medo de ver.
Escondeu-se em casa, na cama, sob a colcha de fustão.
E
de repente, foi o grande choque. Cama sacudiu. Lastro despencou, e
ele caiu, sufocado pelos travesseiros. Era o pai. A mãe lhe batia
com um resto de vassoura... pela loucura... quatorze leitões...
quatorze... e todos perdidos... o pai grunhia e protegia a cabeça.
Ao redor, tudo era escuro. Sabia agora o que era um nené de bicho.
Havia sangue. Sempre havia sangue.
Era
um dia escuro. E em dias escuros, o menino tinha medo. O escuro era
espesso, profundo, pegajoso, e sombras mais escuras eram manchas
coaguladas.
Havia
um fio de luz, cinza-claro, sobre a pipa d’água. O menino se
atreveu a ir bem junto dela. Puxou um banquinho e foi olhar. Como lhe
doía a barriga, só de espichar, só de ver... a boca preta da pipa,
a água grossa, molhada... E o menino caiu dentro da pipa... Não de
verdade, de mentira... E encontrou uma porção de leitõezinhos lá
no fundo, mas estavam pretos e encarquilhados.
E
ao pular de volta sobre seu banquinho, ao sentir toda a pipa
sacudindo, o menino teve a ideia. Balançou forte, cada vez mais
forte, a pipa veio pelo chão, despedaçando uma aranha, molhando a
lenha, assustando a galinha choca que dormia debaixo do fogão. O pé
do menino ficou preso, uma unha esmagada. Mas ele não chorou, fugiu.
E fugiu para a rua... Porém o terreiro estava iluminado com uma luz
muito pálida, a areia lisa, fina, as bananeiras imóveis e densas...
Sentou-se no chão, sobre uma pedra pontuda, um pé em cima do outro,
as mãos cruzadas no joelho.
De
noite, eram os corpos dos irmãos que se apertavam contra o dele.
Mesmo de olhos fechados, sabia quem estava junto de si. A irmã tinha
o costume de dar-lhe beliscões, e um dos irmãos sempre esperava que
ele se distraísse para puxar-lhe aquilo. Depois ria, dizendo: “Por
mais que se puxe, é uma coisinha de nada”, e mostrava o seu,
orgulhoso.
Às
vezes, o menino ia dormir no chão. Esperava que os grandes passassem
para trás da cortina, ameaçava os irmãos e ia deitar na cozinha ou
contra o cabide. Era pequeno, mas também sabia fazer coisas
malvadas. Escutava o pai e a mãe. Suas vozes eram grossas, por vezes
estridentes, e palavras feias estremeciam o ar, penduravam-se nas
teias de aranha, nos arremates das mata-juntas. O lastro estalava, e
havia risadas, de gengivas descobertas, de profundos ocos de
garganta.
Ir
embora, era o que o menino desejava. Ir para um lugar onde a água
fosse grande e livre, um mar infinito, como ouvira contar certa vez.
Não haveria aves, nem porcos nem cachorros, apenas peixes, dourados
e lisos... O menino habituou-se a correr. Corria ao ouvir as
xingações da mãe, corria ao ouvir os tamancos do pai, corria ao
ouvir as risadas dos irmãos. Corria ainda quando ouviu a voz da
porca velha.
Gritava.
Não grunhidos, não roncos, mas gritos. O menino sentiu sua
barriguinha encolher, aquilo se levantar em franco protesto. Na
esquina da casa, lá estava o grupo: o pai, o empregado, a mãe, um
vizinho, e qualquer coisa que rebolava feito doida na areia. As
crianças se conservavam longe, as mãos nos ouvidos, as caras
estúpidas. A mãe se afobava, a saia descosida arrastando no chão,
dando ordens, xingando, gritando mais alto que a porca. O pai se
remexia, o chapéu sobre a nuca, o nariz pingando de suor.
E
foi a mãe que arrancou a faca das mãos do vizinho num gesto brusco.
E como gritava a porca... o menino só lhe via o rabinho e as patas
trêmulas. E num instante, tudo ficou imóvel. Os homens forcejando,
a mulher adquirindo impulso, gorda, redonda, enorme, sua saia de
grandes flores desbotadas roçando o ventre da porca, os irmãos
sumindo ao longe, a barriguinha do menino se retesando.
E
foi água que jorrou da porca. Água de fonte, vermelha, impetuosa,
que fugiu de dentro do corpo, que saltou ao sol, que cabriolou, que
explodiu na cara de todos... que sujou de sangue (agora era sangue) o
braço da mãe, o rosto da mãe, o peito da mãe... que se esparramou
no chapéu velho do pai, que respingou em seus bigodes... que cegou o
vizinho, sufocou o empregado... foi aspirado por bocas, nariz,
escorreu por pescoços e ombros. Agora era o pai quem batia na mãe,
descompunha-a... “a camisa... a roupa do empregado, do vizinho...
velha porcalhona...”
O
menino se agachou atrás da bananeira, com muita dor em sua
barriguinha. E nunca mais beijou a mãe.
Tânia
Jamardo Faillace, in Os cem melhores contos brasileiros do
século
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